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segunda-feira, 21 de julho de 2025

Padre António Ramos (1941-2022), uma evocação


Por
19/07/2025
Publicado no Jornal "7Margens"
Aqui divulgado sob autorização

“Irmão” Ramos: madeirense, padre próximo, professor e pedagogo, crítico do Estado Novo e dos poderes



Ordenado padre a 14 de Agosto de 1966, na Sé do Funchal, o “irmão” Ramos, como gostava que o tratassem e o modo como se dirigia a todas as pessoas, foi professor do Seminário e do ensino público. Nas diversas paróquias onde exerceu o múnus pastoral e nas escolas onde deu aulas não deixou ninguém indiferente. Foi ainda um dos subscritores da “Carta a um Governador”; capelão militar na Guiné; e impedido pelo Governo Regional, no ano lectivo de 1979/80, de exercer funções no conselho directivo da Escola Preparatória da Ribeira Brava.

António Ramos Teixeira da Silva nasceu em Santana – um dos concelhos do norte da Madeira – a 7 de Abril de 1941 e faleceu no hospital do Funchal, no dia de Natal de 2022, com 81 anos. Era, então, pároco do Piquinho e Preces, paróquias do arciprestado de Santa Cruz, Machico.

Quando, em Agosto de 2016, completou 50 anos de sacerdócio, a Paróquia do Piquinho – Caramanchão, em Machico, editou um pequeno livro de “Homenagem ao Nosso Irmão”.

O texto, uma iniciativa do então seminarista Patrício de Sousa – actual pároco na Ponta do Sol e na Tábua –, «em gratidão pela amizade e ajuda no seu percurso vocacional e por tudo aquilo que tem realizado pela Paróquia do Piquinho ao longo destes anos», foi, em grande parte, baseado num trabalho inserto na revista Olhar, publicação do Jornal da Madeira, em 12 de Agosto de 2006, da autoria da jornalista Élia Freitas, no qual o padre Ramos recorda a sua vida dedicada à Igreja e aos outros.

Ao longo de quatro páginas, a jornalista enaltece a «vida de um homem que soube evangelizar dentro e fora da Igreja, com o seu testemunho e maneira de estar na vida, quer na escola como professor, quer como pároco, amigo e camarada»: «Por onde passou, deu-se sempre bem com todos e foi bem acolhido; o segredo para quem não conhece o Padre Ramos é o seu humanismo, a maneira cordial e simples como trata as pessoas e uma forma particular de se aproximar dos outros chamando-os de “irmãos”».

Concluída a instrução primária (4ª classe, actual 4º ano de escolaridade), na sua terra natal, na Escola de São Francisco de Sales (na altura, sob a direcção das Irmãs Vitorianas) António Ramos, aos 12 anos, ingressou no Seminário de Nossa Senhora da Encarnação, no Funchal: «A ideia de ser padre foi uma descoberta e uma vocação que se foi fazendo ao longo da minha caminhada de jovem, na participação com os grupos de jovens (…) Decidi ser padre não por influência da família, mas com muita influência do Padre Doutor Abel Augusto da Silva que, na altura, era o reitor do seminário» (Abel Augusto da Silva foi director do Jornal da Madeira durante um curto período de tempo, entre meados de Fevereiro e fins de Outubro de 1974; sucedeu-lhe Alberto João Jardim, nomeado pelo então novo bispo da diocese, Francisco Santana).

“Uma grande aventura”


Foto: Direitos Reservados

Local do antigo seminário no Funchal, onde o padre Ramos foi prefeito; a equipa formadora introduziu mudanças mal recebidas pelo bispo e o director, Paquete de Oliveira, teve de sair da diocese para evitar ser preso. 

Após a ordenação sacerdotal, e durante quatro anos, António Ramos foi professor (lecionou matemática e ciências) e prefeito no referido seminário. Trabalhou em estreita colaboração com o então padre José Manuel Paquete de Oliveira que, no ano lectivo 1966/67, fora nomeado director pelo à época bispo do Funchal, D. João António da Silva Saraiva, com a incumbência de o transformar em colégio diocesano, aberto a alunos externos.

De entre as mudanças introduzidas por Paquete de Oliveira sobressaiu o recurso a professores leigos (homens e mulheres), uma forma de proporcionar aos alunos/seminaristas uma maior abertura ao mundo. Uma decisão que, aliás, se inseria no espírito do Concílio Vaticano II, mas que, como revelou a jornalista Isabel Nery, em Setembro de 2014, numa conferência integrada nas comemorações dos 500 anos da Diocese do Funchal, foi recebida como «um escândalo»: «O argumento de que escolhia os de melhor currículo de nada valeu e, em 1969, o bispo chama-o para lhe dizer como se comprometera com as autoridades locais a retirá-lo da diocese para evitar ser preso.»

Do grupo de professores contratados faziam parte, entre outros, Francisco Simões (escultor), Jorge Marques da Silva (pintor e artes plásticas), Luís de Sousa Melo (foi director do Arquivo do Funchal), Jorge Atouguia (foi presidente do Conselho de Gestão do Liceu do Funchal), Adília Andrade e Natália Pais (ambas fundadoras e dirigentes do Sindicato dos Professores da Madeira). Imbuído desse mesmo espírito conciliar, de atenção ao mundo e aos sinais dos tempos, o padre Ramos não teve quaisquer dúvidas em considerar que se tratou de “uma grande aventura”.

É também nesses quatro anos que António Ramos se envolve no trabalho da Acção Católica na Madeira, de modo particular com a JOC (Juventude Operária Católica), colaborando com o assistente diocesano dos movimentos operários (adultos e juvenis), o padre doutor João da Cruz Nunes.

Em simultâneo, participa nas actividades do CCO (Centro de Cultura Operária), contribuindo designadamente para dotar muitos jovens, e até adultos (operários, caixeiros, empregados de escritório e de outras profissões) do mínimo de escolaridade, a chamada 4ª classe. Por essa via se reduzia a enorme percentagem de analfabetismo que a Madeira registava (nessa altura, como observou o padre Ramos, “dar (tirar) a 4ª classe é como hoje dar o 12ºano”).

Funcionando em regime pós-laboral, essas actividades escolares permitiram igualmente que muitos desses jovens, prematuramente lançados no mundo do trabalho, tivessem condições para obter a melhoria das suas habilitações escolares, uma vez que os preparavam para exames no ensino oficial. Paralelamente, o CCO contribuirá para a formação cívica dos seus membros e participantes, para o exercício de uma cidadania activa e consciente, no reconhecimento do valor social do trabalho e da justiça social.

“Carta a um Governador”, um gesto de coragem



Carta a um Governador, documento subscrito por republicanos, intelectuais, jovens católicos, membros da Juventude Operária Católica e padres. Foto: Direitos reservados.

O ano de 1969 ficará ainda assinalado na vida do padre António Ramos por um acto de intervenção cívica de profundo significado e de coragem. Foi um dos 39 subscritores da denominada “Carta a um Governador”. No prefácio à publicação da sua 3ª edição, o jornalista José Manuel Barroso – um dos principais responsáveis pela sua elaboração –, definiu-o como um documento «desafiante, um requisitório pelas liberdades e pela autonomia» que «conduziria, depois, a uma candidatura da Oposição, pelo círculo do Funchal, nas legislativas do Outono do mesmo ano».

O «factor determinante» desse conjunto de iniciativas foi, como também destaca, a retoma da «edição de um antigo jornal madeirense – o Comércio do Funchal, à volta do qual «se juntam pessoas de pensamento democrático, de várias gerações e de ideário diverso, que comungavam nas palavras-chave de unidade política: democracia e autonomia».

