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domingo, 30 de junho de 2019

"República de juízes, não. Obrigado."


Obviamente que defendo a separação de poderes: o legislativo, o executivo e o judicial. Trata-se de um princípio básico da democracia, onde o poder, desconcentrado, evita o abuso. Mas uma coisa é a separação de poderes, outra é cada um deles denunciar que funciona em roda livre e de forma absoluta. Não aceito a partidarização da Justiça, a ingerência política, mas distancio-me da ex-Procuradora-Geral da República quando afirmou que "(...) se o Ministério Público não tiver autonomia face aos outros poderes do Estado, como vem, aliás, na Constituição, não consegue levar a julgamento quem devia levar (...)". É que o problema não é esse, mas sim de escrutínio no quadro dessa mesma separação de poderes. Se o cidadão ou qualquer instituição deve estar em permanente escrutínio, tal também deve-se aplicar aos membros do poder judicial na esfera das suas competências. Identifico-me assim, totalmente, com o artigo de Miguel Sousa Tavares, publicado na última edição do Expresso

"Indo direito ao assunto: eu sou contra a independência e mesmo contra a autonomia funcional do Ministério Público. Assim mesmo, sem cerimónias nem paninhos quentes. Tenho alguns bons amigos que são magistrados do MP e que, além de amigos que estimo pessoalmente, são profissionais que admiro pela forma como desempenham a sua função e como vêem a sua justa importância — com espírito de serviço público e não com delírios de grandeza corporativa ou de casta moralmente superior. Mas acontece que também já conheci o inverso: justamente por defender isto que defendo, já fui tratado em julgamentos onde me sentei apenas como réu de crimes de liberdade de imprensa (e, com excepção de uma vergonhosa sentença, sempre absolvido) como se fosse um perigoso criminoso, pelos magistrados do MP de serviço ao tribunal. E tive de engolir em silêncio revoltado a sua arrogante vingança sobre as minhas ideias, exactamente porque são autónomos e independentes e não há ninguém a quem me possa queixar deles, excepto um órgão chamado Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), em cuja composição estão em maioria, administrando portanto uma justiça interpares. Ou seja, um simulacro de justiça. (...)"

Todos os actos lesivos do Estado devem ser motivo de investigação. A teia da corrupção, de múltiplos contornos, não podem passar ao lado da Justiça. Há um dever de tentar acabar com ela, erradicá-la, gerando um cultura de responsabilização e uma mentalidade que esbata tais tentativas. Mas como escreveu Carlos Esperança, "(...) é tão perigosa a ingerência governamental na magistratura judicial como a captura do Estado por qualquer das magistraturas. República de juízes, não. Obrigado".

Mas vale a pena ler o restante texto de Miguel Sousa Tavares:
"(...) Mas os meus irrelevantes exemplos pessoais não são o que pesa na minha posição de princípio. Ela é fruto de longa e ponderada reflexão — desde logo, olhando para o exemplo contrário do que acontece em países como a Alemanha, a França, os Estados Unidos, cuja natureza democrática do regime não consta que alguém ponha em causa pelo facto de o MP local não gozar da autonomia e independência de aqui goza. Mas é, sobretudo, fruto de uma reflexão resultante de uma longa observação da forma como tantas vezes um só magistrado do MP, actuando em roda livre, sem ter de prestar satisfações a ninguém durante ou depois, conseguiu roubar a liberdade a alguém, destruir a sua reputação na praça pública, liquidar a sua vida profissional e familiar, para no fim se concluir que tinha estado assanhado em cima de um inocente ou de alguém cuja culpabilidade não conseguiu provar. Dir-me-ão: “Bem, quando se persegue o crime, é aceitável poder-se enganar”. E eu respondo: “Não, não é aceitável. Quando se tem o poder de privar alguém da liberdade, de destruir a sua vida profissional e pessoal, de liquidar o seu bom nome, não se pode falhar. E, quando se falha, tem de se pagar.” Mas eles não pagam. Nunca. São irresponsáveis, inamovíveis, impunes, inatingíveis. São a única classe profissional em Portugal que não pode ser julgada disciplinarmente por ninguém que não eles próprios (nem sequer os juízes beneficiam de tal estatuto!), que não respondem perante um poder externo nem perante um poder interno hierárquico. São intocáveis. A ex-procuradora-geral Joana Marques Vidal dizia há dias que se se alterasse este estatuto os procuradores-gerais passariam a ser uma espécie de rainhas de Inglaterra. Mas é curioso que o diga quando o seu antecessor Pinto Monteiro dizia o contrário: que, com este estatuto, era a rainha de Inglaterra que ele se sentia, sem sequer poder dar ordens aos procuradores de que é superior hierárquico. Quanto ao ministro da Justiça, esse, é apenas uma figura decorativa, que não tem poderes para definir e executar qualquer politica de justiça, cabendo-lhe apenas inaugurar instalações, ouvir reclamações e discursar na abertura do ano judicial.
Esta semana, os magistrados do MP estiveram três dias em greve. Contra os projectos de lei do PS e do PSD de alterações aos Estatuto do MP — mudando apenas a composição do CSMP, que deixaria de ser maioritária e obrigatoriamente formada por magistrados do MP. Já tinham feito greve pelos mesmo motivo em Fevereiro e agora voltaram à carga, mesmo sabendo que as suas principais objecções estavam chumbadas à partida, pelo próprio e amedrontado Governo. Se em Fevereiro fora uma greve preventiva, agora foi uma greve punitiva, só pela intenção: para se ver quem manda na matéria. Uma greve contra um projecto de lei de deputados, ainda por cima condenado à partida, não é nada mau para quem acusava os deputados de se intrometer no princípio da separação de poderes... Mas a greve manteve-se, explicou o sindicato, porque, veja-se lá o desplante, das dezanove alterações que o sindicato queria ver na lei, só estavam asseguradas doze! Lá ficaram, como o sindicato queria, a manutenção da composição maioritária dos seus pares no CSMP; lá ficou, como pretendiam, a equiparação salarial dos magistrados do MP aos juízes, com a correspondente possibilidade de ultrapassarem no topo o vencimento do primeiro-ministro (uma situação que deve ser única no planeta); lá ficou a autonomia financeira, mais isto e mais aquilo. E ficou o princípio de que qualquer entidade, pública ou privada, tem de colaborar com o MP, “facultando documentos e prestando os esclarecimentos e informações solicitadas” — mas, para grande indignação do sindicato, com a ressalva de os senhores magistrados terem de justificar esse pedido de devassa absoluto. Ah, não tenham mão neles não!"
Na véspera, o sindicato tinha, aliás, promovido uma espécie de roadshow sobre as iminentes ameaças à democracia que resultavam da simples ideia de alterar a composição do CSMP. Para tornar a coisa abrangente, convidaram dois eméritos representantes da sociedade civil, ou que imaginaram como tal: o primeiro era o agora nomeado justiceiro-mor e pregador moral do reino, João Miguel Tavares, o qual logo retribuiu a distinção escrevendo no “Público” que tudo se resumia a uma tentativa do PS e PSD para proteger os corruptos contra a nobre luta dos intrépidos magistrados do MP — o argumento popular ad terrorem que nunca falha; o segundo era esse modelo de jornalista, ex-“Correio de Manhã” e agora “Sábado”, Eduardo Dâmaso. E, perante o campeão da violação do segredo de justiça, em estreita e íntima colaboração com magistrados do MP, Joana Marques Vidal afirmou que os responsáveis habituais por essas violações eram os polícias e os advogados dos arguidos. Não sei se a sala se riu ou corou de vergonha, mas sei por que razão os “rigorosos inquéritos” às violações do segredo de justiça ficaram sempre no armário do arquivo permanente. Também é por esta razão que eu sou contra a autonomia e independência do MP.

