Por estatuadesal
Pacheco Pereira,
in Público,
19/06/2021
Os mecanismos do radicalismo hoje em curso à direita do espectro político são bem visíveis em textos de articulistas, nas páginas das redes sociais e nesse espelho das cabeças que são os comentários em caixas de comentários sem moderação ou pouco moderadas, seja no Observador, no Sol, e mesmo no PÚBLICO. Aliás, a prática de uma mesma publicação ser moderada no corpo principal e permitir tudo nas páginas do seu Facebook favorece a degradação da opinião, com o falso argumento da sua democratização.
Embora seja fácil perceber que uma multiplicidade de nomes falsos e pseudónimos pertencem à mesma pessoa, para se criar a ilusão da quantidade, não é irrelevante conhecer esta forma ficcional de vox populi, intencional e pretendendo obter objectivos políticos. Do mesmo modo, é possível perceber outros mecanismos deliberados, como seja enviar opiniões pejorativas ou no início ou numa fase já avançada dos comentários, de modo a que estes sejam ou os primeiros ou os últimos e, de algum modo, condicionarem a leitura do conjunto. Há gente que faz isto como quem respira, verdadeiros militantes das caixas de comentários, e há profissionais de agências de comunicação ou grupos organizados nos partidos políticos, semelhantes aos que existem nos programas de rádio, os fóruns em directo de opiniões, a actuarem escondidos.
Muitos dos mecanismos deste tipo não são exclusivos da direita radical, existem também à esquerda, mas a maré tribal que está a subir é a da direita radical, associada ao populismo antidemocrático, exacerbado pelo sentimento de impotência face à situação política actual e às sondagens. Os temas e o modo de os apresentar e discutir são tão semelhantes entre si, do Observador ao Diabo, que representam um elenco que pode ser identificado e discutido.
Noutros artigos voltarei a esta questão, com os retratos do “argumentário”, quase todo associado a ataques pessoais, que desde o início do século XX foi identificado e estudado como um modus operandi do jornalismo de ataque populista radical. Hoje fico-me por aquilo que é o uso do argumento soviético do período de Brejnev para usar a interpretação psicológica, psicanalítica e psiquiátrica para explicar a dissidência. A dissidência era considerada uma doença mental, e vários opositores ao regime soviético como Vladimir Bukovski, Leonid Pliushch e Grigorenko foram perseguidos como doentes. A ideia apresentada de forma simplista era esta: como é possível, sem padecer de uma qualquer doença mental, pôr em causa um regime perfeito de sociabilidade política como o socialismo soviético, fonte de felicidade e bem-estar? Como era possível, sem diminuição das faculdades mentais, estar “contra o povo”?
Este argumento soviético é hoje muito usado no mundo do ataque pessoal da direita radical. Pode parecer estranho pela aparente oposição política, mas não é: há uma similitude na vontade de destruir o outro e os mecanismos para o fazer são idênticos. Este tipo de ataques muito comuns nas margens cinzentas da política está cada vez mais a emigrar para as zonas “respeitáveis” da opinião. Como é possível sem se ser doente, demente, senil, “maluquinho”, lunático, sem se ter as faculdades mentais diminuídas, pôr em causa o discurso da direita radical sobre o “ditador” Costa, sobre o “socialismo autoritário” que nos rege, como não é possível ver a essência corrupta da democracia, descrita como o “sistema”, como é possível não se aceitarem as teses “científicas” sobre a realidade, como, em suma, se pode discordar sobre o mundo do Mal que nos governa sem se ser ou servil ou doente ou as duas coisas?
Os termos que usei e que repito – demente, senil, “maluquinho”, lunático, sem as faculdades todas – foram todos usados por cá nos dias de hoje, e são uma espécie de upgrade da redução das posições políticas a traços e comportamentos psicológicos, seja a inveja, seja o ressentimento, os dois mais comuns, que são centrais nos ataques pessoais. É um estilo cada vez mais vulgar, que acompanha a crescente incapacidade de aceitar posições numa conversação democrática, ou sequer admitir que ela possa existir porque isso é aceitar o “sistema”. O melhor exemplo são os republicanos pró-Trump, e os seus imitadores nacionais.
Se retirarmos o psicologismo, e a sua forma superior no argumento da dissidência ou da discordância como doença mental, não sobra quase nada. Espreme-se e sai vazio, o que significa que não se trata de debater ou discutir, mas de considerar que o outro não pode nunca ser ouvido ou ser um interlocutor, porque está diminuído nas suas faculdades mentais, como se vê pelas suas posições..
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