A Carta – «um retrato do Portugal e da Madeira de então» –, datada de 22 de Abril, juntou «velhos democratas republicanos, dos tempos das eleições presidenciais da candidatura do general Delgado; intelectuais e representantes da classe média liberalizante; jovens católicos progressistas, membros da Juventude Operária Católica e até sacerdotes». Estes últimos (no total de cinco) faziam parte do denominado grupo dos “Padres do Pombal” (designação atribuída por se tratar do nome da rua onde quatro deles moravam e local frequentado por outros mais) – o documento foi subscrito por três desses padres: o já mencionado, João da Cruz Nunes (doutorado em Letras pela Faculdade da Universidade de Lisboa), João Arnaldo Rufino da Silva e Gabriel Lino Cabral.

Rufino da Silva tinha obtido formação superior na área da música em Roma e era assistente do Corpo Nacional de Escutas, enquanto Lino Cabral era assistente diocesano de todos os organismos rurais da Acção Católica (jovens e adultos, masculinos e femininos). A Carta foi ainda subscrita por José Maria Araújo que, tal como o padre Ramos, era professor do Seminário da Encarnação. A 11 de Novembro de 1975, a casa onde viviam os referidos “Padres do Pombal” foi alvo de um atentado bombista, com a colocação de uma bomba-relógio, que a danificou profundamente, tornando-a inabitável. Na sequência desse acto terrorista e de um outro que destruiu, a 14 de Janeiro de 1976, um automóvel pertencente a João da Cruz Nunes, os mesmos passaram a viver no território continental e abandonaram o múnus sacerdotal. O mesmo faria, um pouco mais tarde, José Maria Araújo, na altura pároco da Paróquia do Carmo, em Câmara de Lobos, igualmente vítima da hostilidade do partido governamental na Região com a conivência do próprio prelado diocesano.

“Obediência e fidelidade ao Evangelho”



Concílio Vaticano II: os oito padres autores da carta aos deputados reivindicavam o espírito conciliar de justiça, liberdade e paz. Foto © Vatican Media

Seis meses volvidos, a 22 de Outubro de 1969, nas vésperas das aludidas eleições para a Assembleia Nacional, um grupo de oito padres católicos da Madeira endereçou uma carta aos “Senhores Candidatos a Deputados” (listas do regime e da oposição), na qual, recorrendo a inúmeras citações dos Evangelhos, de encíclicas papais e de documentos do Concílio Vaticano II, assumem: «O Evangelho que anunciamos não é neutralidade mas exigência de partilha, de justiça, de liberdade, de verdade e de paz». A posição adoptada, acrescentavam, «é motivada pela obediência e fidelidade ao Evangelho e à Igreja que nos confiou a sua proclamação».

Nessa missiva, os signatários insurgem-se, por um lado, contra a censura vigente, escrevendo que «sem uma informação séria e honesta, livre e sem intimidações não há elementos suficientes para um juízo e, portanto, não poderá cumprir-se o direito elementar de “saber a quem se dá o voto”» (referência a uma nota do Episcopado sobre o processo eleitoral), e, por outro, contra «uma sociedade em que o lucro pessoal e individual seja a regra máxima da organização social, económica e política», proclamando: «A unidade religiosa e a caridade exigem um nivelamento económico-social no ambiente profano em que vivem os cristãos», sendo, por conseguinte, «inaceitável dizer que o Evangelho pode ser igualmente vivido por ricos e pobres, opressores e oprimidos», uma vez que «foi anunciado aos pobres como uma Boa Nova de libertação».

Quatro dos oito padres subscritores, haviam também assinado a “Carta a um Governador” – João da Cruz e Rufino Silva, e José Maria Araújo e António dos Ramos Silva; os restantes eram párocos: António Pedro Alves (Ribeira Brava), José Martins Júnior (Ribeira Seca), José Vieira Pereira (Caniçal) e Mário Tavares Figueira (São Tiago – Corticeiras, Estreito de Câmara de Lobos).

Essas eleições ficariam marcadas por um notório envolvimento de muitos militantes dos organismos operários da Acção Católica, nas iniciativas organizadas pela candidatura da oposição democrática, um facto que levou os próprios deputados eleitos pelo partido único, a União Nacional, a se queixarem junto do então bispo da diocese, D. João Saraiva, tendo os secretariados diocesanos desses quatro organismos sido chamados ao Paço Episcopal. Na ocasião, o prelado haveria de declarar que «o povo não aceitava que os dirigentes da Acção Católica andassem metidos em política» e em defesa da sua tese chegou a afirmar que «ele próprio não tinha ido votar». Em resposta, o assistente diocesano desses movimentos, dr. João da Cruz Nunes, disse que «a atitude de não votar também era fazer política» acrescentando: «Tudo é política».

“Inferno é a ausência de Deus”



António Ramos (ao centro) como capelão militar durante a Guerra Colonial: um “castigo” pelas suas posições. Foto: Direitos reservados.

Como resultado deste compromisso social e do seu envolvimento na pólis, o padre Ramos seria “convidado” – a expressão e a leitura dos acontecimentos é sua – a entrar na Academia Militar para obter a formação como capelão militar e posteriormente ser enviado para um dos três territórios africanos onde as tropas portuguesas combatiam os movimentos de libertação que lutavam pela independência (em Angola, a guerra iniciou-se em Março de 1961, na Guiné em Janeiro de 1963 e em Moçambique em Setembro do ano seguinte).

Sucedeu-lhe exactamente o mesmo a que foram sujeitos os conterrâneos José Martins Júnior e Mário Tavares Figueira: Martins Júnior esteve em Moçambique, na região de Cabo Delgado, e Mário Tavares, no sul da Guiné, junto à fronteira com a Guiné-Conacry. António Ramos seria enviado também para a Guiné, mas para o norte (Guidage), junto à fronteira com o Senegal. Precisamente a região onde o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), graças ao recurso aos mísseis Strela, acabará por virar definitivamente a seu favor a luta armada, iniciada em 1963.

No relato desse período de dois anos em que esteve na Guiné, o padre Ramos não escondeu à revista Olhar as dificuldades no terreno que presenciou: «Em Guidage chegou a ficar oito dias à espera da avioneta, debaixo da terra, devido aos conflitos. “Todos os dias surgiam ataques, é como agora em Israel”, disse. Depois do ataque, os militares tinham de averiguar a origem do mesmo, o que era extremamente perigoso». No livro As Ausências de Deus – No Labirinto da Guerra Colonial, António Loja (também subscritor da “Carta a um Governador”, agnóstico confesso, que entre 1966- 68, como oficial miliciano, comandou uma companhia no teatro da guerra na Guiné, recorre à catequista da sua infância para estabelecer uma analogia entre o dantesco da guerra que viveu por dentro e o inferno: «Inferno, ensinava a catequista da minha infância, é a ausência de Deus».

Nessas declarações à citada revista, o padre Ramos é peremptório: «A guerra, em si, é injusta. A guerra havia porque os povos queriam a sua libertação, autonomia e independência. Nessa altura, Portugal quis adiar contrariando as grandes decisões europeias (…) Portugal quis sufocar o desejo de liberdade dos locais que queriam tornar-se independentes e autónomos. “É um direito dos povos. Mais cedo ou mais tarde tinha de rebentar. Foi isso que sucedeu.» Enquanto a Inglaterra enceta o seu processo de descolonização até 1960 e a França em 1962, em Portugal só em 1974 é que os capitães de Abril criam essas condições.