Porém, são mais importantes as outras razões. É certo que um MP sob a alçada do poder político é um risco sempre presente. Mas, apesar de tudo, é um risco controlado: pelos outros poderes, pela imprensa, pela própria dignidade dos magistrados do MP e da sua hierarquia, de que só eles parecem duvidar à partida. Mas quem controla o risco da sua total independência, que, com o actual estatuto, equivale a total impunidade? Quem nos garante que quando investigam um político ou um empresário não é por razões políticas ou pessoais? Quem nos garante que quando não investigam não é por razões obscuras? 

Quem nos garante que estão dispostos a investigar um colega com o mesmo empenho que investigam um político? Quem nos pode garantir que não abrem investigações ou as fecham em benefício de interesses escondidos? Que não promovem fugas de informação para disfarçar a sua incompetência ou para ajustes de contas? E, sobretudo, quem nos pode garantir que os mais sérios e mais competentes ficam com os processos mais importantes? Quem, finalmente, responde pela seriedade de quem não aceita responder a não ser perante um círculo fechado de pares? A que órgão independente nos podemos queixar dos abusos da independência do Ministério Público?
Não nos deixemos enganar: é disto que se trata quando o Ministério Público grita aos quatro ventos que está ameaçada a sua autonomia e independência. Outros pensarão diferente, com toda a legitimidade, mas, como vivemos em democracia, é isto que eu penso. E não estou na política, não exerço cargos públicos, não concorro a dinheiros do Estado, não tenho negócios e, tanto quanto sei, não sou suspeito de qualquer crime.
Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 28 de junho de 2019

CONTRADIÇÕES


FACTO

Na edição de hoje do DN-Madeira sobressaem duas peças muito interessantes. 1ª 107 milhões de Euros para o PAMUS (Plano de Acção de Mobilidade Urbana Sustentável). 2ª Adiadas as obras urgentes de requalificação do bloco operatório e da urgência de adultos do Hospital Dr. Nélio Mendonça.

COMENTÁRIO

Considero de interessante análise pelo que delas ressaltam. Começo por esse tal PAMUS. A consultora externa a quem o governo solicitou o trabalhinho, pelo que li (o jornalista, com toda a certeza, transmitiu o mais relevante) desconhece os vários trabalhos já realizados, pela Câmara e pelo Governo, no que concerne à mobilidade urbana. Trabalhos e preocupações evidenciadas desde os primórdios dos anos 90 (quase 30 anos). Há muito que os problemas estão diagnosticados e que determinaram soluções para os dois fluxos de mobilidade: os movimentos pendurares, das freguesias periféricas do Funchal para o centro e regresso; e os movimentos horizontais entre Câmara de Lobos e Machico, concelhos que, para além de vida económica própria, cresceram no parque habitacional tornando-se nos grandes dormitórios da cidade do Funchal. Por isso, muito se bateu o Engº Danilo de Matos pelos "Park & Ride", periféricos ao grande centro. Vários foram construídos com essa intenção primeira. Lembro-me, entre outras, da proposta de criação de uma central de camionagem (Dr. Raimundo Quintal) e lembro-me, até, da proposta que fiz de criação de três ciclovias nas três fatias planas do Funchal: o eixo entre o porto e o Almirante Reis; o eixo entre o Mercado dos Lavradores e a Rotunda do Infante; e o eixo Campo da Barca e o final da Rua da Carreira. Na altura escrevi que se tratava de "novos hábitos a aprender". Hoje, tantas cidades, dispõem de bicicletas e de trotinetes no âmbito da mobilidade sustentável. 
Muito poderia adiantar sobre esta matéria, pelas vivências práticas e porque li e participei em alguns debates enquanto vereador do Município do Funchal, só que não sou especialista e não gosto de abordar, com profundidade, sectores que não domino na plenitude. Agora, enquanto cidadão,  o governo publicitar um assunto como se fosse uma novidade, alto e parém o baile, procurem os trabalhos já realizados e apliquem os 107 milhões em outras prioridades.
Por falar de prioridades, aí estão o bloco operatório e as urgências do hospital. Perguntem aos cidadãos onde o dinheirinho deve ser aplicado! O problema é que os políticos gastam e poucas vezes são responsabilizados. Só quando existe prova de fraude e de participação económico em negócio. De resto, fazem na vida pública aquilo que, certamente, não fazem nas suas vidas privadas.
Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Os malefícios dos benefícios


Alexandre Abreu, 
in Expresso Diário, 20/06/2019)

Um bom sistema fiscal deve ser simples, transparente, justo, proporcionar os recursos adequados à atividade do Estado e não implicar custos excessivos (incluindo em termos de dispêndio de tempo) nem para a administração fiscal nem para os contribuintes. Sobre isto é possível toda a gente ou quase concordar, independentemente da posição política – ao mesmo tempo que naturalmente se diverge sobre quão progressiva deve ser a fiscalidade e sobre qual deve ser o alcance da provisão pública.


O uso – ou abuso – generalizado dos benefícios fiscais no sistema fiscal português é, à luz dos critérios em cima, um fracasso em toda a linha. O grupo de trabalho criado pelo Governo há um ano para estudar esta questão apresentou esta semana as suas conclusões, tendo encontrado 542 benefícios fiscais diferentes que, no seu conjunto, implicam uma despesa fiscal (perda de receita fiscal estimada) correspondente a perto de 12 mil milhões de euros - cerca de 6% do PIB, ou mais do que o orçamento anual do Estado para a saúde.
Mais grave do que isso, concluiu o mesmo grupo de trabalho, é o facto de não estarem contabilizados de forma minimamente rigorosa e sistemática nem os custos nem os benefícios da grande maioria dos benefícios fiscais que têm vindo a ser criados de forma ad hoc ao longo dos anos. Cerca de um quarto destes benefícios nem sequer tem uma função definida – não se conhece ao certo o objetivo económico ou social que se pretende com eles alcançar.
O sistema português de benefícios fiscais é um emaranhado de exceções, lacunas e escapatórias, principalmente em sede de IRS e IRC, que é tudo menos simples e transparente, servindo interesses particulares mal definidos e beneficiando desproporcionalmente quem melhor domina os meandros labirínticos da legislação e consegue fazer-se valer disso.
A essa dimensão de injustiça acresce a que resulta do facto de os benefícios fiscais serem em geral uma forma socialmente regressiva de despesa. Veja-se o exemplo da proposta, ainda esta semana retomada pelo CDS, de os residentes no interior do país pagarem metade do IRS. Quando temos em conta que perto de metade das famílias portuguesas (as de menores rendimentos) não paga IRS devido a não terem rendimentos suficientes para tal, percebemos facilmente que esta medida beneficiaria essencialmente as famílias do interior que auferem maiores rendimentos – as mais pobres não teriam qualquer vantagem – e que o benefício será tanto maior quanto mais elevados forem os rendimentos das famílias em questão. Por baixo de uma capa aparentemente benigna, esconde-se uma proposta fortemente regressiva em termos sociais, nomeadamente face à alternativa de reforçar o investimento público e os apoios sociais dirigidos ao interior, que têm um efeito muito mais transversal e progressivo.
Os benefícios fiscais reduzem os recursos que permitem financiar a atividade do Estado, aumentam a opacidade e complexidade do sistema fiscal e são uma fonte importante de injustiça e regressividade. Devem por isso ser excecionais, rigorosamente avaliados nos seus custos e benefícios e preverem mecanismos automáticos de caducidade. Em boa hora este grupo de trabalho começou a olhar para este problema, avançando com propostas neste sentido que o Ministério das Finanças parece ver com bons olhos. Resta agora agir em conformidade.

quarta-feira, 19 de junho de 2019

FUTEBOL... A BOLA VAI REBENTAR!


