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quarta-feira, 21 de outubro de 2020

A voo de pássaro


Por estatuadesal
José Pacheco Pereira, 
in Público, 
17/10/2020

"Uma sociedade que troca um pouco de liberdade por um pouco de ordem acabará por perder ambas, e não merece qualquer delas" - Thomas Jefferson a Madison

 

Numa altura em que não há verdadeira crítica mas muita intriga, ou seja, falsa crítica pelas costas e para as costas, num país pequeno, onde toda a gente depende de toda a gente, ou, como eu costumo dizer, “somos todos primos uns dos outros, a fome é muita e os bens são escassos, por isso a democracia é difícil” (perdoe-se a extensa citação mas a frase saiu bem), vale a pena voltar a Camilo, e aos seus textos polémicos, para respirar melhor. E como hoje vou fazer um daqueles artigos que se escrevem quando não apetece nenhum dos temas correntes, vou acantonar-me na velha expressão francesa de a vol d’oiseau e andar por cima das coisas e supostamente a direito. E que Camilo me guie para que o vol d’oiseau não se torne no voo de pássara.

Começo na pássara. Leiam o texto magnífico e corrosivo, machista até ao limite, que Camilo escreveu, num tom muito moderno usando a imaginação poliglota das palavras, para castigar um livro mau, escrito pela Princesa Ratazzi sobre Portugal “de relance”, como foi traduzido o a vol d’oiseau. Como hoje não há livros maus, porque ninguém diz que eles são maus para não irritar as múltiplas pequenas cortes culturais que dominam o que sobra dos suplementos “culturais” e os vários grupos de pressão associados, fico-me pela sombra do pássaro sobre a pássara.

Que vejo eu no meu voo? O tema que estava predestinado para este artigo era a intenção governamental de nos obrigar a ter por força de lei a aplicação StayAway Covid no telemóvel. Mas como várias pessoas disseram tudo sobre o carácter inconstitucional e violador de direitos que tal obrigação representa, não vale a pena acrescentar mais nada. Tudo estava e está mal feito nessa intenção, de tal maneira que sou capaz de enumerar dezenas de perguntas sobre tal obrigatoriedade cuja resposta é muito complicada de dar, ou mesmo impossível. A proposta também foi feita de “relance”. Acrescento que esta evidente falta de bom senso revela como no Governo prevalece uma forma pervertida de tecnocracia, que acha que tudo se pode resolver com aplicações de telemóvel, sem a mínima preocupação com direitos, liberdades e garantias, que acham que são do mundo pré-Internet.

Afirmo por isso que nunca, jamais, em tempo algum, usarei a dita aplicação, nem que isso signifique ter de deixar de andar de telemóvel. De facto, a pior ameaça nos dias de hoje aos direitos individuais e à privacidade vem de devices e aplicações que usam o actual instrumento de controlo mais eficaz, o telemóvel, até porque está colado ao nosso corpo. Como o relógio de bolso ou de pulso nos impôs o tempo industrial, o telemóvel inseriu-nos na rede de controlos que usam a Rede, uma forma moderna do mundo kafkiano do Processo, onde K. caminha até à morte sem nunca ter acesso a saber o que se passa com ele, quem o acusa, quem o julga, quem o condena.

Ele não teve o poder do voo de pássaro, hoje o verdadeiro poder dos poderosos, perdoe-se o excesso, que é não o de estar na “rede”, que é o destino dos que não têm poder, mas o de a poder ver de cima, qual o sentido e direcção das diferentes teias e, mais do que isso, poder tecê-las com algoritmos numa ou noutra direcção.

A StayAway Covid controla-nos de forma cómoda, barata e eficaz, por isso os governos preferem este tipo de mecanismos a gastar mais dinheiro na saúde pública, e aproveitam-se dos preguiçosos, que somos quase todos nós, que não se importam de trocar a sua privacidade por um falso sentimento de segurança.

Aliás, é o que fazem já todos os dias, aceitando aplicações aparentemente grátis em troca de serviços, numa cultura crescente de promiscuidade na rede, que vai do bullying nas escolas com fotografias às fake news. Sabem quem ganha com isto? Quem sabe o que “isto” é: as grandes empresas de tecnologia e os serviços de informação.

Chegados aqui, estamos no mesmo sítio. Pássaro, pássaro, levanta-te! Mostra-me o mundo lá de cima! Pois sim! O objectivo do voo era escapar do StayAway Covid e não é que o malvado pássaro nos ensina que não voa quem quer, mas quem pode, e me deixou a falar do mesmo que eu não queria falar. Em 700 palavras, só se pode voar como a pássara Ratazzi, baixinho. Acho, mesmo assim, que a vou enviar para aconselhar os nossos governantes a pensarem duas vezes antes de nos colocarem um chip como aos cães.

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