“A pior guerra”



Igreja da Ribeira Brava: na paróquia, o padre Ramos organizou debates entre os políticos concorrentes às eleições regionais. Foto © Câmara Municipal da Ribeira Brava.

Concluída a comissão de dois anos na Guiné, regressaria à Madeira, onde permaneceu cerca de cinco meses, tendo em 1973 sido novamente mobilizado, desta feita para o norte de Angola, onde a situação era calma. Com o 25 de Abril, assistiu à aproximação entre o Exército português e a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) e em 1975 foi para Luanda, «onde apanhou a guerra civil»: «Os últimos meses em Luanda foram terríveis, até Agosto de 1975 [mês em que regressou à Madeira]. Para mim foi a pior guerra (…) Ninguém estava à espera. Andamos de rastos», salientou. A guerra civil em Angola começou nem dois meses depois do Acordo de Alvor, assinado a 15 de Janeiro de 1975 entre o governo português e os principais movimentos de libertação.

Por isso, não surpreende: «Da guerra, apenas retém os aspectos positivos de formação humana, amizade, camaradagem, o lidar com assuntos quentes da vida familiar e da política bem como acompanhar pessoas que não acreditavam em Deus, mas que acreditavam no padre, para além da descoberta da bondade humana».

O sacerdote, é, por outro lado, muito crítico da descolonização: «Foi um erro. Era preciso dar tempo, faltou maturidade, foi muito precipitada. Faltou responsabilidade política de Portugal, de respeito pelas estruturas que estavam montadas nessas províncias.»

No regresso à Madeira, o padre Ramos foi colocado, como pároco, na Ribeira Brava, onde esteve entre 1975 e 1983. Seguiu-se o Faial até 2002 e posteriormente a paróquia do Carmo, em Câmara de Lobos, até 2004. A partir de então e até à data do seu falecimento assumiu a responsabilidade das paróquias do Piquinho e Preces, situadas em Machico.

Na Ribeira Brava foi, simultaneamente, professor de português na Escola Preparatória e Secundária Padre Manuel Álvares, funções que exerceria igualmente na Escola Básica e Secundária Bispo D. Manuel Ferreira Cabral, em Santana, a partir do ano lectivo em que foi colocado como pároco no Faial, uma das paróquias desse concelho do norte da Madeira.

Como pároco da Ribeira Brava, organizaria, por ocasião das eleições para a Assembleia Regional, debates com a presença das forças políticas concorrentes e na qualidade de professor foi indigitado pela comunidade escolar para integrar, no ano lectivo1979/80, o respectivo conselho directivo. O seu nome seria, porém, vetado pelo Governo regional, chefiado desde Março de 1978 por Alberto João Jardim.

Situação idêntica verificar-se-ia na Escola da Ponta do Sol com Gabriela Relva Gonçalves, activista das lutas dos caseiros e dos produtores de cana sacarina. Já no ano lectivo 1984/85, uma lista que integrava Bernardo Martins, irmão de José Martins Júnior, seria também impedida de exercer funções, para as quais havia sido eleita, no conselho directivo da Escola Preparatória e Secundária de Machico – de acordo com a orientação transmitida às escolas pela secretaria regional da Educação, só eram elegíveis os professores que politicamente «se situassem à esquerda do CDS e à direita do PS». Gabriela Gonçalves e Bernardo Martins tinham ligações à UDP. António Ramos Teixeira da Silva foi “punido”, certamente, por ter estado ligado ao aludido grupo dos “Padres do Pombal”, entretanto desfeito com a partida para Lisboa dos seus principais mentores.

“Os caboucos da utopia”



Escola Básica e Secundária Bispo D. Manuel Ferreira Cabral, projecto ao qual o padre Ramos esteve profundamente ligado. Foto: Direitos reservados.

A edificação da Escola Básica e Secundária de Santana é outro dos projectos a que António Ramos está indissociavelmente ligado. Sob o título “Os caboucos da utopia”, em Junho de 2003, a Escola publicará, numa revista que editou por ocasião do seu 20º aniversário, o testemunho em que o seu professor do 1º grupo narra não só a envolvência enquanto jovem, mas também a saga da luta pela criação do referido estabelecimento de ensino que descreve como a concretização de uma “UTOPIA”: «Trinta e tal anos são volvidos (…) Nos anos 70 do século XX, balbuciavam-se utopias, verdadeiros sonhos do futuro eminente. Éramos poucos “os filhos da terra”, desde o Seixal até Machico que romperam a nuvem negra do analfabetismo para contemplarem o Sol do Ensino Superior, Universitário e Profissional.

«As férias, com o seu perfume de convívios, arrebatavam-nos para a expansão desportiva, cultural, “mundiais” de comes e bebes, muitos nos ambientes das famílias. Havia um relacionamento “fraterno” com as “pessoas vivas” das várias actividades sociais com uma influência peculiar, nos nossos debates e intervenções no meio, sem esquecer a participação nos órgãos da comunicação a bem das localidades (…)

«Lembro-me, a partir de 1968, que os estudantes universitários, professores, médicos, funcionários públicos e privados, autoridades administrativas e outros começaram a despontar o “gorgulhinho” utópico e distante de termos nas “terras” do Concelho de Santana um LICEU.

«Iniciativa nascente, imberbe, sonhadora, mas calorosa e, por vezes, compulsivamente, acolhida quando se colocava a tónica da sua localização.

«As pretendentes: São Jorge e Santana.


«Felizes e alegres encontros de pessoas que acreditam que é assim que as coisas acontecem frequentemente. Espontaneamente, é lançado um abaixo-assinado, em Santana, para aí ser a sua localização futura nas “terras rurais” da sede do concelho. A adesão foi plena. E entregue, após a sua recolha, às autoridades do Ensino/Educação, sediadas na sede do Distrito do Funchal.

«Este documento mexeu com os “pergaminhos” bairristas desses centros populacionais. O seu intuito e relance de perspectiva reforçou, ainda mais, os laços de união do bom convívio entre todos (…) Os alicerces foram cavados e as raízes mais profundas alimentaram-se deste fervilhar de conversas, por vezes, muito animadas.»

O padre Ramos, ou melhor o “irmão Ramos”, como carinhosamente lhe chamam ainda todos aqueles que com ele privaram e se disponibilizaram a facultarem-nos depoimentos sobre a sua personalidade e percurso de vida, seja como sacerdote ou como professor, não deixou ninguém indiferente. Todos lhe reconhecem um traço marcante: um carácter profundamente humanista, afável, cordial, sempre disponível para ouvir e para transmitir uma palavra de conforto, de alento.

“Um cidadão do mundo”




António Ramos: “Onde passava só deixava admiradores e amigos”. Foto © Manuel Nicolau/ Diário de Notícias da Madeira, cedida pelo autor.

António Baptista Rosa, seu conterrâneo, uns doze, treze anos mais novo, empregado bancário de profissão, recorda-o, enquanto seminarista, como «um jovem muito próximo dos outros e muito dado aos convívios no centro de Santana, mais concretamente no local mais apetecível, que era o Vera Cruz, tipo café restaurante para a época». A este propósito, Baptista Rosa acrescenta mesmo: «Sei por boca de alguém mais perto da idade dele, que ele era muito dado aos convívios nocturnos, as chamadas patuscadas, se fazia presente, mas tinha muito receio de ser visto pelo padre da freguesia, Agostinho João Cardoso, por sinal familiar de Alberto João Jardim, ex-presidente do Governo regional e, por isso, aparecia disfarçado» – o citado padre era «extremamente conservador» e adoptava uma postura muito «controladora e retrógrada, apegada aos valores salazarentos».