Raramente reflicto sobre assuntos do futebol, particularmente, o do sector profissional. Porém, as últimas semanas, aguçaram-me o apetite. Ligo a televisão ou a rádio e só oiço milhões, muitos milhões para este e para aquele. Milhões a rodos por transferências, na esmagadora maioria dos casos ascendendo a valores absolutamente pornográficos. Desde há muito que tenho consciência que se ultrapassou o limite do razoável e do bom senso. Porém, as "vendas" continuam em crescimento. Abordo esta questão de uma forma livre, em jeito de desabafo, sem qualquer... eu sei lá como hei-de de me expressar, vou pela palavra mais fácil, sem qualquer inveja, apenas guiado pela observação da loucura total que está aos olhos de todos.  


Dir-me-ão que se trata de empresas de natureza privada. Eu sei que a generalidade funciona segundo tais princípios. O talento do futebol é, desde há muito, mercadoria transacionável. É o negócio que comanda tais empresas. Mas também não é menos verdade que uma grande parte dos clubes apresenta sinais de falência ou se encontram sob a alçada das instituições internacionais para cumprirem o designado fair-play financeiro. O que me leva a pressupor que não sabendo quando se verificará o estoiro, certamente, para lá caminham. A bola vai rebentar!
O problema é que toda esta azáfama que polariza as atenções da generalidade dos canais de comunicação, com "debates" estéreis, em horário nobre, normalmente, em redor do nada, acabam por ser ofensivos face a tantos dramas vividos na(s) sociedade(s), particularmente, no quadro da pobreza. Não quero entrar em comparações despropositadas (serão?), por exemplo, trazendo para cima da mesa os míseros salários de cientistas, de investigadores e, entre outros, aqueles que lutam contra o relógio do tempo no campo da ciência que conduz à solução para muitas doenças; tampouco quero entrar no campo dos laureados com um Prémio Nobel, dos artistas, escritores ou, então, dos que participam ao mais alto nível em outras modalidades desportivas. Mas pela minha cabeça passam, forçosamente, as disparidades, os desequilíbrios, a alucinação colectiva pelo espectáculo, a especulação de uns que reduzem a competição desportiva, leia-se campeonato(s) nacional(is) de futebol, a três equipas, com as restantes a comporem o ramalhete dos interesses. 
Creiam, que este é, apenas, um desabafo, onde muito fica por equacionar!
Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 18 de junho de 2019

O Padre José Martins Júnior "colocou-se no sítio certo... ao lado do povo".


Face à revogação da suspensão "a divinis" de que foi vítima o Padre José Martins Júnior (1977), a avaliar pelo que li nas redes sociais, largas centenas de pessoas congratularam-se pela corajosa decisão do Senhor Bispo Nuno Brás. Inclusive, a generalidade dos comentários deixados foram de uma enorme satisfação pela revogação de uma pena injusta, inqualificável, grotesca e desonesta. Li, também, no DIÁRIO, as manifestações de agrado, oriundas de todos os quadrantes da sociedade, política ou não, ah, menos de figuras do poder político maioritário regional. Significativo. Certamente, porque a má consciência está presente.


Conhecem todo o enredo montado, os interesses políticos que estiveram em jogo, as manobras de bastidores no sentido de abafar uma voz verdadeira e dissonante, perigosa para os desígnios do poder absoluto. Inventaram, conflituaram e espezinharam um Homem que utilizou a Palavra no sentido da construção de uma sociedade de justiça social em todos os quadrantes. Não pregou a fé e a caridade, mas as causas e os valores para uma vida feliz com direitos e deveres. 
Aliás, o livro publicado pelo seu irmão, Dr. Bernardo Martins, "O 25 de Abril em Machico", no seguimento da sua Dissertação de Mestrado, superiormente orientada pelo Historiador Professor Doutor Nelson Veríssimo, conta, ao pormenor, toda a História dos factos. Li-o e consolidei, uma vez mais, a substancial diferença entre o inventado, o distorcido, as histórias produzidos pela maldade dos interesses mesquinhos e a verdade Histórica devidamente documentada.
Andaram nisto 42 anos. O Padre Martins Júnior tornou-se, em 1977, "oficialmente" um clandestino na sua própria terra. Ou, talvez não, porque o povo da Ribeira Seca, dos mais velhos aos mais novos, dos mais abastados aos mais pobres, entenderam-o e sentiram de que lado estava a verdade, em contraponto com toda a maquiavélica estrutura intencionalmente montada. Compreenderam a sua obra, o seu dinamismo, a sua seriedade e os seus posicionamentos políticos, económicos, financeiros, sociais e culturais. Mantiveram-se ao seu lado, dando e recebendo, de um um Homem culto, crente, humilde e de fortíssimas convicções. Fizeram exactamente o contrário dos bispos anteriores, os dois últimos, curiosamente, condecorados pela República, o primeiro dos três, com um busto a perpectuar a sua "obra partidária".
O novo Bispo, Nuno Brás, não sei se por sugestão da hierarquia, corajosamente, repito, porque o contexto político regional continua complexo, colocou um ponto final neste filme de um produtor sem qualidade e de má memória, de maus realizadores e de actores secundários de trazer por casa. Está, por isso, de parabéns. Penso que era a única saída possível. Tardia, é certo, mas correcta. Em vida. Espero que continue o seu múnus pastoral que o obriga, por bom senso, a relegar a promiscuidade política de quatro décadas. 
É óbvio que o Senhor Bispo tem de ser político, porque prega a PALAVRA (Cristo foi magistralmente político) mas não pode e não deve ser partidário. Os que lhe antecederam deixaram uma marca que só o tempo se encarregará de apagar. Relembro uma entrevista ao DIÁRIO, na qual o Padre Martins Júnior tocou, de forma incisiva, neste aspecto: "(...) Ninguém pode servir a dois Senhores. Ou se serve a Cristo ou se serve o Poder (...)". É este o cerne da questão. Espero, por isso, que Sua Excelência Reverendíssima inverta a caracterização que recentemente fiz: 

"(...) A Palavra de Cristo pouco tem interessado, antes os desejos e compromissos políticos de outros que ordenam, sem ordenar, os formatos comportamentais. O poder político adora essa humilhação, de trazer a Igreja pela trela e, por seu turno, à Igreja, sempre lhe faltou a coragem necessária para mantê-lo em sentido. São muitas as dívidas de mútua gratidão!"

Por tudo isto e a propósito, tenho presente uma excelente síntese de um texto do Senhor Padre José Luís Rodrigues, a qual deve merecer atenção: "(...) A Igreja perdeu o inferno, o céu vai no mesmo caminho, dizem que os jovens não querem saber da Igreja para nada, os casais mandam às urtigas todas as directrizes morais que a Igreja lhes reclama, a sociedade em geral emancipou-se faz tudo sem a referência ao religioso, a cultura actual funciona muito bem sem a Igreja, a vida é possível sem a doutrina da Igreja (...)" E mais adiante: "ninguém deseja uma Igreja apenas zeladora do património, que se preocupa apenas com os bens deste mundo, qual senhor rico que se gasta com as transações do mercado e com as papeladas burocráticas que ditam a posse e o domínio da propriedade (...) Precisamos de encontrar uma Igreja aberta ao mundo, a este mundo concreto da nossa vida, onde o normal já não é o unanimismo da nossa fé (...)".
Assino, sem pestanejar!

Deixo aqui, finalmente, entre outros, um texto que publiquei em Dezembro de 2018.  



