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domingo, 11 de outubro de 2020

Memórias


Por 
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
10/10/2020


A grande discussão do momento — em que gastar os 56 mil milhões de euros que vamos receber da Europa nos próximos nove anos — destapou um lado positivo e um lado negativo das coisas. O positivo é que agora parece haver uma consciencialização e uma mobilização de muita gente e de vários sectores para não deixar que os mesmos de sempre, pelos processos de sempre e pelas influências de sempre, se apropriem do grosso do dinheiro em benefício próprio e não do país. O lado negativo é o contraponto desta preocupação: o país não confia na honestidade dos seus — de quem vai distribuir e de quem vai beneficiar do dinheiro. São penosas memórias de circunstâncias semelhantes, que dizem muito sobre nós e as razões do nosso invencível atraso. Se tal fosse possível, só veria uma maneira de calar as desconfianças e garantir que não vamos desperdiçar mais esta oportunidade: pedir à própria UE que mandasse para cá uma equipa com poderes para gerir e vigiar todo o processo. Seria uma afronta à nossa sagrada soberania (que só se manifesta de vez em quando, quando o dinheiro nos é dado, mas não quando precisamos de o esmolar). Mas, entre orgulho e preconceito, eu não hesitava.

2 Outra discussão conexa com esta é a de saber se o Estado deve gastar o que for preciso para fazer frente à crise, sem se preocupar com o défice e com a dívida pública, que vai acabar o ano no valor assustador de 130% do PIB. A tentação imediata é rendermo-nos, sem estados de alma, às velhas lições keynesianas: numa crise, o Estado gasta e investe; na abundância, poupa e recolhe. Mas, mais uma vez, assalta-me a memória o ano de 2008, quando José Sócrates veio de Berlim e de Bruxelas com luz verde para gastar sem pensar e depois foi o que se sabe: ou o enganaram ou ele se deixou enganar, mas pagámos dolorosamente a experiência. Preocupa-me duas coisas: que o Estado — isto é, conjunturalmente, o Governo da esquerda e extrema-esquerda — se tome pelo salvador da pátria, asfixiando todo o papel da iniciativa privada e alargando ainda mais o modelo pernicioso, e tão caro à esquerda, de uma economia assente essencialmente nos dinheiros públicos e na inevitável dependência e clientelismo que ela fatalmente traz consigo. E, escutando o soberbo desprezo do PCP e do BE por essas questões menores do défice e da dívida, preocupa-me igualmente o regresso a uma mentalidade tão cara neste tempo de egoísmos e que é a raiz profunda dos nossos males: gastar hoje e com os de hoje, deixando a conta para pagar amanhã e pelos de amanhã.

3 A escolha do juiz conselheiro José Tavares para o Tribunal de Contas foi, no mínimo, infeliz no timing e na pessoa, sem prejuízo de todos esperarmos nada menos do que uma boa surpresa. Nada tenho contra o princípio dos mandatos únicos, mas desde que a regra seja anunciada antes e não depois. E nada tenho contra a pessoa, fora algumas amizades cultivadas que remetem para memórias de um passado que não se recomenda. Outro problema é quando o timing da sua escolha coincide com várias outras escolhas com um certo ar de “família”, como as do Conselho Geral Independente da RTP.

Ouvindo António Costa rastejar aos pés do PCP, mendigando o seu apoio no Orçamento, Mário Soares deve estar a torcer-se de furor lá no seu lugar além de todos nós

4 Ouvindo António Costa rastejar aos pés do PCP, mendigando o seu apoio no Orçamento, Mário Soares deve estar a torcer-se de furor lá no seu lugar além de todos nós. Ele sempre soube que o PCP não tem nada para dar ao PS nem ao país, a não ser um discurso repetitivo e museológico, sejam quais forem os tempos e as circunstâncias, e a chantagem de uma paz sindical que um Governo com coragem pode enfrentar e vencer. Já as três condições que, ao que consta, ainda separam o BE do PS para a aprovação do Orçamento são concretas e merecem reflexão. É justa a reivindicação de uma nova prestação de apoio social aos verdadeiramente pobres e é inteiramente justificada a recusa em aceitar mais dinheiro dos contribuintes para a Lone Star enquanto não se apurar, sem margem para dúvidas, em que o vêm gastando e porquê. Já li muitas posições defendendo que não há alternativa, pois o Estado tem de honrar os compromissos assumidos e não pode, além disso, sobressaltar o sistema bancário. Este último argumento deve ser o lado para que dormimos melhor, depois de tantos “sobressaltos”, e todos ruinosos, que o sistema bancário tem servido aos contribuintes portugueses. Sobre o Estado dever portar-se como uma pessoa de bem, concordo — desde que os outros se comportem também consigo como pessoas de bem. O que está por apurar no caso do Novo Banco.