Rosa – que foi o primeiro vereador que o PS elegeu no município de Santana – adianta que, «mais tarde já quando como padre, vim a tomar contacto com ele e, sabendo da sua personalidade humana muito dada a ser um cidadão do mundo como um outro qualquer, sempre me despertou interesse em conversar quando o via ou o encontrava por Santana ou pelo Funchal» e confessa: «Claramente que me apercebi do seu carácter desapegado dos velhos hábitos dos padres mais tradicionais e, óbvio, via nele um espírito crítico ao rumo e posturas dos políticos regionais da dita Madeira Nova. Era um homem livre, um padre com carácter progressista, liberto de amarras.»

No testemunho que nos transmitiu, Baptista Rosa realça ainda: «Pelo que sei, onde passava só deixava admiradores e amigos, muito se falava de que, quando era proposto para sair de pároco da freguesia onde estava, a população desfazia-se em manifestações de agrado e até iam junto ao bispo rogar para que a mudança não se efectuasse”. E conclui: «Sem dúvida que ele foi um ser humano excepcional, duma vontade férrea de ser um entre todos, um amigo, irmão como bem nos tratava e, acima de tudo, foi bom pároco, óptimo professor e humanamente irrepreensível. Um dos melhores entre nós.»

Uma opinião, uma visão do homem, do amigo, do colega de profissão partilhada pelos professores da Escolha Básica e Secundária Bispo D. Manuel Ferreira Cabral que, a nosso pedido, formulado junto do respectivo Conselho Executivo, se disponibilizaram a testemunhar.

João Gabriel Caldeira, professor de Educação Física e actual presidente do conselho da comunidade educativa do referido estabelecimento de ensino, relembra «a imagem sorridente e afável, do colega e amigo, (…) a sua ética de ser e estar» e assume: «Para muitos de nós, ele não era apenas um colega, mas também uma fonte de inspiração, cordialidade, solidariedade e amizade. Durante os anos que trabalhámos juntos, o irmão Ramos sempre se destacou pela sua dedicação, ética, alegria e, acima de tudo, pela sua generosidade humanista e espiritual. Ele estava sempre pronto para ajudar, fosse com uma solução prática de empoderamento e/ou apenas uma(s) palavra (s) de encorajamento, nos momentos desafiantes da vida.»

“Uma energia contagiante, grandes lições de pedagogia”




O padre Ramos, segundo João Gabriel Caldeira, professor de Educação Física: «Possuía uma energia e positividade contagiantes, que iluminavam o ambiente de trabalho.» Foto: Direitos reservados.

João Gabriel Caldeira prossegue: «Possuía uma energia e positividade contagiantes, que iluminavam o ambiente de trabalho. Seu sorriso e espontaneidade eram capazes de aliviar as tensões do dia a dia e re-calibrar o ambiente tornando-o mais leve e aprazível. Ele tinha uma maneira única de transformar ambientes sombrios em ambientes luminosos, em transmutar desafios em oportunidades, em tornar leves acontecimentos pesados. A sua atitude, a sua acção positiva era um marcador singular da sua identidade e um exemplo para todos nós. Sentimos falta da sua presença, da sua sabedoria e deontologia profissionais, mas, ao mesmo tempo, somos gratos por tudo o que ele nos ensinou, da sua herança e abertura perante o conhecimento, a educação, cultura e religiosidade. O seu legado, enquanto professor e no exercício do ministério sacerdotal, ressoará para sempre em nossos corações, perpetuando-se e reflectindo-se na nossa visão humanista e consciência dos valores espirituais educativos.»

No texto emocionado e emotivo que nos facultou, este doutorado em Ciências do Desporto pela Universidade da Madeira e antigo deputado à Assembleia Legislativa Regional pelo PSD, confessar-nos-ia ainda: «Só agora percebo a sua vontade de ser chamado de IRMÃO, só agora entendo o alcance e significado desta palavra. Esta assunção de que todos tivemos origem do mesmo pai, esta aproximação entre todos e a comunhão de tudo, este sentido de comunidade universal, este pulsar de justiça social traduz bem a simplicidade complexa do agir do Irmão». A terminar, escreve: «Ficarás e serás sempre um capítulo crítico no livro, da minha/nossa história educativa e de todo o “aprender” do Homem ético».

Maria Rita Abreu, professora de Francês, foi outra colega que testemunhou: «Ensinou com partilha e humildade, com valentia! Como era sábio este nosso professor, que marcou tantos e tantos alunos. Ainda hoje é citado, pelo valor e impacto que teve nos conselhos que dava… (…) formou, de forma espontânea, uns quantos jovens professores que chegavam à escola de Santana para trabalhar. Tantos de nós ouvimos as intervenções que fazia nos conselhos de turma e nos conselhos pedagógicos. Foram grandes lições de pedagogia, de correcção profissional e de sentido de dever. Eu fui uma delas. Ouvia, como se as suas palavras fossem lei e muito do que sou, enquanto professora, foi “ali” que fui buscar… aos momentos em que o colega “irmão” nos brindava com a sua sabedoria. Foi um privilégio ter-me cruzado com alguém com o mais alto grau de humanidade.»

Palavra e Vida entrelaçadas



António Ramos a celebrar: “No altar, como na vida, a todos, sem excepção, tratava por irmão/irmã”, diz Maria de Freitas Vieira, professora de Português. Foto: Direitos reservados.

Quem também testemunhou foi a professora de Português Maria de Freitas Vieira que, tendo sido colega de grupo do “irmão” Ramos, foi também sua aluna e suceder-lhe-ia como Delegada de grupo quando em Dezembro de 2002 o professor António Ramos Teixeira da Silva se aposentou. Num texto com o título “Paz e Bem!”, Maria Vieira começa por evocar «com saudade e reverência profundas, a época da meninice em que por viver no limiar de duas paróquias, [lhe] foi dado a conhecer o padre Ramos. Foi na capela de Santo António, no Sítio da Fajã Grande (Faial), localidade isolada, que ao domingo envergava a roupa de ir à missa e caminhava, respondendo ao apelo do sino», recordando: «No altar, como na vida, a todos, sem excepção, tratava por irmão/irmã e a cada um reservava uma palavra de alento, de encorajamento, de paz! Homílias simples francas. A Palavra e a Vida de mãos estreitamente entrelaçadas com as mais belas metáforas tecidas de que são feitas as vidas duras do campo: o trabalho da sementeira, a paciência do germinar, a esperança de uma colheita avultada, para não haver falta, fome, fraqueza!».

Escreve ainda Maria de Freitas Vieira: «Quando em Outubro do meu 7º ano, descobri que teria o padre Ramos como Professor de Português foi a alegria! Eu, que já acalentava um fervoroso gosto por ler, pela magia da palavra, encontrei nas suas aulas, novos autores, é certo! Mas a mesma simplicidade na condução da descoberta de pensamentos, ideias e sonhos, vivências de seres tão bons e humanos como cada humano que povoava as suas salas de aula. Porque para este mestre não havia maus alunos. Somente bons ou alguns apenas um pouco distraídos e irrequietos! A esses convidava, de vez em quando a ir até aos pátios observar a beleza dos canteiros ou a magnitude do céu e das montanhas envolventes. Nas suas aulas, também, foi enrubescendo a minha vontade de colaborar na nascença de outras vocações, de outras pessoas de bem!»