A história da suspensão "a divinis" do Padre José Martins Júnior é conhecidíssima. É uma história que envergonha, desde logo, os três bispos após o 25 de Abril (Santana, Teodoro e Carrilho) e, por extensão, a própria Igreja da Madeira. Há, neste processo, um silêncio cúmplice de muita gente, em um evidente favor ao poder político, que acaba por ser desprestigiante para uma Igreja que fala e fala de amor e de misericórdia. Ora bem, digo eu, marimbem-se para as questões do Direito Canónico, e se, em tempo útil, o padre Martins não reclamou para as instituições superiores aquela não sustentada pena eclesiástica, imposta por um bispo em fúria, tenham a coragem de o julgar (o inalienável direito ao contraditório) ou verguem-se e peçam perdão pelas atitudes tomadas nos anos 70. Só é grande quem é humilde e isto vale para pessoas ou instituições. É execrável que andem há quarenta anos a triturá-lo, contra a vontade do povo da Ribeira Seca, a perseguir um Homem de enorme sensibilidade e humanidade. Tomara que muitos líderes seguissem o seu exemplo. Ainda ontem ouvi uma entrevista com o especialista em assuntos religiosos, Manuel Vilas Boas, jornalista da TSF que, a determinada altura, enalteceu: o Padre José Martins Júnior "colocou-se no sítio certo... ao lado do povo".
Parabéns à SIC pelo programa "Vidas Suspensas", uma oportunidade de todo o país conhecer a história e o pensamento de um Homem da Igreja, vítima do poder subterrâneo e submisso dessa Igreja, como disse Vilas Boas, "que não tem a mesma sensibilidade" para estar junto do povo. E é verdade. É sensível um genérico desajustamento entre a Palavra e a prática.
É claro que, do meu ponto de vista, o Padre Martins Júnior não tem a sua vida suspensa. É um Homem culto, característica que falta a muitos da hierarquia católica. Está consciente dos valores que o guiam e da missão que abraçou e desenvolve. O Povo gosta dele. Quem está no lado errado são aqueles que deram o primeiro passo, que atiraram a primeira pedra, negaram a Verdade, rasgaram a História e contrariaram a Palavra, por egoísmo e serviço ao poder político-partidário. Com isso ganharam umas migalhas. Parafraseando José Martins Júnior, a hierarquia reza, não pensa!

Martins Júnior foi suspenso porque "era comunista", alegou o bispo Santana. E que fosse! O bispo Santana referiu que até "sabia o número dele" no PCP! Ao ponto que chegou a mesquinhez. Martins Júnior é, sim, e tais bispos sabem, um Homem da solidariedade que serve a Igreja, que serviu o País na guerra colonial, serviu a Região enquanto autarca e deputado e até serviu o sistema educativo. Um Homem que não se deixou acorrentar aos tortuosos caminhos de um poder político castrador do pensamento. É um Homem de pensamento LIVRE. E isso teve e tem os seus custos.

Mas se fosse um homem vinculado a um partido político de direita, aí sim, teria sido abençoado e colocado no altar dos interesses da Igreja. Tudo isto deixa-me triste pelo Amigo, mas sobretudo pela triste imagem que a Igreja oferece. Aos bispos Teodoro e Carrilho, confessem-se, não se refugiem no Direito Canónico, peçam perdão, tal como o Papa Francisco o fez por outros motivos e circunstâncias. Respeitem mais de 50 anos de sacerdócio do Padre Martins Júnior. O Bispo António Carrilho deveria ter presente que muitos têm consciência das suas palavras relativas ao Bispo Francisco Santana, quando falou das suas qualidades humanas e da sua "lucidez e coragem" por ter defendido "intrepidamente as suas ovelhas" (05/03/2011). Está tudo dito. Se o problema nunca foi resolvido foi por conivência e plena aceitação dos interesses político-partidários.
Da minha parte fica aqui a confissão: estou cada vez mais próximo da Palavra de Cristo e cada vez mais distante dos homens que a violam. Porque uma coisa é ter Cristo como orientador dos princípios de vida; outra, é ser um católico vítima de uma instituição que se vende aos bocados. E por aí não vou.
Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 17 de junho de 2019

FINALMENTE UM BISPO PÕE FIM À VERGONHA


É um dia de felicidade para mim, ao tomar conhecimento que o Senhor Bispo Nuno Brás revogou "a suspensão do padre Martins Júnior, que tinha sido decretada, em 27 Julho de 1977, pelo Bispo Francisco Santana". Finalmente, um bispo põe fim a uma vergonha de 42 anos, de uma inexplicável suspensão que os factos históricos provam terem sido completamente distorcidos. 

Uma suspensão iníqua que passou pelos Bispos Teodoro de Faria e António Carrilho, ambos coniventes com a estratégia política que sustentou a suspensão "a divinis" do Padre Martins Júnior.
Sou Amigo deste sacerdote, um Homem de convicções fortes, de uma vasta cultura, com quem se aprende a todo o momento, pelo que diz e pelo que escreve no seu blogue "Senso&Consenso". Valeu a sua saudável teimosia, os princípios e os valores que o orientam, a longa e serena espera por este dia, o sofrimento interior que o marcaram mas não o vergaram. 
Padre Martins, comungo da sua felicidade. Os outros, são apenas os outros. Não ficam na História.
Parabéns Senhor Bispo Nuno Brás pela sua clarividência.
Ilustração: Google Imagens.

sábado, 15 de junho de 2019

Sérgio Moro ou a caricatura de um juiz


Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
15/06/2019


1 Não é lícito afirmar que a revelação de que Sérgio Moro andou a combinar com a acusação a melhor forma de condenar o ex-Presidente Lula da Silva serve, por si só, para arrasar toda a acusação e pôr em causa a condenação. É preciso não esquecer que esta foi confirmada em recursos por dois tribunais superiores, embora com o ambiente político devidamente montado para tal e com alguns pormenores que dão que pensar (um juiz pronunciou-se a favor da culpabilidade de Lula antes de ter lido o processo, a assistente de outro celebrou previamente nas redes sociais o desfecho do recurso que ainda não fora julgado). Mas também não é possível sustentar que nada de essencial muda depois de conhecidas as indecentes conversas mantidas entre Moro e dois procuradores, as suas tentativas para impedir, com sucesso, que Lula desse uma entrevista que poderia, segundo eles, pôr em causa a vitória eleitoral de Bolsonaro ou os indícios de que Moro terá manobrado de forma a que o processo Lava Jato fosse parar a Curitiba e às suas mãos. Haja ou não matéria legal para exigir uma revisão de todo o processo de Lula — sobretudo, após conhecido o mais que o “Interceptor Brasil” irá revelar — uma coisa tornou-se evidente e não pode ser negada de boa-fé: Sérgio Moro tinha uma motivação política pessoal contra Lula da Silva. Estava pessoalmente empenhado em que Lula fosse afastado das presidenciais, para as quais partia como favorito, e que Bolsonaro fosse eleito Presidente.
O mínimo de decoro teria recomendado que o juiz se remetesse ao seu trabalho em Curitiba, coberto de glória para metade dos brasileiros, após ter conseguido enfiar na prisão por 13 anos o homem que foi o mais popular Presidente do Brasil. Mas a agenda política de Moro não se esgotava aí e ele nem hesitou em dar o passo fatal, com o qual arrancou a máscara: aceitar ser ministro da Justiça no Governo do Presidente que ajudara a eleger a partir da sua posição como juiz. Nem mesmo na equipa de Trump se desceu tão baixo, em termos de confusão entre a Justiça e a política.

Mas só se admirou quem quis: Sérgio Moro já tinha mostrado a sua verdadeira face quando, igualmente por motivação política, resolver “vazar” uma escuta telefónica ilegal entre a Presidente Dilma Rousseff e Lula. Quando um banal juiz de 1ª instância não só ordena ilegalmente uma escuta ao próprio Presidente da República, como depois ainda se permite divulgá-la na imprensa, é óbvio que estamos perante um homem perigoso demais para exercer a magistratura. Moro mostrou que se achava acima da lei, pior ainda: que podia usar os poderes que a lei lhe dava como muito bem entendesse, inclusive para o combate político, em que não devia participar, por estatuto. E muito embora depois se tenha declarado arrependido do seu acto, só realmente uma grande envolvência política de suporte ao “herói” Sérgio Moro justifica que a magistratura brasileira não lhe tivesse imediatamente indicado a porta da rua.

