Por
LILIANA RODRIGUES
Professora Universitária/Investigadora
O paradoxo da contemporaneidade assenta no facto de, apesar do progresso das últimas décadas, haver uma decepção generalizada com o poder e a governação. Refiro-me às “sociedades exasperadas”, referidas por Daniel Innerarity (2019), que fazem nascer tensões sociais e territoriais (visíveis, mais recentemente, no caso Irão vs. Estados Unidos da América). São os cidadãos que desafiam os poderes instituídos, que exigem mudanças paradigmáticas e que rejeitam um “establishment político arrogante, alheio ao interesse geral e impotente na hora de enfrentar os principais problemas que angustiam as pessoas” (Innerarity). Temos o Chile como bom exemplo.
As consequências da Primavera Árabe, a crise financeira de 2008, o crescimento da extrema-direita e do populismo (que não são a mesma coisa, ainda que haja relação entre ambas e porque pode existir populismo nas visões denominadas de esquerda), o sentimento antipolítico, a globalização (que, por si só, não é boa nem má), as questões migratórias e o desenvolvimento desigual entre países e regiões deixaram marcas profundas e uma ausência de esperança no futuro da nossa vida em comum, nomeadamente do ponto de vista económico e ambiental (veja-se o presente desastre ambiental na Austrália), mas também no que diz respeito à segurança, à liberdade religiosa e aos direitos fundamentais. Os decepcionados são todos aqueles que vestiram os coletes que deram à costa ou que foram sepultados no mar do Mediterrâneo, os que desesperaram para se sentirem úteis e não conseguiram trabalho, os que reivindicaram, vestidos de amarelo, pelos direitos sociais, os que se sentiram traídos pelos seus, os divergentes de opinião e de acção e os que desistiram porque se destruíram por dentro (nestes casos, pode acontecer ainda não se terem apercebido que são decepção).
A incerteza que se vive a nível internacional mostra bem a ausência de lideranças fortes e de cooperação entre nações. Mantemos um certo riso quando figuras como Trump nos aparecem pelos televisores adentro. Mas a verdade é que os Trumps e Bolsonaros do nosso tempo sempre existiram, inclusive na Europa. Quem não se recorda dos caçadores de migrantes na Hungria de Órban? Da mafia maltesa, com ligações ao governo, que assassinou uma jornalista por denunciar corrupção de altos dirigentes políticos? Ou do Estado polaco, que legislou sobre o seu falso direito de decidir sobre o corpo das mulheres? Ali perto, quem não se lembra da descriminalização da violência doméstica na Rússia de Putin?
Todos eles, sem excepção, ainda lá estão. A nível micro-político, a diferença não é muito grande. A mentira, a propaganda, a comunicação persuasiva e vazia e a manipulação deram lugar ao marketing político baseado na ideia de imagem limpa. Chega-se ao ridículo de os ver a olhar para as câmaras com as mãos viradas para o ego, quase a modo de reza, copiando o pseudo modelo discursivo de Oxford.
Continua Innerarity dizendo que “Há decepcionados por todo o lado (...) à direita e à esquerda. O quadro das indignações ficaria incompleto se não tivéssemos em conta a sua ambivalência e cacofonia”. O ideal adiado do imperativo de construção de um espaço político de pluralidade interna e externa, tanto de debate como de estratégia, leva-me a crer que este é o tempo do fim das ideologias. A incapacidade política de fortalecer a democracia mostra que muitos dos que se arrogam naturalmente políticos não perceberam que “o assumir infundamentado de uma certa intimidade com a grandeza rapidamente [cedeu] o lugar a uma nova geração que nega que alguma vez tenham existido gigantes e que assevera que toda esta história não passa de uma mentira (...). Os gigantes estarão, presumo eu, a olhar cá para baixo, para esta pequena comédia, e a rir” (Bloom, 1990).
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