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sábado, 7 de maio de 2022

O Ocidente


Por
estatuadesal
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
06/05/2022

O colossal erro político e estratégico de Vladimir Putin ao invadir a Ucrânia tem conseguido, até agora, produzir todos ou quase todos os efeitos opostos àqueles que ele visava com essa invasão. Na exacta medida em que ele, ditador iluminado, conseguiu confundir a Rússia com a sua própria pessoa, está a caminho de transformar o país num Estado pária e de desencadear um sentimento universal de russofobia, que vem a par com a exaltação, por contraponto, do que chamam as “sociedades liberais” — ou seja, as democracias ocidentais ou o Ocidente tout court. Este movimento, fomentado por jornalistas, políticos e intelectuais — e, na sombra, por outros poderes menos inocentes —, é em si mesmo perigoso, antes de ser arrogantemente inculto.



Mas comecemos pelo princípio. A ideia de Ocidente não é hoje um conceito geográfico, mas sim político ou geopolítico: não abrange África, excepto alguns países do Norte que estão a ser subtilmente comprados pelo Ocidente “democrático”, nem a maioria dos países da América Latina, mas incluí países asiáticos como a Índia e o Paquistão. No conceito de Ocidente cabem, então, todos os países que o “núcleo duro” das democracias liberais aceita dentro do seu clube e que, umas vezes melhor, outras vezes pior, cumprem um mínimo de regras que o clube apregoa defender: eleições livres, liberdade de expressão e de imprensa, justiça independente, economia de mercado, liberdade de circulação de pessoas e bens. Na prática, porém, o cumprimento das regras é tão elástico quanto as necessidades políticas conjunturais do clube o justificam. Assim se passa com Israel sempre, com países como o Chile ou a Argentina em períodos alternados, com a Índia ou o Paquistão em época de monções, com Angola em alturas de oportunidades ou, na própria Europa, com a Hungria ou a agora “heróica” Polónia. Mesmo a Rússia de Putin, antes da funesta decisão de entrar Ucrânia adentro, era tolerada dentro do clube, apesar das suas eleições muito pouco livres, de Navalny e de outros dissidentes misteriosamente envenenados.


Mas, politicamente, o clube está certo nos seus fundamentos. Qualquer cidadão do clube prefere ser “árabe” em França do que palestiniano em Israel, prefere ser da oposição em Itália do que ser dissidente na Rússia. Mas o clube faz as suas próprias excepções: o príncipe e regente saudita Mohammed bin Salman, que mandou matar e cortar aos bocados o jornalista saudi-americano Jamal Khashoggi na Embaixada da Arábia Saudita em Ancara, continuou um respeitado parceiro de negócios do clube; e os melhores amigos de Putin, os salteadores da arca russa, vulgo “oligarcas”, eram os melhores amigos dos tories e da elite inglesa até há dois meses, quando Boris Johnson descobriu em Putin um novo Estaline e em Zelensky um novo Churchill. Mas essas excepções casuísticas às boas regras não invalidavam aquilo que constituía um dos melhores atributos das nações democráticas, actuando sozinhas ou em conjunto, que era a sua capacidade para entenderem e se relacionarem com outras nações de crenças e ideologias diferentes, estabelecendo pontos para o comércio justo e a convivência pacífica.

A democracia é, por definição, o sistema que não exclui nem persegue os que pensam diferente. E a Europa, onde hoje se pensa acriticamente a reboque da vontade de ingleses e americanos, era um belo exemplo disso — embora infrutiferamente, como agora nos contam. Desde que existe qualquer tipo de organização política nas sociedades humanas, nenhuma foi tão longe e foi tão perfeita em matéria de garantia de direitos individuais e de solidariedade entre Estados como a União Europeia.

A tal ponto que até podemos dizer que o país-farol da democracia, os Estados Unidos da América, se quisessem aderir à UE, não cumpririam os critérios de adesão, de tal forma a sua “democracia liberal” consente a usurpação de direitos individuais que os europeus têm como adquiridos e é baseada numa absoluta libertinagem do mercado, corrompendo os fundamentos da própria democracia, como Elon Musk acaba de demonstrar.