Mas a terceira reivindicação do BE — a revisão da legislação laboral, nomea­damente proibindo despedimentos nas empresas com lucros — resulta apenas de um preconceito ideológico característico da extrema-esquerda, que é o da perseguição ao triunfo da iniciativa privada. Mesmo partindo da premissa de que a proposta deixaria de fora os despedimentos com justa causa, ela teria como consequência imediata o aumento exponencial das empresas que passariam a declarar prejuízos onde antes declaravam lucros, coisa fácil de conseguir com um mínimo de imaginação fiscal. Porém, ainda que ineficaz na prática, a medida serviria para transmitir uma mensagem fatídica aos empresários: os lucros são inadmissíveis e a vossa única função é manter postos de trabalho, mesmo que à custa da reconversão, do investimento e até da própria sobrevivência da empresa. Também já conhecemos a receita e todos recordamos o seu sucesso.

5 E, das catacumbas da memória, emergiu o escritor Aníbal Cavaco Silva com mais um livro a acrescentar à sua obra literária. O tema é o mesmo de sempre: o elogio de si próprio e da obra feita. Ciclicamente, e decerto desesperado por não ver quem o faça, o professor Cavaco Silva oferece-nos um novo capítulo da sua biografia, temendo que a gente o esqueça e à sua obra. Aquele que um dia jurou, em tom de desprezo, não ser um “político profissional”, como os outros, viu agora o apresentador do livro, Marques Mendes, descrevê-lo como “o mais profissional” dos políticos portugueses. E, de facto, nunca terá havido outro que, tanto desdenhando da actividade política, dela se tenha sabido aproveitar tão bem. É por isso que ele volta sempre à carga, escrevendo, ao que imaginará, para memória futura. O problema é que a sua memória não coincide com a de muitos de nós.

Forte da convicção (aliás, acertada) de que somos um país sem memória, Cavaco Silva diverte-se hoje a dizer que “os analistas” não sabiam se deviam classificá-lo como de esquerda ou de direita (mas que analistas eram esses?). E, a posteriori, define-se agora como um “social-democrata moderno”, o único e verdadeiro introdutor da social-democracia em Portugal e um continuador da obra do seu inspirador, Olof Palme. É pena que Olof Palme já não esteja vivo, para nos dar a sua opinião, à luz da obra do seu autoproclamado continuador. Mas eu, que visitei a social-democracia sueca no tempo de Palme, posso dar-lhe a minha opinião: não, senhor professor, talvez o adjectivo “moderna” faça a diferença, porque, em relação à social-democracia “antiga” — a de Palme —, ela não tinha nada que ver com o que o senhor andou por aqui a fazer, durante 10 anos de Governo. Assim como o senhor não tem nada a ver com Olof Palme. E assim como a obra feita, desde os hospitais ao CCB, que arrola e reivindica como mérito próprio e exclusivo, assenta num pequeno pormenor que o senhor se esqueceu de lembrar: que só quis o poder depois de um senhor chamado Ernâni Lopes ter posto as contas públicas em dia, ultrapassado a segunda intervenção do FMI, e depois de Bruxelas ter aberto a torneira a um dilúvio de dinheiro como o país nunca havia visto em toda a sua existência. E se já num anterior livro seu, “As Reformas da Década”, podemos encontrar enumeradas todas as reformas que diz ter feito e que, curiosamente, ainda hoje permanecem por fazer, a única pergunta com que, queira ou não, a História o confrontará é esta: que fez o senhor que, efectivamente, tenha mudado o país, durante esses 10 anos em que teve ao seu dispor oportunidades e circunstâncias de que mais ninguém dispôs?

6 No tribunal de Beja julga-se uma rede acusada de promover o trabalho escravo de trabalhadores moldavos para a agricultura intensiva do Alqueva. O cenário descrito pela acusação é aquele que todos sabem existir e fingem não saber: trabalho de 12 horas por dia, seis dias por semana e pago a 3,5 euros à hora; trabalhadores a viver em contentores sem o mínimo de condições humanas, passando fome, frio e calor insuportável; passaportes retidos, entidade patronal inidentificável, zero de protecção legal. Por onde andam os sindicatos em situações destas? Que pensa deste “sucesso” da nossa agricultura a ministra da respectiva pasta? E a do Trabalho? E o do Ambiente, que diz, por exemplo, que a nova moda do abacate no Algarve, em regime de agricultura intensiva e intensivamente sorvedoura de água, é um problema que se resolve quando acabar a água no Algarve? Portugal, garantem-nos, é um modelo no acolhimento de imigrantes e refugiados. E o Inferno está cheio de crentes distraídos.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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