Sérgio Moro, que é vedeta convidada e reconvidada em Portugal, tem escrito na cara aquilo que é: um justiceiro e não um juiz. E pior do que um mau juiz é um juiz-justiceiro, aquele que acredita na sua superioridade moral sobre o comum dos homens e que julga que o direito está ao serviço da sua moral, nem que para isso tenha que fazer tábua-rasa dos direitos alheios. É eloquente que até um dos procuradores escutados a conspirar com ele, Delton Dellagnol, tenha manifestado dúvidas sobre o êxito de uma acusação que não assentava em nenhuma prova directa, mas só nessa figura tropical do “delator premiado”. Moro condenou um homem de setenta anos a 13 de cadeia, condenou um ex-Presidente da República pelo pior dos crimes que lhe poderiam ser imputados — o de corrupção — sem ter contra ele uma só prova directa da acusação feita: uma escuta, uma escritura, um contrato, um papel, um testemunho independente que confirmassem que Lula era, de facto, o dono ou, pelo menos, o usufrutuário do célebre triplex na praia que parece ter recebido como corrupção. Eu, pessoalmente, gostaria muito de perguntar ao ex-juiz Sérgio Moro como é que ele sabe, quando está perante um delator premiado, que este está a dizer a verdade ou apenas a verdade que interessa à acusação e ao próprio delator, que assim será “premiado”. Porque a tal delação premiada — que muitos dos nossos magistrados do Ministério Público bem gostariam de ver introduzida no nosso Código de Processo Penal — não é outra coisa que não um testemunho comprado. E se é crime a defesa comprar testemunhas, por que razão poderá a acusação fazê-lo ao abrigo da lei?

Ciao, Sérgio Moro. Começou como juiz impoluto, idolatrado por muitos; desacreditou-se como juiz independente e imparcial quando saltou para a política nos braços do homem que ajudara a eleger contra aquele que mandara prender; e agora jaz soterrado sob um mar de lama que nenhum Lava Jato poderá limpar. Mesmo na prisão, culpado ou inocente, Lula da Silva é muito mais livre do que ele.

2 Mais três autarcas constituídos arguidos sob suspeita de corrupção — mais os inevitáveis crimes associados de branqueamento de capitais e evasão fiscal. Sem pôr de forma alguma em causa a presunção de inocência, direi, em abstracto, que não me espanta que metade dos casos de corrupção investigados ou julgados diga respeito a autarcas. Porque, ao contrário, do que é politicamente correcto dizer, o governo de proximidade é uma forma de tentação acrescida e não de transparência acrescida. É aquilo a que chamo “o poder fatal” — o lugar onde, longe dos olhos de quase todos, o poder aí existente é o maior empregador, o maior contratador, o maior distribuidor de dinheiros públicos. Contra as malfeitorias de um ministro, temos um Parlamento, um Tribunal de Contas, uma imprensa nacional para nos defender: contra as de um presidente de Câmara de pequena ou média dimensão, temos o silêncio dos dependentes. E todos sabemos que, infelizmente, desde que haja ladrão, a ocasião vai sempre ter com ele. É uma das razões pelas quais a regionalização, tão ansiada por alguns, me deixa logo de cabelos em pé.
Não obstante, estas mega-operações de justiça mediática deixam-me sempre um sentimento ambíguo. Às vezes até parece que é pela anunciada grandiosidade da operação — dezenas de magistrados, centenas de investigadores, dúzias de buscas, milhares de páginas de documentos apreendidos, tudo devidamente publicitado aos quatro ventos — que se pretende fazer prova prévia da culpabilidade dos suspeitos. Suspeitos que as autoridades logo transformam em arguidos e a opinião pública em corruptos, sem mais. E por vezes sucede que, desencadeada a mega-operação, nada mais acontece durante meses ou anos. Demasiados processos ficam parados ou jamais chegam a julgamento e demasiadas pessoas, que tanto podem ser culpadas como inocentes, carregam sobre os seus ombros uma sentença popular de corrupção inapagável. Que ela existe e é também demasiada, não tenho dúvidas. Que ela precisa de todos os meios para ser investigada, também não. Mas não haverá forma melhor de o fazer mais depressa e com menos danos colaterais?
3 Eis outra coisa que se repete de ano para ano: a falta de parte dos meios aéreos previstos para o combate aos incêndios, porque o desfecho de concursos está suspenso em tribunal, após reclamação dos vencidos. Este ano são 17 os meios aéreos cuja entrada ao serviço está pendente de uma decisão da Justiça sobre o resultado de dois concursos. Mas os incêndios não esperam pela Justiça e por isso pergunto: não será possível que os concursos imponham a obrigatoriedade do vencido prescindir de reclamar o resultado do concurso? Ou, ao menos, prever uma tão grande penalização em caso de indeferimento judicial, que os concorrentes pensem duas vezes antes de reclamarem sistematicamente, de cada vez que perdem o concurso?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sexta-feira, 14 de junho de 2019

OS ERROS FUNDAMENTAIS


FACTO

O secretário regional da Saúde, Pedro Ramos, disse que a saúde “não precisa de populismo nem se constrói com demagogia fácil, mas com propostas concretas, sensatas e construtivas (...) É impossível termos sucesso com a ignorância e a incompetência, ausência de conhecimentos e apenas interesses pessoais (...)". Fonte: DN-Madeira.

COMENTÁRIO

Absolutamente de acordo. Quanto ao populismo e demagogia julgo que, então, deve demarcar-se dos cartazes que por aí andam; relativamente às propostas concretas, já é tempo de apresentá-las, porque o cidadão sabe onde está, mas desconhece para onde desejam ir.
Quanto à segunda parte da declaração, também já é tempo dos políticos perceberem, primeiro, que a "sabedoria" não está toda de um lado, sendo todos os outros "ignorantes e incompetentes". Ademais, a Democracia exige a audição de todos os espaços ideológicos e partidários, pelo que, ao contrário do que foi dito, todos têm o dever de contribuir para a solução de um problema que a todos diz respeito. 
Julgo que foi o Filósofo Gaston Bachelard que sublinhou: "Não há uma verdade fundamental, apenas há erros fundamentais".
Tanto assim é que, nesta Legislatura, no sector da Saúde, a Região regista três secretários!
Ilustração: Google Imagens.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Quem sabe, SABE!


NOTA

Um desejo meu: que o Dr. Carlos Pereira faça parte de um futuro governo da República. Por aqui, infelizmente, aplica-se o ditado: "santos da casa...".

quarta-feira, 12 de junho de 2019

“A era do humanismo está terminando”



Achille Mbembe (1957, Camarões francês) é historiador, pensador pós-colonial e cientista político; estudou na França na década de 1980 e depois ensinou na África (África do Sul, Senegal) e Estados Unidos. Atualmente, ensina no Wits Institute for Social and Economic Research (Universidade de Witwatersrand, África do Sul).



NOTA

O artigo foi publicado, originalmente, em inglês, no dia 22-12-2016, no sítio do Mail & Guardian, da África do Sul, sob o título “The age of humanism is ending” e traduzido para o espanhol e publicado por Contemporeafilosofia.blogspot.com, 31-12-2016. A tradução é de André Langer.

