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sábado, 26 de fevereiro de 2022

Guerra e paz


Por estatuadesal
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
26/02/2022

Sim, invadiu. Vinte e quatro horas depois de ter insistido que estava ainda aberto a negociações “sérias e honestas”, Putin invadiu a Ucrânia e, pelo que se sabia até ontem à tarde, em larga escala.



Faço ideia da satisfação intelectual de tantos que passaram semanas a anunciar a invasão, às vezes parecendo mesmo desejá-la para poderem ver as suas previsões confirmadas. Não é o meu caso: sempre acreditei que Vladimir Putin não daria este passo extremo, com o qual tem muito mais a ganhar do que a perder, e que semanas e semanas de tensão a acumular-se eram pretexto e tempo suficiente para que os tão falados “esforços diplomáticos” conseguissem evitar uma guerra desta dimensão na Europa.

Porque, talvez ainda não tenham percebido bem, mas esta guerra não vai doer apenas aos ucranianos, com os seus mortos e o seu país ocupado, vai doer a todos na Europa e para além dela — e se a coisa ficar pela Ucrânia. Não tardará muito tempo até que aqui mesmo, em Portugal, o comum das pessoas se interrogue por que razão os que podiam não fizeram todos os esforços para evitar esta guerra e as suas consequências.

Em 19 de Janeiro passado, escrevi aqui isto: “Tudo o que a Rússia pede é a garantia de que nem a Ucrânia nem a Geórgia, nas suas fronteiras, vão aderir à NATO. Em troca, o que a NATO pode exigir à Rússia é a garantia de que não invadirá a Ucrânia. Custa assim tanto evitar a guerra?” Passaram cinco semanas desde então e o único esforço diplomático visível feito pelo Ocidente foi a ida de Macron a Moscovo. Veio de lá com algum optimismo, depois de ter ouvido Putin dizer que aceitava como base negocial o regresso aos Acordos de Minsk-2 (que, por si sós, impediam a Ucrânia de aderir à NATO sem o acordo das províncias russófonas). Mas logo no dia seguinte Putin lembrou que Macron não respondia pela NATO e a verdade é que da parte da organização nem uma palavra foi dita ou um avanço foi feito no sentido de negociar a questão com base nos Acordos de Minsk. E nada mais foi feito do lado de cá em matéria de esforços diplomáticos: apenas ameaças de sanções, reforço de meios militares nas fronteiras da Ucrânia e constantes avisos de que estava iminente a invasão russa, enquanto toda a gente continuava sentada, de braços cruzados, pronta a assistir. 

Particularmente chocante, quando ouvimos agora Ursula von der Leyen falar da diplomacia tentada, é pensar na absoluta inércia da União Europeia, prestes a enfrentar uma guerra no seu território, a arcar com o grosso das consequências económicas e políticas, e que não mexeu uma palha para a evitar, para se colocar como mediadora do conflito e que, como sempre, só sabe acenar com dinheiro a posteriori. E enquanto nada se passava na frente diplomática, ainda tivemos, segunda-feira passada, a ida do Presidente ucraniano, Zelensky, à cimeira da Segurança e Cooperação Europeia, em Munique, lançar a última acha na fogueira, queixando-se das armas nucleares (soviéticas) que afirmou lhe terem sido retiradas quando a Ucrânia se tornou independente e exigir a sua entrada imediata na NATO, desafiando os países recalcitrantes a assumirem-se ali e então. (Duas horas depois, talvez por ter chegado atrasado ou se ter perdido na tradução, o nosso ministro da Defesa dizia que essa questão “não estava em cima da mesa”, pelo que não havia fundamento para uma invasão russa.) Insisto: a invasão russa talvez pudesse ter sido evitada se tivesse havido uma vontade e um esforço sério de negociação do lado ocidental, que não houve.