Maria Vieira, de seguida, recorda o momento em que se tornou colega do padre Ramos: «Recebeu-me de braços abertos quando integrei o Quadro Docente da Escola e soube, com a infinita paciência de quem não pretende ensinar, mostrar como o muito conhecimento que uma licenciatura confere pode ser ínfimo, se não formos capazes de ver em cada aluno um ser humano, portador de sonhos, apetências, laços, fragilidades, algumas pequenas misérias, também! Que não há casos perdidos! Foi meu delegado de grupo e as reuniões a que presidia com bonomia e franqueza, cordialidade e espírito de lealdade, acima de tudo, eram um prolongamento, em forma de eco, das celebrações dominicais e das aulas em que a análise de qualquer texto era inequívoca: todos podemos ser melhores, de preferência rodeados de boas amizades».

Por fim, a sua saída da Escola de Santana: «Com a aposentação, passou-me directamente o testemunho. Passei a desempenhar o cargo de delegada. Mal sonhava eu, então, com o quão bem me preparou! Por isso, quando desafiada a prestar depoimento do que foi a presença do padre professor Ramos na minha vida, pensei que tinha de ser fiel à simplicidade do seu registo e ocorreram-me as palavras Paz e Bem, como as que melhor se lhe adequam!»

“Irmão” não era retórica




Um opúsculo sobre o padre Ramos: «O “irmão” não era retórica, mas algo que transparecia em todas as suas palavras, no modo como se aproximava de nós», diz António Bernardino Ornelas, professor de Ciências e Matemática. Foto: Direitos reservados.

Por sua vez, António Bernardino Ornelas, professor de Ciências e Matemática, que, em meados da década de 1980, começou a ter «um contacto mais próximo com o “professor” Ramos porque, entretanto, colocado como pároco na freguesia vizinha do Faial, começa a exercer funções docentes na então Escola Preparatória de Santana, onde exercia», sublinha a importância do tipo de trato que o padre Ramos estabelecia no relacionamento com todos: «O “irmão”, como gostava de ser tratado e como tratava todos os demais, não era uma questão de retórica, mas algo que fazia transparecer em todas as suas palavras, no modo como se aproximava de nós, nos tratava, se despedia… sempre da forma mais genuína, atitude que também manifestava com os seus alunos (…). “Irmão”, palavra que representava a simbiose perfeita entre o “padre” e o “professor”, nas suas aceções mais humanistas, sem qualquer tipo de hierarquias subjacentes. Aliás, essa era a postura e a atitude que também manifestava no exercício dos cargos docentes (delegado) e da organização (comunidade educativa).»

No final do seu depoimento, recordando o já citado texto “Caboucos da Utopia” em que o padre Ramos historia o processo de implantação da escola na então freguesia de Santana, manifesta orgulho com o percurso da mesma, enquanto instituição, realçando o contributo de um dos seus percursores: «O “irmão” é um dos elementos que será sempre tido em consideração, também pela imagem que conseguiu criar e associar ao nome da Escola.»

Reconhecimento que, de resto, aquando da aposentação, a Escola fez questão de prestar-lhe, através de “público louvor”, sublinhando «com admiração e apreço, a capacidade de trabalho, a sua competência, o seu espírito construtivo, a sua sensatez, a sua solidariedade, o seu entusiasmo e o seu humanismo que pautaram a sua actividade na sua dedicação à causa da educação e a esta escola em particular.»

Unanimidade proveniente de diferentes quadrantes que repetir-se-ia quando faleceu. Na ocasião, a Junta de Freguesia do Faial (localidade onde foi pároco entre 1983 e 2002) relevou que «foram duas décadas de efervescência pastoral, social e cultural», destacando a criação de um grupo coral infantil e de o salão paroquial se ter tornado «centro de actividades de catequese, representações teatrais e convívios, com a juventude, dos anos oitenta e noventa, a encontrar espaço de crescimento, convívio e formação».

No comunicado tornado público, aquele órgão do poder local enalteceu ainda que «centenas de pessoas foram marcadas pelo seu bom feitio, abertura, aceitação de todos, sem excepção e por uma visão humanamente aberta. Valores e atitudes que cultivou e cuja prática incentivou».

Um exemplo de alegria e de fidelidade



“Em Agosto de 2016, no livro que a Paróquia do Piquinho – Caramanchão editou em sua homenagem, sobressaía a referência a uma marca do exercício do seu múnus sacerdotal: «É bonito vermos que a casa paroquial tem sempre a porta aberta, sinal de que está sempre pronto para atender e conversar com quem quer que seja.»”. Foto: Direitos reservados.

Seis anos antes, em Agosto de 2016, no livro que a Paróquia do Piquinho – Caramanchão editou em sua homenagem, sobressaía a referência a uma marca do exercício do seu múnus sacerdotal: «É bonito vermos que a casa paroquial tem sempre a porta aberta, sinal de que está sempre pronto para atender e conversar com quem quer que seja. Desde sempre marcou as pessoas pelo facto de estar junto delas e tratá-las por irmãos», ao mesmo tempo que eram enaltecidas as suas características e qualidades pessoais: «É verdadeiramente um irmão que temos tido durante estes quase doze anos. Tem sido um pastor muito presente e preocupado sempre com as famílias, os problemas da sociedade e da comunidade também (…) O padre Ramos ou o irmão Ramos tem sido uma figura muito importante para toda a comunidade. É um exemplo de alegria e de fidelidade ao seu ministério de entrega total a Deus e ao Povo que lhe foi confiado. Todas as pessoas são unânimes em afirmar que o padre Ramos é atento, com bom coração e amigo de todos. É o nosso irmão Ramos!».

José Martins Júnior, no blogue “Senso@Consenso”, num curto texto de 27 de Dezembro de 2022, sob o título «O “25” no “27”, referir-se-ia ao passamento do padre Ramos, escrevendo: «Por coincidência, o silêncio cobriu o céu chuvoso de Machico quando, na manhã do 25, se espalhou a notícia da morte do “Grande Irmão”, o Padre António Ramos, pároco de Piquinho e Preces. Meu Colega no Seminário, meu Camarada – Capelão Militar, meu Confrade e Vizinho, ‘porta com porta’ entre Ribeira Seca, Caramanchão e Ribeira Grande. Do muito que conversávamos sobre o futuro incerto da Igreja na Madeira, tudo quanto do meu apreço e amizade já lho disse em vida.»

Confrontado com esse curto texto e desafiado a reflectir sobre o percurso de António Ramos Teixeira da Silva, o padre Martins consideraria, pouco tempo antes de morrer ele próprio, no dia 12 de Junho último: «No seu múnus sacerdotal, embora não primasse pela combatividade aparente, no entanto guardava no seu íntimo um acurado sentido crítico perante a condução diocesana da pedagogia catequética e da prática religiosa na Madeira. Foi o que lhe reconheci, quando paroquiou as duas igrejas de Piquinho e Preces, circunvizinhas da minha paróquia da Ribeira Seca, nos últimos anos de convívio mais assíduo.»

“Só mercearia, peditórios, festas e confissões”



Padre José Martins Júnior sobre o colega António Ramos: «Era um homem sensível e atento aos Sinais dos Tempos, na linha do Vaticano II, preocupado com o modus vivendi do cristianismo regional, tão superficial e tão diverso do Evangelho proclamado por Jesus.» Foto © António Marujo/7MARGENS.