“Não há sinais de que 2017 seja muito diferente de 2016.
Sob a ocupação israelense por décadas, Gaza continuará a ser a maior prisão a céu aberto do mundo.
Nos Estados Unidos, o assassinato de negros pela polícia continuará ininterruptamente e mais centenas de milhares se juntarão aos que já estão alojados no complexo industrial-carcerário que foi instalado após a escravidão das plantações e as leis de Jim Crow.
A Europa continuará sua lenta descida ao autoritarismo liberal ou o que o teórico cultural Stuart Hall chamou de populismo autoritário. Apesar dos complexos acordos alcançados nos fóruns internacionais, a destruição ecológica da Terra continuará e a guerra contra o terror se converterá cada vez mais em uma guerra de extermínio entre as várias formas de niilismo.
As desigualdades continuarão a crescer em todo o mundo. Mas, longe de alimentar um ciclo renovado de lutas de classe, os conflitos sociais tomarão cada vez mais a forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões mortais.
A difamação de virtudes como o cuidado, a compaixão e a generosidade vai de mãos dadas com a crença, especialmente entre os pobres, de que ganhar é a única coisa que importa e de que ganhar – por qualquer meio necessário – é, em última instância, a coisa certa.

Com o triunfo desta aproximação neodarwiniana para fazer história, o apartheid, sob diversas modulações, será restaurado como a nova velha norma. Sua restauração abrirá caminho para novos impulsos separatistas, para a construção de mais muros, para a militarização de mais fronteiras, para formas mortais de policiamento, para guerras mais assimétricas, para alianças quebradas e para inumeráveis divisões internas, inclusive em democracias estabelecidas.

Nenhuma das alternativas acima é acidental. Em qualquer caso, é um sintoma de mudanças estruturais, mudanças que se farão cada vez mais evidentes à medida que o novo século se desenrolar. O mundo como o conhecemos desde o final da Segunda Guerra Mundial, com os longos anos da descolonização, a Guerra Fria e a derrota do comunismo, esse mundo acabou.
Outro longo e mortal jogo começou. O principal choque da primeira metade do século XXI não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo.
O capitalismo e a democracia liberal triunfaram sobre o fascismo em 1945 e sobre o comunismo no começo dos anos 1990 com a queda da União Soviética. Com a dissolução da União Soviética e o advento da globalização, seus destinos foram desenredados. A crescente bifurcação entre a democracia e o capital é a nova ameaça para a civilização.
Apoiado pelo poder tecnológico e militar, o capital financeiro conseguiu sua hegemonia sobre o mundo mediante a anexação do núcleo dos desejos humanos e, no processo, transformando-se ele mesmo na primeira teologia secular global. Combinando os atributos de uma tecnologia e uma religião, ela se baseava em dogmas inquestionáveis que as formas modernas de capitalismo compartilharam relutantemente com a democracia desde o período do pós-guerra – a liberdade individual, a competição no mercado e a regra da mercadoria e da propriedade, o culto à ciência, à tecnologia e à razão.
Cada um destes artigos de fé está sob ameaça. Em seu núcleo, a democracia liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo financeiro. É provável que o choque entre estas duas ideias e princípios seja o acontecimento mais significativo da paisagem política da primeira metade do século XXI, uma paisagem formada menos pela regra da razão do que pela liberação geral de paixões, emoções e afetos.

Nesta nova paisagem, o conhecimento será definido como conhecimento para o mercado. O próprio mercado será re-imaginado como o mecanismo principal para a validação da verdade. Como os mercados estão se transformando cada vez mais em estruturas e tecnologias algorítmicas, o único conhecimento útil será algorítmico. Em vez de pessoas com corpo, história e carne, inferências estatísticas serão tudo o que conta. As estatísticas e outros dados importantes serão derivados principalmente da computação. Como resultado da confusão de conhecimento, tecnologia e mercados, o desprezo se estenderá a qualquer pessoa que não tiver nada para vender.

A noção humanística e iluminista do sujeito racional capaz de deliberação e escolha será substituída pela do consumidor conscientemente deliberante e eleitor. Já em construção, um novo tipo de vontade humana triunfará. Este não será o indivíduo liberal que, não faz muito tempo, acreditamos que poderia ser o tema da democracia. O novo ser humano será constituído através e dentro das tecnologias digitais e dos meios computacionais.
A era computacional – a era do Facebook, Instagram, Twitter – é dominada pela ideia de que há quadros negros limpos no inconsciente. As formas dos novos meios não só levantaram a tampa que as eras culturais anteriores colocaram sobre o inconsciente, mas se converteram nas novas infraestruturas do inconsciente. Ontem, a sociabilidade humana consistia em manter os limites sobre o inconsciente. Pois produzir o social significava exercer vigilância sobre nós mesmos, ou delegar a autoridades específicas o direito de fazer cumprir tal vigilância. A isto se chamava de repressão.
A principal função da repressão era estabelecer as condições para a sublimação. Nem todos os desejos podem ser realizados. Nem tudo pode ser dito ou feito. A capacidade de limitar-se a si mesmo era a essência da própria liberdade e da liberdade de todos. Em parte graças às formas dos novos meios e à era pós-repressiva que desencadearam, o inconsciente pode agora vagar livremente. A sublimação já não é mais necessária. A linguagem se deslocou. O conteúdo está na forma e a forma está além, ou excedendo o conteúdo. Agora somos levados a acreditar que a mediação já não é necessária.
Isso explica a crescente posição anti-humanista que agora anda de mãos dadas com um desprezo geral pela democracia. Chamar esta fase da nossa história de fascista poderia ser enganoso, a menos que por fascismo estejamos nos referindo à normalização de um estado social da guerra. Tal estado seria em si mesmo um paradoxo, pois, em todo caso, a guerra leva à dissolução do social. No entanto, sob as condições do capitalismo neoliberal, a política se converterá em uma guerra mal sublimada. Esta será uma guerra de classe que nega sua própria natureza: uma guerra contra os pobres, uma guerra racial contra as minorias, uma guerra de gênero contra as mulheres, uma guerra religiosa contra os muçulmanos, uma guerra contra os deficientes.
O capitalismo neoliberal deixou em sua esteira uma multidão de sujeitos destruídos, muitos dos quais estão profundamente convencidos de que seu futuro imediato será uma exposição contínua à violência e à ameaça existencial. Eles anseiam genuinamente um retorno a certo sentimento de certeza – o sagrado, a hierarquia, a religião e a tradição. Eles acreditam que as nações se transformaram em algo como pântanos que necessitam ser drenados e que o mundo tal como é deve ser levado ao fim. Para que isto aconteça, tudo deve ser limpo. Eles estão convencidos de que só podem se salvar em uma luta violenta para restaurar sua masculinidade, cuja perda atribuem aos mais fracos dentre eles, aos fracos em que não querem se transformar.
Neste contexto, os empreendedores políticos de maior sucesso serão aqueles que falarem de maneira convincente aos perdedores, aos homens e mulheres destruídos pela globalização e pelas suas identidades arruinadas.
A política se converterá na luta de rua e a razão não importará. Nem os fatos. A política voltará a ser um assunto de sobrevivência brutal em um ambiente ultracompetitivo.
Sob tais condições, o futuro da política de massas de esquerda, progressista e orientada para o futuro, é muito incerto. Em um mundo centrado na objetivação de todos e de todo ser vivo em nome do lucro, a eliminação da política pelo capital é a ameaça real. A transformação da política em negócio coloca o risco da eliminação da própria possibilidade da política. Se a civilização pode dar lugar a alguma forma de vida política, este é o problema do século XXI.”

terça-feira, 11 de junho de 2019

Dançar na corda bamba com as PPP


Francisco Louçã, 
in Expresso Diário, 
11/06/2019)

O incêndio nacional sobre as PPP da saúde é revelador de duas tensões que nos vão acompanhar por muito tempo: a mais prosaica, a devoção partidária, que não tem nada de novo se não a subida da temperatura com a aproximação de eleições, e a mais consequente, a disputa sobre o programa neoliberal para Portugal.


