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terça-feira, 27 de outubro de 2020

Incongruências e falhas


Por
João Abel de Freitas,
26 Outubro 2020

Revejo-me em Mariana Mazzucato. O Estado empreendedor não é “o sector público em combate com o sector privado, mas um Estado com efeito catalisador e motor do desenvolvimento económico, assente na inovação”. 



Este artigo não é uma análise do OE 2021, nem pretende ser. Apenas se constata que nele as pessoas contam, embora em certos aspectos tenha faltado ambição. Estamos perante um OE de elevado cunho social. Na situação de pandemia que vivemos, em que muitos grupos e profissões viram os seus rendimentos cerceados, seria até anti natura um governo de pendor socialista não assumir a saúde e a solidariedade, e porque não a educação, como as suas principais prioridades. 

Mas não se espere deste orçamento o “milagre” para a crise económica. Neste domínio deveria ter vindo munido de visão e enquadramento. Umas páginas bem urdidas, onde se tecesse a filosofia do financiamento do investimento futuro, ou seja, o papel do Estado, Empresas e Fundos comunitários, bastavam. 

Aqui, limito-me a apontar algumas incongruências e falhas, umas simples, outras de princípio. Evitariam tanta conversa oca, descontextualizada e despropositada, de políticos (pouco inteligentes) e sobretudo de comentadores, com recurso a “especialistas” de estudos das multinacionais, para atacar este OE no tocante aos incentivos às empresas. 
Família grisalha 

A família grisalha, entendida como o grupo populacional dos aposentados, pensionistas e reformados, já foi aqui comentada algumas vezes. Nomeadamente, no artigo “Governo esquece família grisalha”, no qual referi que a devolução de rendimentos a este grupo estava longe de estar tratada em pé de igualdade com as pessoas no activo. Em vencimentos acima de mil e poucos euros escrevi o “governo da geringonça” ainda não tinha devolvido os cortes salariais nos moldes das pessoas no activo, situação que permanece. Daí poder inferir tratar-se não de um caso de circunstância a aguardar melhor desafogo das finanças públicas, mas de discriminação efectiva. 

E neste OE 2021 um governo de esquerda discrimina de novo a família grisalha na questão “redução da retenção na fonte do IRS”. 

Por que razão a pessoa no activo é apanhada por esta medida e o reformado, pensionista ou aposentado não o é? De todo, não entendo. Ou melhor, entendo. Discriminação pura e cega. Uma atitude de fundo, profundamente discriminatória e reaccionária. Em bom português, está-lhe na massa do sangue. 

Esta discriminação espanta e até levou ao engano os fiscalistas comentadores. Só o secretário de Estado, Nuno Mendes, tentou justificar o injustificável de forma “gaga” e não verdadeira, afirmando que neste grupo de contribuintes a taxa de retenção corresponde sensivelmente ao real. Fica-lhe mal. Assuma que assumiu uma atitude que fere princípios de equidade. 

Tem muito pouco impacto a medida e até há quem prefira como está. A mim repugna-me a discriminação de princípio que, repito, fere uma filosofia de esquerda. Amputar o país desta “fatia” é deitar muita gente fora. E também me espanta que os partidos com relevo para os de esquerda nem tenham falado desta situação. 

Como informação bruta, isto é, não trabalhada, registo que o número total de pensões no país era de 3,6 milhões, em 2019, atingindo 40,5% da população. Em 1970, apenas 4,2%. 

O orçamento devia conter uma perspectiva relacionada 

A este OE 2021 falhou uma perspectiva relacionada, importante em todos os OE, mas neste de forma especial e, provavelmente nos próximos, enquanto houver pandemia e os orçamentos saírem fora do normal. 

O que quero dizer com isto? 

Que pelo menos no que se refere aos investimentos no curto e médio prazo devia constar, em paralelo ou como peça do próprio orçamento, uma análise das potencialidades que se oferecem ao país ao nível do financiamento para investimento. Evidente, este documento não podia ser da responsabilidade apenas do Ministério das Finanças. Com este documento ficava claro o papel do Estado, das Empresas e dos Fundos. 

