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terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Coitadinho do Pacheco de Amorim, tão maltratado


Francisco Louçã, 
in Expresso Diário, 
08/02/2022


Ventura, matreiro, quer fazer da disputa pela vice-presidência do Parlamento uma telenovela que se arraste pela amargura da vitimização, quanto mais longa melhor, para lhe dourar os galões de antissistema. Escolheu para isso o candidato que lhe dava mais garantias de ser chumbado. Hic Rhodus, hic salta, eis não sei quantos dos profetas da direita a responderem a este apelo e a rasgarem as vestes pela elevação do Pacheco de Amorim a vice, ora apresentando-a como uma obrigação estatutária, ora terçando pela conveniência educativa da iniciativa.



Como seria de esperar, é do Observador que chegam os mais enfáticos, e o seu chefe, José Manuel Fernandes, apresenta numa emissão de rádio o argumento definitivo: “Se querem discutir a eleição de Pacheco de Amorim, discutam a Constituição, pois é lá que está prevista. O que a Constituição não prevê e não devia ser tolerado é uma ‘socranete’ como presidente da AR.”

“Está prevista” a eleição de Amorim na Constituição, curiosa escolha de palavras. De facto, o que o texto constitucional determina é que os deputados têm o poder de “eleger por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções o seu presidente e os demais membros da Mesa, sendo os quatro Vice-Presidentes eleitos sob proposta dos quatro maiores grupos parlamentares” (Artigo 175º, alínea b).

Seria demais pedir ao ideólogo alguma atenção à redação, que atribui o poder de “proposta” aos quatro grupos parlamentares e o poder de “eleger” aos deputados, que são naturalmente livres de exprimirem o seu voto. Tavares, no Público, apimenta a coisa com uma alegada tradição: teríamos um problema se os deputados exercessem o seu voto de modo a produzirem um “corte com a tradição parlamentar desde 1975” (o que, a talhe de foice, é uma “tradição” frequentemente “cortada”, ou seja, sempre que os deputados entenderam diversamente dos proponentes).

Pode-se perguntar em que mais assuntos transcendentes é que esta defesa da “tradição” ou da “previsão” constitucional obrigaria os deputados a abdicarem do seu direito de opinião para aprovarem de cruz o que lhes é proposto. O resultado seria uma estranha democracia, mas certamente obediente.

A rapidez com que os dois ideólogos se escapulem para a eventual proposta de Edite Estrela para a presidência do Parlamento não deixa de ser reveladora de algum desconforto com a sua adesão à candidatura de Amorim. Aliás, os termos em que o fazem denunciam o estratagema, pois seguem a máxima dos aflitos: se a conversa corre mal dispara depressa noutra direção. Acresce que Fernandes não se coíbe de usar uma grosseria que só mobiliza por se tratar de uma mulher. Ela é uma “socranete”, pois claro.

Imagine quem lê esta prosa se alguma vez o diretor do Observador escreveria de Pacheco de Amorim que é um “venturete”. Já sabe a resposta: nunca, afinal o dito cujo é um homem, homens não são majorettes, quanto a mulheres bem podem ser, não é? Tavares, que é mais prudente na escolha das palavras, limita-se a atirar contra “a madrinha do Sócrates”. Veremos se Estrela é mesmo a candidata à presidência do Parlamento pelo PS, o que pareceria uma escolha infeliz – mas compará-la com alguém que fez carreira numa organização responsável por atentados e que se orgulha desse passado, isso é uma abominação. Nesse plano, nenhuma confusão é possível.

Temos então, na direita, três atitudes sobre o Chega, que se vão consolidando e que este episódio volta a revelar. A primeira é de quem quer a extrema-direita para o porradismo social. É, por exemplo, a de Fátima Bonifácio, que explicou que, como “a direita não se conseguiu impor com boas maneiras e falinhas mansas”, um avanço do Chega será o início de “uma barrela de alto a baixo” no país. A segunda é a de quem lhe quer garantir um estatuto na direita, eles que se entendam. Ao que se percebe, é a do Observador. Finalmente, a terceira é a de quem prefere abrir a porta da sala de aula, esperando que os rufias do recreio se sentem sossegadinhos, como parecem ser os casos de Marques Mendes e Lobo Xavier ou, mais enfático, de Pinto Luz.

Para Ventura é um gosto aliar-se com as duas primeiras versões da direita e usar a terceira a seu bel-prazer. Fica a saber que a cartada Pacheco de Amorim mete em sentido uma parte daquela ala e desbarreta outra, afinal foi fácil. Com isso, já ganhou alguma coisa.

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