É uma fatia pequena do orçamento do SNS, garante o primeiro-ministro. Não, são dois mil milhões de euros por legislatura. Mais do que isso, dão aos hospitais privados a gestão de grandes hospitais públicos e esta é a primeira grande porta aberta na concessão de serviços essenciais aos privados. As PPP são por isso uma vitória estratégica do programa neoliberal e todas as escaramuças a que assistimos se medem por essa bitola: nem a direita, nem os grupos económicos aceitarão um recuo depois de terem estabelecido este poder. Com as PPP, os grupos empresariais promovem a ideologia da eficiência do privado (mas os gestores são em vários casos os mesmos, veja-se um secretário de Estado da saúde do PS transferido para presidente da Associação dos Hospitais Privados), dirigem vastas equipas de pessoal da saúde que também mobilizam para os seus próprios hospitais e ainda procuram tornar hegemónica a ideia de que os contribuintes devem pagar uma renda à finança para nos prestarem cuidados vitais.

Na saúde está a disputar-se a batalha mais importante do programa neoliberal. Vai ser feroz e não ficará por aqui.

Esta trincheira é essencial porque é até hoje a única. Em Portugal os governos conseguiram a privatização dos CTT e concessões de transportes públicos, mas sabem que é muito mais impopular prosseguir esse vendaval nos serviços essenciais para a vida.
Não há uma alma que se atreva a clamar pela entrega das universidades públicas à gestão pelas privadas. Houve tentativas para entregar parte do bolo da segurança social à gestão por fundos de pensões, mas ficaram pelos ensaios. Não se atreveram ainda a propor a gestão privada das prisões ou dos cemitérios, virá o dia.
No fim das contas, só têm as PPP da saúde e querem manter esse portal, nada os impede de ansiar por uma nova oportunidade em que cresça o número dos hospitais presos em tal labirinto. Na saúde está a disputar-se a batalha mais importante do programa neoliberal. Vai ser feroz e não ficará por aqui.
As posições partidárias são, por isso, coerentes – na maior parte dos casos. Percebo bem a posição da direita, que representa o interesse desses grupos financeiros. Faz o seu papel e com brio. Não vai desistir, mobilizará todos os meios institucionais em nome dos Mello, da Fosun e de quem vier. Percebo também a contradição do PS, em que tanta gente, seguindo Arnaut, acha que há hoje condições para que o Estado proteja o seu SNS separado dos privados, que fazem o seu negócio nos seus estabelecimentos, mas cujo governo decidiu manter a avenida para os grupos financeiros. Fá-lo no momento mais difícil e de maior suspeita sobre todas as PPP, quando a Polícia Judiciária vai ao hospital de Cascais, se sabe que doentes foram internados em casas de banho e refeitórios em Vila Franca de Xira e há indicações de manipulação das listas de consultas em Loures.
Em todo o caso, se o PS se deu sempre bem com a anterior Lei de Bases de Cavaco Silva (teve maioria absoluta entre 2005 e 2009 e não lhe tocou), agora a sua escolha estratégica é manter as PPP. Percebo a posição do Bloco, que apresentou a lei escrita por Arnaut e Semedo e que insiste na requalificação da estrutura do SNS, na promoção das carreiras profissionais, no fim das PPP e na universalização dos cuidados. Percebo também que abra caminho a uma solução que simultaneamente faça aprovar uma Lei de Bases com um novo quadro, conseguindo retirar dele as parcerias e revogar a sua legislação, e que leve para as eleições de outubro a escolha sobre o futuro dessa gestão privada da coisa pública.
Só vejo vantagem em que, em vez do impasse atual, se caminhe para a obrigação de todos os partidos inscreverem nos seus programas eleitorais a resposta a estas duas questões: querem ou não que os hospitais privados continuem a gerir os públicos, e que aliança vão estabelecer para concretizar a sua escolha.
Tenho em contrapartida dificuldade em perceber a posição do PCP, pois sempre admiti que se oporia à gestão pelos grupos privados, mas o certo é que permitiu que durante semanas o governo anunciasse que tinha o seu voto garantido para a continuidade das PPP, sem que houvesse uma palavra de desmentido. Jerónimo de Sousa alimentou esta charada ao afirmar que “as PPP não são o alfa e ómega” da Lei, a imprensa e as televisões deram por certo esse voto vezes sem conta e um editorial de um jornal, defendendo a posição do governo, chegou mesmo a apresentar esse compromisso como o exemplo a seguir. Presumo apesar disso que o voto final esclarecerá a sua posição.
Outros preferiram a conveniência, o que consigo compreender quando a devoção política se impõe. Um médico, Mário Jorge, subscreveu numa semana uma carta “ao secretário-geral do PS no sentido de se opor a esta formulação (da lei proposta pelo governo), propondo que a gestão dos estabelecimentos do SNS seja pública. É que as PPP configuram um inequívoco conflito de interesses entre quem opera no mercado dos cuidados de saúde e gere simultaneamente estabelecimentos do sector público”, e, na semana seguinte, sabendo que o PS quer mesmo manter o “inequívoco conflito de interesses”, apelou à esquerda para o aceitar, dado que “hipervalorizar as PPP desvalorizando o que já foi conseguido” é “uma atitude irrealista pouco consentânea com a defesa do SNS”.
Em qualquer caso, se há uma lição destas semanas, é não se dança na corda bamba em matéria de PPP. Ou Portugal as enterra ou dá vencimento ao programa neoliberal que as promove. Afinal, há mesmo uma diferença entre a esquerda e a direita.
PS - Conheci António Arnaut e privei com ele, sobretudo nos seus últimos anos de vida. Sei porque quis escrever uma Lei de Bases com João Semedo. Conheci o João, passei anos ao lado dele, vivemos muita vida juntos, fomos deputados ao mesmo tempo, partilhámos responsabilidades, conversámos sobre a sua experiência como diretor de hospital e como doente. Sei porque quis escrever uma Lei de Bases com Arnaut. E sabemos todos, concordemos ou não, porque propuseram nessa lei acabar com as PPP. Sabemos todos porque é que, na sessão de Coimbra em que a Lei foi apresentada, Semedo disse que “as PPP transformaram o SNS na banca de investimento do negócio privado da saúde. Não há uma só boa razão para que continue a ser assim”. Por isso, quando leio um editorial de um jornal a apelar à consagração das PPP na Lei de Bases em nome da memória de Arnaut e Semedo, aprendo com tristeza que a ignomínia não tem limites.

sexta-feira, 7 de junho de 2019

O Presidente anunciou a marcelização do regime


Por estatuadesal
Daniel Oliveira, 
in Expresso Diário, 
05/06/2019

Todos os comentadores, quando falam da realidade política, intervêm e mudam essa realidade. Somos todos criadores de factos políticos. Escusamos, portanto, de nos colocar de fora para vir com a lengalenga do “não matem o mensageiro”. O mensageiro, neste caso, produz mensagem, não se limita a transportá-la. Ainda assim, uma coisa é certa: quem ocupa cargos institucionais fala sempre como ocupante desses cargos. Nunca está, quando fala, a fazer análise política.


