Por
Miguel Sousa Tavares,
in Expresso,
13/10/2023
“Eles são animais e vamos tratá-los como tal”, esta declaração do ministro da Defesa de Israel, Yoav Galant, referindo-se aos palestinianos do Hamas (ou a todos os de Gaza?), ficará para a história, mas está errada. Os animais não fazem aquilo, só os homens são capazes de matar a sangue-frio inocentes por ódio irracional, por simples prazer ou em nome de Deus. Neste caso, em nome de Alá, o Misericordioso. Por temor, chamamos bestas aos animais que nos assustam, mas é a bestialidade humana que caminha connosco desde sempre e que faz da História da Humanidade um relatório incompreensível de atrocidades sem fim. Mas se elas são inexplicáveis à luz daquilo que nos imaginamos ser, a sua classificação moral é tão mais simples quanto maior é o horror. O ataque do Hamas de 7 de Outubro, visando essencialmente civis indefesos, é o horror, a bestialidade em estado puro. Cada um daqueles atacantes, no seu prazer assassino, não tem perdão nem justificação alguma. E sobre este ponto não há mais nada a dizer. O que não significa que isto possa ser o início ou o fim da conversa.
Esta história dura há 78 anos e é uma interminável saga de conflitos, guerras e massacres, que talvez um dia acabem por pegar fogo a todo o planeta. Dura desde a criação do Estado de Israel por deliberação da ONU, em 1948, e ocupando 77% do território da Palestina, onde quase todos eram palestinianos. Hoje, 74% são judeus e 21% palestinianos e o Estado de Israel, à revelia das Resoluções da ONU, ocupa 90% do território, incluindo Jerusalém Este, tem 250 mil colonos ilegalmente instalados na Cisjordânia e fez de Gaza, onde vivem mais de 2 milhões de palestinianos cercados por um muro, “a maior prisão a céu aberto do mundo”, nas palavras do ex-Presidente francês Sarkozy. Nenhum povo, nenhuma nação do mundo, excepto a mais desprezível, deixaria de se revoltar, e pelas armas também, contra aquilo que necessariamente veria como uma ocupação da sua terra. O “nosso” lado da narrativa pode chamar terrorista ao outro lado, como outrora a Autoridade Inglesa na Palestina chamava terroristas aos comandos judeus — dos quais um viria a ser primeiro-ministro de Israel. Sem dúvida que podemos chamar terroristas aos militantes do Hamas que atacaram um festival de música, matando, mutilando e raptando inocentes: vimos as imagens do ataque, vimos os corpos dos mortos e a proximidade da violência não permite outra linguagem. Mas o que chamaremos aos pilotos dos F-16 israelitas que, em retaliação (e antes até, por várias vezes) atacam edifícios de habitação em Gaza, sabendo que lá dentro estão civis, velhos, mulheres, crianças? A única diferença é que aqui as vítimas não estão num festival de música mas em suas casas, e, embora morram às dezenas de cada vez e sob cada bomba, não os vemos a morrer nem temos imagens da proximidade dessa violência. Mas não ignoramos que há um piloto treinado para a guerra que deliberadamente ataca alvos onde sabe que pode causar mais mortes civis. E há um Estado ocupante que se reserva o direito de cortar a água, a alimentação, a electricidade e a energia a mais de 2 milhões de civis cercados por um muro que ele ergueu, e manifestamente empenhado em fazê-los desaparecer todos dali, de uma vez por todas. E onde estão agora as vozes daqueles que tanto se indignaram, acusando a Rússia, de usar “a arma da fome”, quando esta, invocando, e com razão, o incumprimento do acordo de exportação de cereais pelo Mar Negro, recusou a sua renovação?
Podemos sempre dizer que não há inocentes nesta longa e fatídica história. Será verdade no que diz respeito ao terror e às retaliações mútuas sucessivas, mas não o é no que diz respeito à História.
Só por má-fé é possível ignorar que há um lado que funciona à revelia do direito internacional e das Resoluções do Conselho da Segurança da ONU e que tudo tem feito e fará para evitar que jamais exista um Estado Palestiniano viável ao lado do Estado de Israel. E há outro lado que tem o direito de não se conformar com isso.