Vantagens? 

Clarificação. Tinha-se ficado a saber, por exemplo, que o Plano de Recuperação e Resiliência entregue em Bruxelas contém 6.000 milhões de euros para as empresas, o que não é nada pouco (48%) em 12,5 mil milhões. Sei que não é fácil produzir este trabalho porque a Administração Pública foi decapitada destas funções. Alguém sabe onde anda, por exemplo, o Departamento de Planeamento e Prospectiva (DPP)? 

Já ouvi o actual ministro do Plano falar destas limitações técnicas e dizer “preparar técnicos nesta área é urgente”, mas já foi há uns tempinhos… Um excelente campo bem “rentável” para investir na Administração Pública verbas a fundo perdido! 

Se tivesse sido feito o documento complementar podíamos estar aqui a discutir outros temas da maior relevância relacionados com as Empresas, o País e os Fundos. 

Por exemplo, por que razão em Portugal (2019 Eurostat) se trabalha 39,3 horas por semana (um dos índices mais elevados da União Europeia) quando a média é de 36,2 e em países como a Holanda 32,6 horas? Na vizinha Espanha apenas 36,4 horas. 

E apesar de mais trabalho ganha-se tão pouco em Portugal. 

Seria bem mais útil debruçarmo-nos sobre estas razões, inclusive relacionando as causas com as potencialidades de financiamento, no sentido de preparar as normas de orientação e enquadramento. 

De certeza existem causas diferenciadas de produtividades tão baixas na Administração Pública e no sector privado. 

No sector privado serão múltiplos os factores, a dimensão empresarial, a estratégia de muitas empresas em apostar no preço como factor de produtividade em vez da qualidade dos produtos e inovação e, sobretudo, o facto de grande parte das empresas ser gerida por empresários pouco habilitados. Tudo isto coloca a questão: como adequar a gestão dos fundos à mudança desta realidade?! 

Houve actividades que se modernizaram com os fundos anteriores, calçado, vinho, azeite, têxtil, componentes automóveis… Mas o país acusa uma forte desindustrialização, desde a última década do século passado. É preciso uma nova estratégia de desenvolvimento assente na INOVAÇÃO. 

E nesta linha revejo-me em Mariana Mazzucato, ilustre economista, professora de Economia e Inovação em Londres, uma acérrima defensora de um Estado empreendedor, forte e inovador. 

Para ela, o Estado empreendedor não é “o sector público em combate com o sector privado, mas um Estado com efeito catalisador e motor do desenvolvimento económico, assente na inovação”. 

Na realidade, o Estado desempenha o papel crucial na Inovação do país, através das Universidades e de outros Centros de Investigação, e será sempre assim. O capital privado arrisca pouco e o processo da Inovação em si exige tempo, acarreta insucessos e por isso apresenta sérios riscos. As empresas usam a inovação em fase adiantada. 

Mariana Mazzucato afirma mesmo que há inovações que levam 20 anos ou mais a atingir o sucesso e que todos os megassucessos globais nas grandes farmacêuticas, na Internet, etc., só aconteceram porque o Estado esteve presente e desempenhou o papel-chave. Como exemplo aponta os EUA, onde tudo tem por base o Estado, seja na parte civil seja na militar. 

E sobre a apropriação final dos resultados económicos do processo de inovação, uma outra questão societária de fundo, Mariana Mazzucato “acusa os privados de ficarem com os lucros e os louros e não os partilharem com quem os apoiou crucialmente, os contribuintes”. 

Aproveitar o tempo dos Orçamentos para debate de temas tão importantes seria bem mais formativo e pedagógico do que andar à deriva focado apenas nos incentivos às empresas e na atracção do investimento apontando apenas para a baixa de impostos, quando as condições globais no seu conjunto são determinantes. Estado, Empresas e Fundos eis o que falta estudar e debater na perspectiva de uma transformação de fundo da nossa sociedade. 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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