Como exemplo desse «acurado sentido crítico», Martins Júnior contar-nos-ia: «Notei que o amigo Padre Ramos raramente participava nas reuniões mensais do arciprestado de Santa Cruz e Machico, a que pertencíamos, as quais eram presididas e orientadas pelo bispo da diocese. Perguntei-lhe o porquê de só comparecer no Piquinho e na Ribeira Seca. E a resposta foi pronta, serena, mas firme: “Oh Martins, o que é que eu vou lá fazer? Não se aprende nada. Só mercearia, tabelas e peditórios de dinheiro, horário de festas, data das confissões auriculares pelo Natal e pela Páscoa. Não perco tempo com isso”». O ex-pároco da Ribeira Seca, acrescentaria: «E foi com muito apreço e redobrada atenção que lhe ouvi falar abertamente, numa dessas reuniões, diante de todos os colegas: “Onde é que estão os grandes problemas das nossas paróquias? Quando é que se vai falar da juventude, das situações de droga, desvios comportamentais, da pobreza, do crescente abandono das nossas igrejas, etc., etc.?!”».

Daí que Martins Júnior não hesitasse: «Era um homem sensível e atento aos Sinais dos Tempos, na linha do Vaticano II, preocupado com o modus vivendi do cristianismo regional, tão superficial e tão diverso do Evangelho proclamado por Jesus.» Por fim, o antigo pároco do Porto Santo e professor do Liceu do Funchal, recordou: «Jamais esquecerei o discurso, eloquente e sentido, que fez na igreja da Ribeira Seca, por ocasião da solene homenagem ao grande e coerente Padre Mário Tavares Figueira , de saudosa memória» (o «preito de gratidão e saudade» ao antigo pároco de São Tiago, na freguesia do Jardim da Serra, foi-lhe prestado a 5 de Julho de 2020, 30 dias após a sua morte, pela comunidade da Ribeira Seca, em sinal de reconhecimento pela colaboração dada nas ausências do pároco, Martins Júnior).

O próprio ex-presidente do Governo regional – que em Outubro de 1979 não permitira que o padre Ramos desempenhasse funções no conselho directivo da Escola da Ribeira Brava –, aquando do seu falecimento, escreveria no antigo Twitter: «Partiu na manhã de Natal, tão Lhe adequada [sic]. Progressista, culto, foi o IRMÃO como todos O tratávamos e considerávamos. Como na Igreja de Cristo, acolhia todos, resolvia problemas, a ninguém hostilizava, não se exibia, não tinha complexos. Abraço forte, Irmão.»

Em jeito de síntese, o conterrâneo e amigo António Baptista Rosa disse-nos que o Padre, o Irmão Ramos herdou o carácter e a personalidade do pai – um pequeno agricultor e comerciante de gado – e que personificava na plenitude a essência de um Homem Bom. Praticava, ao fim e ao cabo, «a proximidade, a vizinhança» de que falava o Papa Francisco, em 2013, em entrevista a La Civiltà Cattolica.

*António Henrique Sampaio foi militante da Juventude Operária Católica e redactor d’O Comércio do Funchal. Subtítulos da responsabilidade do 7MARGENS.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

O Apagão Ibérico, 28 de Abril 2025


Por
16.07.2025

Muitos especialistas defendem que a prioridade para a Europa deve ser as interconexões eléctricas, embora esta não passe de uma prioridade urgente que apenas ameniza o risco.



Quando no domingo me sentei para escrever este artigo de opinião tinha uma mão-cheia de temas.

Trump e as suas armas de guerra económica, as tarifas aduaneiras, sendo a mais chocante e emblemática pelo seu cariz político, a tarifa anunciada de 50% sobre as importações do Brasil, em retaliação do seu amigo, Jair Bolsonaro, estar em tribunal, acusado de tentativa de golpe de Estado para destituir o Governo de Lula da Silva – uma intromissão política gravíssima dos EUA, ao nível da participação no golpe de estado militar de 1964; Trump e as ameaças aos BRICS+, sobretudo pelas medidas de desdolarização em discussão, nos países BRICS; a análise da 17ª. Cimeira dos BRICS+ no Rio de Janeiro nos dias 6 e 7, sob a Presidência do Brasil, com uma declaração final, um pouco mais branda que o costume; o abandono do “não é não” da campanha eleitoral de Montenegro, hoje com as fronteiras entre AD e Chega a esboroarem-se em medidas próprias da extrema direita e a causar incómodos, entre sensibilidades diversas do PSD, levando a algumas deserções de quem não pretende pactuar com esta deriva, afirmando-se que as bases do partido estão intoxicadas das ideias do Chega, o que, de algum modo, explica transferências do PSD para o Chega, dentro daquele aforismo que a cópia é pior que o original.

O tema do Apagão Ibérico, porém, seduziu-me por uma razão simples. O apagão não foi ainda minimamente explicado a quem sabe ou pouco sabe da matéria, tendo todos sofrido as suas consequências, algumas graves. Já passou, mas, nada garante que, um dia destes, não possamos ser revisitados por um novo apagão que, segundo especialistas, pode ser bem pior, com consequências mais nefastas, enquanto os restantes temas ainda agora estão a cimentar-se e vieram para ficar, como no caso dos entendimentos Chega/AD, como vamos percepcionando pelos media, em títulos como:
“Governo e Chega entendem-se para dificultar reagrupamento”, familiar dos imigrantes.
Chega e AD “com princípio de acordo” na lei da nacionalidade, a concretizar nos princípios de Setembro e … outros prenúncios na calha, como a segurança.

O apagão ibérico

Será que alguma vez vamos ter direito a uma réstia de verdade sobre as causas reais do apagão? Esta questão destina-se a quem a devia informar: ao governo de Pedro Sanchez, em primeiro lugar, e ao de Montenegro. Não a técnicos conhecedores da matéria, que até têm agido com moderação. O governo de Espanha já apresentou explicações. Só que enviesadas e contraditórias sob vários aspectos.

Continuo incrédulo, não por princípio, mas por duas razões básicas:
A situação pode levar a indemnizações graúdas, pelo menos, em Espanha. Em Portugal, a “moleza” nacional irá ser condicionada pelo que se passar no país vizinho. Daí, a necessidade de burilar as coisas para reduzir, ao máximo, efeitos de eventuais causalidades. E aqui estão logo dois interessados de peso em que pouco se saiba, o governo de Espanha e os grupos seguradores.
O sectarismo fanático na defesa das energias provenientes do sol e do vento, as conhecidas energias renováveis intermitentes, pois há outras renováveis não intermitentes, como a hidro ou a geotermia. Aqui também há presença de actores fortíssimos. Desde logo, o governo de Pedro Sanchez, sendo ele um indefectível defensor das energias renováveis intermitentes e anti nuclearista e os lóbis do sector.

Cruzando estas variantes e suas ramificações de interesses nos interstícios das instituições europeias, as raízes do apagão dificilmente virão à luz do dia. O Governo português um “pouco simulado” e com os lóbis, que os há, também não mostra interesse em esclarecer. A ministra do ambiente e energia, Maria da Graça Carvalho, que não se saiba bem em que águas navega, vai pactuando, não bule.

Tenho assistido a debates, a troca de ideias e procurado colher informação, através de leitura de artigos e entrevistas de especialistas.

O real vivido. “A 28 de Abril, a Península Ibérica, Espanha e Portugal, conheceu um apagão sem precedentes. Às 12h31 (hora de Espanha), a produção espanhola de electricidade era da ordem dos 28GW e, desta, cerca de 60% fotovoltaica. Em alguns segundos, o desaparecimento de 15 MW da rede eléctrica (espanhola) provoca uma interrupção em cadeia, na rede de alta tensão, ou seja, acontece um repentino desajuste entre a oferta e a procura, proveniente da sobreprodução pontual de electricidade renovável intermitente, não controlável” (Transitions & Energies, 30/06).