Israel tem direito à sua existência e à sua segurança, os seus cidadãos têm direito a uma vida normal na terra que escolheram. E o outro lado, os do outro lado, também. Há dias vi na televisão o presidente da Associação de Amizade Portugal-Israel, lastimando-se, compreensivelmente, que os seus familiares em Israel tivessem de estar a refugiar-se em bunkers para se protegerem dos rockets do Hamas. Gostaria de lhe ter perguntado se, apesar de tudo, preferia sabê-los ali, protegidos pelo Iron Dome israelita contra os pífios foguetes palestinianos, ou na Faixa de Gaza, ao alcance dos mísseis da Força Aérea e da artilharia de Israel.
E não vale a pena virem com o argumento da superioridade moral, política e constitucional do Estado de Israel comparativamente ao mundo árabe. Claro que todos nós — eu, pelo menos — me revejo incomparavelmente mais no que são os valores de Israel, sobretudo os seus valores fundadores, do que naquilo que são os valores das sociedades islâmicas. Mas não só esses valores têm regredido drasticamente em Israel sob a influência sinistra dos ortodoxos e a liderança política desse traste que é “Bibi”, ao ponto de hoje pouco distinguir o fanatismo religioso do poder israelita do dos islamistas, como foi Israel quem fomentou a emergência do Hamas, contra o laico e muito mais moderado OLP, segundo o velho princípio de dividir para reinar. E quanto à questão de fundo, mesmo sem discutir o fundamento moral do argumento, acho que a História já nos deu suficientes lições para não valer a pena insistir na tese da ressurreição do espírito das Cruzadas. Depois do Iraque e do Afeganistão, já era tempo de este clube de idiotas que governam o mundo aprenderem alguma coisa de útil sobre o passado.
Portanto, afinal de contas, não é assim tão complicado: olhar o mal nos olhos e não desviar o olhar; entender a raiz do mal, sem o desculpar; procurar a solução que sabemos justa; e aplicar a mesma lei a todos, amigos e inimigos. Houve 70 anos para fazer isto e nada foi feito. Agora, chegados a este ponto, é esperar que os animais à solta se transformem milagrosamente em seres humanos lúcidos.
2 Se o Orçamento é, por natureza, uma gestão de expectativas futuras, o meu receio é que este Orçamento seja optimista demais. Continuar com um superavit nas contas públicas, manter apoios sociais, arrancar a sério com o investimento público e cessar as cativações, baixando para alguns os impostos directos e apostando numa descida da inflação, parece-me demasiado bom num ano que se anuncia com duas guerras no horizonte e instabilidade garantida nos mercados de combustíveis. Para quem paga impostos, a grande notícia é, finalmente, a actualização dos escalões do IRS, pondo fim à sua indecente subida sub-reptícia todos os anos, e a descida das taxas, mas só para quem ganha até €2 mil por mês — os outros são ‘ricos’. É que, tal como explicou esta semana Pedro Nuno Santos, os portugueses deviam deixar de pedir a descida do IRS, pois que se só 58% deles é que o pagam e, destes, só 17% pagam a sério, descê-lo para todos significaria ter de cortar na despesa pública ou ter de deixar de viver dos poucos pagadores esforçados.
Como sempre, o Orçamento tem coisas boas e coisas más, cuja análise não cabe agora aqui. E, como sempre, a oposição, toda ela, é contra o Orçamento — todo ele. Certamente terá ocasião de justificar melhor e mais detalhadamente porquê. E seguramente irá um pouco mais fundo do que a apreciação do líder da oposição, ao classificar o Orçamento como “pipi e betinho”. Francamente, Luís Montenegro é candidato a quê — a ser o mais engraçadinho do Café Central de Espinho?
P.S. — Sérgio Furtado, jornalista da TVI, que eu não conheço pessoalmente, acaba de receber o prémio Mário Mesquita de Jornalismo, da Sociedade Portuguesa de Autores, de que confesso desconhecia a existência. Fraco reconhecimento para quem tem feito na Ucrânia um longo e reiterado trabalho de reportagem de guerra — autêntico e não encenado, como alguns fazem, nomeadamente os repórteres-vedeta da CNN Internacional. Corajoso, objectivo, imparcial e despido de sensacionalismo: um verdadeiro exemplo daquilo que o jornalismo deve ser, mesmo nas mais difíceis circunstâncias. E neste país em que, a começar pelo Presidente da República, a mais banal das personagens é alcandorada ao estatuto de herói, este homem que diz não querer “estar apenas de passagem” por um país em guerra, para melhor o compreender, é digno de todo o respeito e admiração. Que a sorte o acompanhe sempre!
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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