E digo talvez porque não posso saber o que ia e vai na cabeça de um homem perigoso como Vladimir Putin. Mas a todo o tempo e em todos os lados se negociou com homens perigosos a benefício de um bem maior, que é a salvaguarda da paz — Kim Jong-il, da Coreia do Norte, ou os imãs do Irão são apenas os últimos e mais óbvios exemplos. O facto é que, não tendo negociado antes, deixando apenas a Putin a opção de se retirar publicamente humilhado e conformado a ver a Ucrânia juntar-se aos 14 países que antes faziam parte da URSS ou do Pacto de Varsóvia e que a NATO já juntou à sua colecção, assim cercando a Rússia de alto a baixo, do Báltico até ao Bósforo, o Ocidente vai agora ter de negociar com ele em posição de força. A menos que um dos lados, ou ambos, tenha endoidecido e esteja disposto a arriscar uma guerra total na Europa.

Negociar com Putin em posição de força não vai ser fácil. Na sua declaração de guerra, ele disse que a Rússia estava preparada para enfrentar as consequências e, a médio prazo, está economicamente bem mais preparada do que a Europa em matéria de abastecimento de energia, cereais e matérias-primas essenciais.

São as consequências políticas da invasão o grande preço a pagar.

Não tardará muito tempo até que aqui mesmo, em Portugal, o comum das pessoas se interrogue por que razão os que podiam não fizeram todos os esforços para evitar esta guerra e as suas consequências.

Apesar daquilo a que chamaram a sua “lição de história sobre a Ucrânia” conter muito mais verdades do que falsidades ou invenções, ele sabe que isso não lhe acrescenta qualquer validade política para invadir o que outrora foi terra russa: os tempos mudam, a vontade dos povos também e a poeira da História fica nos livros. Recuperar militarmente e manter a Ucrânia toda na Federação russa é um projecto politicamente insano, que a longo prazo sairá caro a Moscovo e ao povo russo.

Mas agora vamos entrar numa nova dimensão, chamada realpolitik — não sei se se lembram do que era, antes de alguém ter declarado que a História tinha acabado quando a URSS implodiu e a Guerra Fria terminou com a vitória do Ocidente. O Donbas, Odessa, Mariupol, pelo menos, nunca mais voltarão à posse da Ucrânia e esta nunca poderá ser membro da NATO — isto será o mínimo que Putin vai exigir. O resto, desde que Putin não queira uma Ucrânia “normalizada”, talvez seja negociável — é isso a realpolitik. Aquilo que resta quando se andou a brincar à guerra e paz com análises simplistas de aplicação universal e intemporal, como nos nossos livros de infância, em que os bons éramos sempre nós e os maus os peles-vermelhas.

Tenho lido e escutado vários “especialistas” na matéria a defender que negociar com Putin terá o mesmo e funesto efeito que teve negociar com Hitler em 1938. É mais uma análise de aplicação universal e intemporal cuja utilidade está agora a ser provada pelos ucranianos. Para começar, e embora haja historiadores para todos os gostos, Putin não é Hitler. E, depois, a situação não é igual nem comparável: em 38, Hitler já tinha consumado o Anschluss sobre a Áustria, queria os Sudetas, que Chamberlain e Daladier lhe deram em Munique, e não escondia que a seguir engoliria toda a Checoslováquia. Mas, sobretudo e diferentemente da Rússia de 2022, era a Alemanha que ameaçava a Europa, e não a Europa que ameaçava a Alemanha, com um cordão de países unidos numa aliança militar cercando-a por todos os lados.

Há dias, numa das suas proclamações “ao mundo”, Joe Biden dizia sobre Putin: “Quem pensa ele que é?” Bom, agora já deve saber quem é e do que é capaz. É pena que antes disso não lhe tivessem explicado: “O Putin, sr. Presidente? É Presidente do segundo maior país e da segunda maior potência nuclear do mundo, com quem ao longo de décadas temos mantido negociações e tratados de limite de armas nucleares, graças aos quais o mundo evitou uma terceira guerra mundial devastadora nos últimos 50 anos. Ele agora está furioso porque a Ucrânia se quer juntar a 14 outros paí ses membros da NATO que já cercam a Rússia e que, a partir daí, podem atingir território russo com mísseis nucleares em questão de minutos. Eu aconselho a que fale com ele.”

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