O Presidente da República não é um jornalista, um analista ou um cientista político. É um agente político, e todas as suas intervenções, do telefonema público para a Cristina Ferreira aos comentários aos resultados eleitorais das europeias, devem ser lidos e ouvidos como atos políticos com um propósito. Não é relevante discutirmos se Marcelo Rebelo de Sousa tem razão quando diz que “há uma forte possibilidade de haver uma crise na direita portuguesa nos próximos anos”. É relevante discutirmos porque quis o Presidente da República anunciar uma crise política na direita.
Marcelo não adivinha nenhuma crise de regime ou da direita. Anuncia a marcelização do regime. Ele quer ser o tampão popular contra o populismo, o contrapeso à esquerda na crise da direita, o fator de estabilização de maiorias frágeis, tudo o que nos sobra
Não fazendo estes comentários parte do que se espera de um Presidente, resta-nos especular. E parece-me óbvio que o Presidente quer justificar uma maior presidencialização do regime. Não constitucional, mas de facto. Uma presidencialização de que deu sinais quando se atreveu a anunciar que vetaria uma lei ainda sem conteúdo se não tivesse o voto do PSD. Para sermos justos, porque não me recordo de teorias presidencialistas do constitucionalista Rebelo de Sousa, ele quer justificar a marcelização do regime. É o próprio Marcelo que diz que a crise da direita “explica por que é o equilíbrio está como está” e “porque é que o Presidente, pelo menos neste momento, é importante para equilibrar os poderes”. Não podia ter sido mais claro no objetivo.
Anda muita gente a discutir se Rui Rio compreende a crise em que está enfiado ou se nega as evidências ditas pelo Presidente. Não sei se esperam que um líder de um partido se ponha a fazer autoanálise a quatro meses das eleições.
E se acham que Marcelo é apenas um mensageiro, um analista que apenas nos transmite factos, e não um agente político que pensa no seu poder. A notícia não é o que Marcelo disse sobre a direita, é ter dito que a direita que sobra é ele e o que isso nos anuncia sobre o papel que pretende desempenhar depois das legislativas.
O que Marcelo Rebelo de Sousa explicou à direita é que a única forma de haver um contrapeso à esquerda que ele não deixou de proteger nos primeiros anos de “geringonça” é pôr as fichas todas nele. Marcelo não adivinha nenhuma crise de regime ou da direita. Marcelo faz, como sempre fez, análise para alimentar a sua ambição. A questão que sobra é se ele próprio deseja a crise da direita que o deixa sozinho do palco. Eu diria que sim. A crise da direita e a fragilidade do futuro governo. Tudo em nome da marcelização do regime. Ele quer ser o tampão popular contra o populismo, o contrapeso à esquerda na crise da direita, o fator de estabilização de maiorias frágeis, tudo o que nos sobra. É isso que ele quer que o povo oiça.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Os censores do Facebook em acção


Pacheco Pereira, in Público, 
01/06/2019)

“Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado” (George Orwell)



Já não é a primeira vez que o Facebook do Arquivo Ephemera, que divulga os materiais publicados numa outra plataforma EPHEMERA, e que quase não tem conteúdo próprio, é sujeito à censura e à punição associada de interdição de publicação. Os censores são anónimos, embora tenhamos uma ideia de onde se encontram e onde foram recrutados, não existindo mecanismo de recurso nem dada resposta aos protestos. Eu sei que o Facebook tem uma consciência pesada e está na defensiva, pelas gigantescas asneiras que tem feito, mas convinha não acrescentar mais ao rol. E, embora o Facebook seja uma empresa privada, está sujeita à lei e à Constituição portuguesas, não tendo legitimidade para decidir sobre o que é “discurso de ódio” ou não. E, se há alguém, nos denunciantes, incomodado, que recorra aos tribunais. É o tipo de processo que gostaríamos de ter para ver até que ponto há ou não liberdades, quais são os seus limites e qual a sua natureza.
Falemos em concreto: nesta censura. Os censores do Facebook têm obrigação de fazer distinções e de saber o que estão a censurar e onde estão a censurar. O contexto é relevante, e obriga a fazer distinções. Não sei qual o grau de literacia dos censores, mas não podem reagir pavlovianamente quando vêm uma cruz gamada e, lembro, de passagem, para prevenir os nossos antifa, que chegará o tempo em que serão as foices e martelos e os símbolos anarquistas censurados, a continuar assim.
No caso do Ephemera não estão a censurar um site racista, ou islamofobo, ou conspirativo, ou defendendo a acção directa seja para pôr bombas, seja para libertar animais de laboratórios, ou um local feito com uma identidade falsa pelos serviços secretos russos, ou pelos amigos de Steve Bannon para divulgar fake news, nem para manipular eleições, nem um site pornográfico ou pedófilo, nem um apelo à revolução armada para derrubar o capitalismo ou a incendiar carros. Estão a censurar um arquivo que pretende documentar tudo isto, para memória do presente, porque tudo isto existe e precisa de ser guardado e estudado.
As publicações de materiais do Arquivo Ephemera não são prosélitas e não discriminam nenhuma área do espectro político, incluindo as margens e os extremos. Esses materiais destinam-se, em primeiro lugar, a documentar e fixar para a memória futura a contemporaneidade, e basta só viajar no tempo para perceber que se tivéssemos guardado idênticos documentos no passado conhecíamos hoje muito melhor a nossa história. Temos os grafitos de Pompeia porque o vulcão os conservou na cinza, mas perdemos todos os dias centenas de milhares de materiais, a que a história dá contexto, deliberadamente censurados, do Holocausto ao Gulag. O Facebook ajuda a tornar a frase de Orwell actual.
Claro que há muito material sensível e desagradável, num mundo cada vez mais tribal e policiado na sua linguagem. Entre o material recolhido há cartazes artesanais com obscenidades, fotografias de desenhos eróticos nas paredes, grafitos com genitália, proclamações racistas, manifestos anti-islâmicos, anti-religiosos, teorias conspirativas, propaganda da violência das touradas, papéis da extrema-direita à extrema-esquerda, cobrindo vários grupos radicais animalistas, feministas, LGBT, reaccionários, anti-cíentificos, negacionistas, etc.
Nunca censuramos nada, mas tomamos precauções quanto à protecção de dados privados, seguindo as boas regras dos arquivos nesta área. Fazemos uma avaliação entre o privado e público para determinado tipo de papéis, como é a correspondência, evitando também os exageros burocráticos de muita legislação europeia que limita os arquivos públicos. O bom senso é um critério, e por isso houve momentos em que abrimos excepções: um insulto homofóbico a um político português numa pichagem, um papel colado em postes e candeeiros denunciando um hipotético pedófilo com nome e morada, e retiramos uma imagem de uma pequena manifestação a pedido do retratado que considerava poder perder o emprego se o patrão visse a fotografia. Neste último caso, hesitámos bastante, porque quem vai a uma manifestação dá a cara em público - é esse o sentido de se “manifestar” - mas considerámos que podia haver um prejuízo real e retiramos. Mas guardamos tudo o resto.
Usamos o mesmo critério para publicar tudo o que publicamos, seja uma manifestação dos lesados do BES, seja um protesto contra uma urbanização, seja uma manifestação do PNR, seja um protesto do MAS, seja uma manifestação a favor dos colégios privados, ou contra o aborto, ou a favor do uso de canábis. E seja uma manifestação da Nova Ordem Social que diz que “Salazar faz muita falta”. Qual é o problema que eles achem que Salazar faz muita falta? Será que os censores vão também cortar os panfletos salazaristas do Estado Novo, os apelos à pena de morte na Assembleia Nacional, as fotografias dos massacres em Angola? Posso garantir-vos que são muito mais perigosos do que o saudosismo de um Salazar imaginário inventado pela Nova Ordem Social, com imagens de nulo valor propagandístico a que só a censura atribui significado. Acresce que no mesmo dia, publicamos uma entrada sobre a contra-manifestação. Deveria ser censurada?
Eu sei que publicar este artigo pode implicar retaliações e ainda mais censura dos anónimos censores numa sala qualquer escondida em Lisboa. Pode ser. Mas, por cá, não temos a cultura de levar e calar, e o ascenso da censura nos dias de hoje deve ser combatido sem transigências.