Aliás, os Estados Unidos são o melhor exemplo da dificuldade em apresentar um padrão de conduta que justifique a invocada superioridade moral, adquirida e permanente, das “democracias liberais” sobre tudo o resto. Em todos os campos — científico, artístico, económico, militar — os Estados Unidos são capazes do melhor e do pior. São capazes de liderar pelos direitos humanos e depois transformarem-se quase num Estado teocrático, ao nível das comunidades, dos Estados, do Supremo Tribunal; são capazes de derramar o sangue dos seus para socorrerem os aliados, mas também de os abandonar no campo de batalha, como fizeram com os afegãos e os curdos da Síria; são capazes de se moverem por princípios mas também de conviverem e conspirarem com assassinos da América Latina ou do Médio Oriente. A sua bússola moral varia conforme as maiorias no Congresso e no Supremo Tribunal e conforme o ocupante da Casa Branca: depois de um Kennedy vem um Nixon, depois de um Carter vem um Reagan, depois de um Clinton vem um George W. Bush, depois de um Obama vem um Trump. Toda esta gritaria que Biden faz agora em nome do Bem contra o Mal, não existiria se ele tem perdido as eleições há ano e meio: com Trump reeleito, a Ucrânia estaria entregue à sua sorte.

Mas agora, graças a Putin, aqui, no Ocidente, estamos confrontados com uma ofensiva dos novos Cruzados para quem, sorte a deles, tudo se tornou cristalinamente claro e quem assim não vê é fuzilado na praça com um rol de novas ofensas: “antiamericanos”, “iliberais”, “russófonos”, “diletantes”. Presumo que tanto fervor ocidental tenha ainda por matriz filosófica a louvada civilização judaico-cristã, mãe inspiradora de todos os nossos valores. Lamento, mas não é a minha. Eu sou filho dilecto da civilização greco-romana-árabe, a que nasceu e floresceu no Mediterrâneo, a civilização da luz e da liberdade, dos pátios, dos terraços e dos templos, e não a das catedrais e do terror, a civilização que derrotou os “bárbaros” (alemães e povos do Norte), a que construiu o único império onde os conquistados preferiam reger-se pela lei do conquistador (Roma) do que pela própria lei, que lhes parecia mais injusta. A minha “casa” na Europa fica nas ilhas gregas, em Roma ou em Taormina, em Trás-os-Montes, em Córdoba ou em Lisboa, e mesmo no Rio de Janeiro ou em Buenos Aires. Não fica em Frankfurt, nem em Manchester ou em Varsóvia, por muito que eu goste de ir a toda a parte e em toda a parte goste de voltar para casa.

Em “O Sentimento dum Ocidental”, Cesário Verde escreveu: “Ocorrem-me em revista exposições, países:/ Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, o mundo”. Fosse hoje, e ele teria de cortar São Petersburgo da lista, pois que, pelos novos mandamentos, a Rússia deixou de ser sinónimo de Europa e de “mundo”, no sentido de civilização ocidental — ou apenas de civilização — que ele lhe deu no seu poema. E, todavia, poucas cidades são hoje tão europeias, sob todos os pontos de vista, como São Petersburgo. E não apenas porque Pedro, o Grande sonhou com uma Nova Amesterdão ali, no Báltico, e trouxe alguns dos melhores arquitectos europeus para a desenharem e Catarina, a Grande encheu o Hermitage com milhares de obras que testemunham séculos da melhor pintura europeia. Apesar de Putin e tudo o resto, apesar do discurso de Putin sobre o destino euro-asiático da Rússia (de que não foi o inventor nem o único sonhador e que é natural num país que se estende de Murmansk e Vladivostoque, ao longo de 12 fusos horários), a verdade é que São Petersburgo, tal como Moscovo, é hoje uma cidade exuberantemente europeia. Nas “noites brancas” de São Petersburgo, os extraordinários restaurantes da cidade estão abertos até às duas da manhã e há uma animação e uma história latente em toda a cidade que contrasta de forma chocante, assim que se faz a curta travessia férrea para Helsínquia, com a desolação e a tristeza fúnebre da capital finlandesa, onde os restaurantes fecham às 8 da noite e a grande distração dos locais é atravessar de ferry para Taline, na Estónia, para irem comprar álcool mais barato. No meu conceito de civilização, São Petersburgo é irremediavelmente ocidental, geneticamente europeia e até tem qualquer coisa de estranhamente mediterrânico; Helsínquia... não é nada, é como se nada ali tivesse acontecido. Mas parece que agora, indo paradoxalmente ao encontro das ideias de Putin, a Rússia deixou de ser Europa e Ocidente aos nossos olhos, enquanto que a Finlândia — futuro membro da NATO, terra de pilotos de rallies e Fórmula 1 e pátria de dois arquitectos notáveis, Alvar Aalto e Eero Saarinen, e nada mais — é um verdadeiro símbolo dos nossos valores culturais e civilizacionais. Assim sendo, só resta regressar, concordando, a “O Sentimento dum Ocidental”: “Nas nossas ruas, ao anoitecer/ há tal soturnidade, há tal melancolia/ Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/ Despertam-me um desejo absurdo de sofrer”.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
Ilustração: Hugo Pinto

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