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segunda-feira, 14 de junho de 2021

Ecos de (uma) democracia


Por
Miguel Palma Carlos
Professor de Filosofia, Psicologia e Ciência Política na Escola Secundária de Francisco Franco


Há algo que causa mais dano à democracia e que vigorou no discurso político nacional nos últimos 15 meses e que, presumivelmente, continuará a vingar depois de passar a pandemia: a mentira e o medo.



São múltiplas – e bem dissemelhantes – as definições de democracia, a primeira “forma humana de governo” que ao longo de um percurso histórico de mais de 2600 anos resistiu e subsistiu a crimes, subjugações, “comédias e numerosas tragédias” e onde factos e acontecimentos inscrevem um incomensurável sofrimento humano. De uma lista bastante alargada, detenho-me numa em particular que foi apresentada pelo 16º presidente dos Estados Unidos da América, assassinado a 14 de abril de 1865, em Washington, refiro-me a Abraham Lincoln: «O governo do povo, pelo povo e para o povo [que] jamais desaparecerá da face da Terra.» (Discurso de Gettysburg, 19 de novembro de 1863).

Sendo a democracia um regime político em que o povo é soberano (e cumpre-nos a todos nós, os vivos, dedicarmo-nos à obra iniciada pelos Gregos, nascida da resistência à tirania e que nos primórdios não gerou grande entusiasmo, um feito inacabado e profundamente exigente não somente hoje, mas todos os dias, pois a democracia precisa de uma readaptação [e reinvenção] constante face às diferentes conjunturas económicas, sociais e políticas que vão eclodindo), para os Gregos, ela tinha não só a particularidade de gozar da participação direta dos cidadãos mediante o direito de expressão e de voto – além da possibilidade de legislar, julgar e ocupar cargos públicos –, mas sobretudo a proibição de “não se poder exercer duas vezes a mesma magistratura” e de esta ser de curta duração (Aristóteles). De modo sintético, os Helenos estavam já cientes do princípio de que “o poder tende a corromper” e que uma pessoa muito tempo no poder tende a abusar dele.

Ora, passados mais de dois milénios e meio, as democracias diretas são hoje quase inexistentes e o seu eco ou ressonância nas democracias representativas é de muito baixa reverberação, na medida em que a quase totalidade dos casos reduzem a participação política dos cidadãos ao mero momento eleitoral (voto). Pior, num Portugal do século XXI, aos olhos do cidadão comum atento e interessado nestas questões, a democracia representativa/liberal parece definhar e esvanecer-se, e escapa-lhe (ou não compreende) numerosas das suas regras e preceitos. De acordo com alguns testemunhos, o regime aparenta já uma gradual e crescente derrocada provocada pelo descrédito (e incoerência) da ação política de variados partidos; pela vaidade (narcisismo) e irresponsabilidade (e falta de ética) de alguns políticos; pelo colapso dos mercados e resgate de instituições financeiras (e empresas) falidas; pelo agravamento das desigualdades sociais e da taxa de pobreza (somos agora o quinto país europeu com mais pobreza entre quem trabalha); pelo eclodir de novos (e falsos) populismos e nacionalismos; pela incapacidade do sistema político-partidário em compreender o passado e preparar o futuro; pelo avultar da hipocrisia e dos casos de corrupção (ou índice de perceção); pela prioridade dada à satisfação dos grandes grupos de interesse/pressão por parte dos governantes e, sobretudo, pelo acréscimo dos adversários da própria democracia que aumentam a cada dia que passa e que trazem consigo a sabotagem do próprio modelo de governação.

A pergunta que espontaneamente germina e subsiste a este (espero eu) erróneo ou questionável retrato é muito simples: será que todo este quadro/cenário ainda desassossega alguém? A que se deve tanta inércia dos principais atores políticos, perante tudo isto? Entretanto, são diversos os exemplos que atestam este crescente descrédito e desconfiança para com a democracia (portuguesa) – que nas palavras de um ex-Presidente da República, vive “numa situação de democracia amordaçada” –, mas por razões de insuficiência de espaço, apresento aqui apenas dois:
É comum ouvir-se que a Justiça é um dos pilares do Estado de Direito em Portugal e que sem ela não há democracia. Mas, enquanto comunidade, como avaliamos e classificamos a atuação do sistema judicial português? O entendimento habitual é de que a Justiça funciona mal, é bastante lenta e de difícil acesso (as custas judiciais são “chocantemente altíssimas” disse, recentemente, o Bastonário da Ordem dos Advogados, acrescentando que à Justiça “só têm acesso os muito ricos e os indigentes”) e o Relatório de Evolução do Sistema Judicial Europeu de 2020 confirma que o nosso país tem “uma Justiça cara e lenta”.

Na democracia representativa a “erosão” da participação eleitoral é um facto inegável e os eleitos continuam a representar cada vez menos os cidadãos. Na última eleição presidencial, aquela que teve a maior abstenção de sempre, importa ler os resultados de uma outra perspetiva: os 60,7% obtidos pelo candidato (e vencedor) Marcelo Rebelo de Sousa são na realidade apenas 23,6% dos eleitores e a “surpresa” amplamente publicitada de André Ventura representa só 4,63% do universo eleitoral. Certamente, os cidadãos eleitores têm muitas – e algumas vezes boas – razões para se absterem de ir às urnas, e aquelas que muitas vezes escutamos são que não votam porque já não confiam no sistema, nos partidos e nos seus representantes (políticos). Em suma, não votam porque já não se identificam com projetos políticos que muitas vezes pouco ou nada de novo/alternativo apresentam e estão cansados de discussões estéreis entre candidatos que servem interesses que não os dos eleitores. Quem nunca ouviu este tipo de depoimento?

Por último, neste ano de 2021, Portugal desceu mais uma vez de categoria no Índice de Democracia elaborado pela revista The Economist Intelligence Unit , ou seja, deixamos de ser um “país totalmente democrático” e passamos, novamente, à categoria de “democracia com falhas”, um recuo que, dizem-nos, foi impulsionado pelas medidas restritivas impostas pela pandemia da Covid-19 e que é o resultado de uma situação excecional que levou à suspensão e/ou restrição de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, inevitável, garantem-nos, para a proteção das nossas vidas. Refira-se também a este propósito, que uma sondagem recente do ICS/ISCTE, realizada poucos dias antes da comemoração dos 47 anos do 25 de Abril, revelou que 40% dos portugueses veem grandes defeitos na nossa democracia e que só 10% acreditam (ainda) viver em plena democracia, o que nos dá claros sinais que o regime já não agrada a parte significativa da população. Porém, há algo que causa mais dano à democracia e que vigorou no discurso político nacional nos últimos 15 meses e que, presumivelmente, continuará a vingar depois de passar a pandemia: a mentira e o medo, sempre ao serviço de agendas específicas ocultas estrategicamente “cuidadas” por poderosas agências de comunicação.

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