Governo espanhol promete esclarecer toda a verdade.

Há uma área de consenso alargado. Até von der Leyen (apesar de alemã) estará de acordo de que, em toda a Europa, a rede eléctrica é desadequada e mal gerida, com destaque para a alemã. Ninguém discorda. As redes são um ponto de estrangulamento.

Para o governo de Pedro Sanchez, esta situação passou a versão oficial do apagão. Nada disse sobre as intermitentes não pilotáveis.

Esta situação em si contém, no mínimo, duas inverdades. Primeira, não refere que a contribuição das fontes de produção de electricidade para a insegurança da rede é muito desigual. As energias de origem renovável intermitentes (sol e vento) provocam maiores desequilíbrios, causando problemas técnicos às redes eléctricas, ainda hoje não cabalmente resolvidos, sendo as fotovoltaicas as de maior risco.

A renovação das redes é muito dispendiosa. Segundo um documento do Tribunal de Contas europeu, de finais de 2023, o investimento na renovação da rede europeia até 2050 exige entre 2265 e 2600 mil milhões de euros, porque uma grande parte da rede da União Europeia data do século XX, sendo mais de metade das linhas construídas, há mais de 40 anos.

Uma outra questão. Como pode a União Europeia, conscientemente, ter apostado com investimentos de produção avultados nas renováveis, sem adequar as redes e ainda uma terceira, como têm sido privilegiadas as renováveis, sem levar em conta a sua participação adequada no “mix” das energias. Há, no presente, a noção de mix desequilibrado pelo excesso de renováveis, o que aponta para o aumento do risco. Pelo menos, esta é a opinião de especialistas com elevada reputação na matéria. Há aqui um problema de cegueira por parte dos sectários defensores das eólicas e solares que não admitem esse risco.

No caso da Península Ibérica há ainda um outro factor agravante, a sua baixa conectividade com o resto da Europa. Idêntico apagão na Alemanha foi muito minorado por esta razão, dizendo-se até que a Alemanha com uma rede eléctrica muito antiquada explora os seus vizinhos, deteriorando as redes alheias.

O apagão, sem dúvida, foi o resultado cruzado de múltiplas variáveis. Também é verdade como muitos especialistas defendem que a prioridade primeira para a Europa deve ser as interconexões eléctricas, embora não passe de uma prioridade urgente que apenas ameniza o risco. O problema de fundo é mesmo a de uma política energética europeia não existente, onde a energia nuclear tenha o seu papel reconhecido.

A União Europeia continua a andar aos arrecuos. Até o Banco Mundial assinou com a Agência Internacional de Energia Nuclear um acordo de financiamento para investimentos, neste domínio, tendo para isso modificado os estatutos que não o permitiam. Por que razão a UE não se agiliza?! Porque se deixa manietar por lóbis poderosos, com ramificações em todo o lado.

domingo, 13 de julho de 2025

Não há quem o ponha no seu lugar?


Esta é uma das tais entrevistas que devia ser visualizada pelos estudantes de uma qualquer faculdade de jornalismo e ciências da comunicação, subordinada ao título "Como não entrevistar ou pedir um comentário". Aquilo a que assisti demonstra, claramente, um certo tipo de jornalismo que não cumpre as regras, no mínimo, da decência, da cordialidade, do respeito e, sobretudo, do bom senso. 


Neste caso, o jornalista quis sobrepor a sua opinião a um convidado a quem a CNN solicitou para comentar situações de política internacional. A sua deselegância e má educação ficou bem patente. Um absurdo. Se a CNN convidou o Major General Carlos Branco (na reserva) para comentador é porque lhe reconhece competência pelas altas funções que desempenhou ao longo de quarenta anos de carreira, bem como pela importância dos livros publicados. Não pode, em circunstância alguma, um jornalista, num espaço, saliento, que não é de debate, mas de comentário, interferir, de forma agressiva, com a sua opinião, por mais respeitáveis que sejam as suas convicções.

Um jornalista não é um "pé de microfone", mas tem de perceber que, ali, o espectador pede-lhe, apenas, que coloque questões e que o convidado as comente. O centro da atenção é o convidado e não o jornalista. Ao tentar impor a sua opinião, criticando de uma forma abusiva o comentário do Major-General Carlos Branco, terminando, abruptamente, o espaço de comentário, este jornalista foi desrespeitoso e prestou um péssimo serviço à empresa que lhe paga o salário e ao espectador.

Aliás, genericamente, parece que certos jornalistas gostam de fazer crer aos espectadores que estão bem preparados sobre as matérias que apresentam, tantas são as vezes que os vejo a "enrolar" de tal forma que a pergunta, em tempo, demora mais que a resposta. Pessoalmente, não quero saber qual a posição do jornalista, prefiro o comentário ao enquadramento feito com inteligência e acutilância.

Deixo aqui esse momento, para mim, desastrado da CNN. 

sábado, 12 de julho de 2025

Padre José Martins Júnior

 

O Padre José Martins Júnior é intemporal. Faz hoje um mês que deixou a vida terrena. Fará um ano, dez, vinte ou cem, mas continuará presente. Saibam os que vivem trazê-lo em memória, estudando-o e dele falarem sobre os princípios e os valores que o animaram em vida. 



Não foi um autor com dezenas de obras publicadas e com uma eficaz máquina promocional. Não foi best seller de vendas. Foi, apenas, um Homem culto, multifacetado, capaz de múltiplas, profundas e inter-relacionadas sínteses. 

Sempre o trouxe comigo como um Teilhard de Chardin (1881/1955) dos nossos dias, padre jesuíta, teólogo e filósofo, cuja obra continua a ser uma referência de estudo. Chardin foi proibido de leccionar e de divulgar os seus trabalhos e até se exilou; a Martins Júnior suspenderam-no "a divinis", durante mais de 40 anos, perseguiram-no de diversas maneiras, porém não se exilou. Manteve-se, ali, na Ribeira Seca, imperturbável aos interesses que se desenvolviam debaixo dos seus olhos de actor-observador. Curiosamente, ambos morreram de forma súbita.

Chardin, em Maio de 1981, por ocasião da comemoração do centenário do seu nascimento, teve a sua obra reconhecida pela Igreja através de uma carta enviada pelo Cardeal Agostino Casaroli, secretário de Estado do Vaticano, ao reitor do Instituto Católico de Paris. A carta afirma: "Sem dúvida, o nosso tempo recordará, para além das dificuldades da concepção e das deficiências da expressão dessa audaciosa tentativa de síntese, o testemunho da vida unificada de um homem aferrado por Cristo nas profundezas do seu ser, e que teve a preocupação de honrar, ao mesmo tempo, a fé e a razão, respondendo quase que antecipadamente a João Paulo II: "Não tenham medo, abram, escancarem as portas a Cristo, os imensos campos da cultura, da civilização, do desenvolvimento". Espero, por um outro rol de razões, que a obra de Martins Júnior também seja reconhecida, tal como a do Padre Teilhard de Chardin. 

José Martins Júnior foi arquitecto, sem o ser, do "Homem Novo" e da sua transformação espiritual; foi engenheiro, sem o ser, na construção e ajustamento das relações entre os humanos, tendo em vista o bem-estar e a felicidade; foi advogado, sem o ser, na persistente defesa dos mais vulneráveis e dos seus direitos, foi sociólogo, sem o ser, porque apostou na ciência social e foi filósofo, sem o ser, porque "amante da sabedoria" não apenas no quadro da teologia. Foi professor e Mestre da Palavra ao contextualizá-la com a vida real. Ele que um dia disse: "rezar é fácil; difícil é pensar", sem alardes, semeou pensamento, profundas mas esmiuçadas reflexões e, pacientemente, soube esperar pelos resultados. E obteve-os porque a quem tocou foi sensível a transformação. Não foi, certamente, distribuindo estampas de santinhos, homilias vazias de conteúdo e absurdos actos de confissão que libertou as amarras da Igreja que serviu; não foi, aceitando com naturalidade e obediência os seculares vícios do Vaticano, que definiu o rumo a dar à Palavra; e não foi, aliando-se ao carreirismo eclesiástico, que defendeu os valores do Cristianismo. Preferiu o chão e não a ostentação, por isso foi o verdadeiro bispo e cardeal do povo. 


José Martins Júnior foi um Homem de ciência (aos 86 anos caminhava para a conclusão do Doutoramento) não porque qualquer grau académico enchesse o seu ego, o seu eu, mas porque, tal como um dia me disse, "o estudo é libertador e torna-nos mais humildes".  Tenho presente o Osservatore Romano (2025), associando-se às comemorações dos 70 anos da morte de Teilhard, quando publicou um artigo, "Teologia de um sacerdote muitas vezes incompreendido" (...) de reconhecimento da incontornável importância do pensamento de Teilhard para a Igreja, de hoje e do futuro, como o teria sido para a Igreja da sua época, se na altura ele tivesse sido escutado".

Estou certo que o Padre José Martins Júnior será sempre recordado, primeiro, pelo povo que o escutou, depois, pela hierarquia que, infelizmente, escolheu outros caminhos que não a da obra do Homem Novo que está por construir e "inaugurar".

Ilustração: Arquivo próprio.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

A doce cartinha de Rutte ao «querido Donald»



Por
José Goulão,
in AbrilAbril,
27/06/2025, 
Revisão da Estátua




O que fica destes episódios humilhantes é a certeza de que somos governados por indivíduos e indivíduas mesquinhos, traiçoeiros e sem carácter. Que rastejam perante o padrinho desta máfia sem limites, mas são uns valentes quando se trata de desprezar as pessoas e os seus povos.


Em boa hora o rei da NATO escolheu o cidadão holandês Mark Rutte como secretário-geral da Aliança, para substituir o sombrio norueguês Stoltenberg.

A Europa, a América e o «mundo livre» só ficaram a ganhar com a troca. Rutte trouxe cor e floreados ao cargo, numa NATO que já estava saturada do discurso burocrático, insípido, inspirado na linguagem de caserna do falcão e trabalhista norueguês.

Rutte não é nada disso. Ele veio demonstrar, uma vez empossado como funcionário número 1 da aliança, que o cargo pode ser desempenhado de maneira muito diferente e sentida. Rutte explica a arte de prestar vassalagem com alegria, emoção e gratidão. Ensina-nos a rastejar com estilo e elegância.

Isto é, demonstra que pode fazer-se o que sempre se fez na sua posição, quando se dirige ao bom padrinho das Américas, com sensibilidade e até com ternura, sem temores, nem dores de barriga. Ir de joelhos a Washington é duro, mas não há recompensa e glória sem sangue e sacrifício.

Algo que ninguém «se atreveria a fazer»

A história poderia passar despercebida, devido à modéstia do ex-primeiro-ministro holandês, para quem a pátria é a NATO e deus é americano. No entanto, o verdadeiro chefe da aliança, o mega-empresário da construção civil e presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, não aceitou que tão grande manifestação de afecto para com a sua pessoa, que o carteiro lhe entregou, ficasse no recato das excelsas submissões.

Como é habitual, Donald Trump recorreu às redes sociais para que o maior número de pessoas, não só da América e da Europa, mas de todo o mundo, ficassem a conhecer a devoção de Mark Rutte. A privacidade da correspondência é coisa caída em desuso, como nos ensinaram os Estados Unidos, e o seu presidente não hesitou em divulgar a cartinha que tinha acabado de receber do secretário-geral da NATO. E que este fez o favor de escrever em nome dos países da organização. Estejam os leitores descansados, porque todos ficámos representados em tão oportuno preito de vassalagem.

Não pode dizer-se que Trump tenha ficado impressionado com Rutte da mesma maneira que se sentiu tocado quando foi apresentado a al-Julani, o terrorista que sequestrou a presidência da Síria: «jovem, atraente e viril», apreciou, na ocasião.

À primeira vista percebe-se que Rutte não é muito dotado destes atributos. Mas sobram-lhe ternura, emoção e dedicação para tentar enternecer o coração do chefe.

Numa época em que as comunicações pessoais se baseiam na escrita telegráfica, desinteressante e depurada dos emails, e nas mensagens cifradas dos SMS, Rutte optou pelo tradicional, retro e romântico método da cartinha. Os seus talentos epistolares, hoje em dia apenas ao alcance dos predestinados, os que cultivam o digital, mas não esqueceram o analógico, chegam a ser comoventes.

«Senhor Presidente, querido Donald», começa a missiva. «Felicitações e agradecimentos pela tua acção decisiva no Irão, algo verdadeiramente extraordinário e algo que ninguém podia, jamais, atrever-se a fazer». E mais escreveu: «Donald conduziu-nos a todos a um momento muito, muito importante para América, a Europa e o mundo».

Dizem os cidadãos mais desconfiados, aqueles que desdenham, por vício, da opinião única, definidora do lado dos bons e da razão, que o feito «extraordinário» do presidente norte-americano, ao estabelecer um cessar-fogo com o Irão, se deveu, de maneira prosaica, ao facto de ter percebido, muito depressa, que iria entrar numa guerra nada curta e conveniente, com resultados bastante incertos.

Além disso, não necessitou de recolher muitas informações para deduzir, em três tempos, que o seu amigo e aliado, o carrasco Benjamin Netanyahu, incapaz de se ver livre do Hamas e do Hezbollah, estava outra vez em maus lençóis. Meteu-se com o tubarão, julgando que era sardinha. Nem o Irão se rendia, nem o regime caía. Pelo contrário, os golpes vibrados no território e na arrogância de Israel, nada tinham de superficiais.

Os mais prestigiados analistas militares de Israel foram, aliás, muito rápidos a lançar apelos lancinantes ao governo e às forças armadas para se apressarem a alcançar um cessar-fogo. Cedo perceberam que mais esta aventura militar em que o sionismo se meteu, transformada em guerra de atrito, poderia não acabar bem. O célebre «escudo de ferro» antiaéreo, afinal é de latão. Além disso, as bases do Irão parecem mais fortes do que se supunha. E Trump ficou aterrado com as primeiras respostas do mercado de hidrocarbonetos aos rumores sobre o encerramento do Estreito de Ormuz. Que se acabe a guerra, mandou o imperador, embora saibamos que o assunto não ficará por aqui. Como é indispensável dizer-se, falta sustentabilidade à suspensão do conflito.

«A Europa irá pagar-te EM GRANDE»

Os combates pararam, Trump recolhe os louros, Netanyahu canta vitória e Mark Rutte, em nosso nome, não lhes pode estar mais grato. «Conseguiu o que NENHUM presidente fez em décadas», escreveu na missiva. Um pormenor de bom aluno: Rutte não se esqueceu de realçar palavras completas em maiúsculas, como costuma escrever o chefe nas suas mensagens – um sinal da esmerada educação que o distingue.

A gratidão do secretário-geral não tem fim, e ele faz questão de manifestá-la com promessas assumidas em nome de todos nós. «A Europa irá pagar-te em GRANDE, como deve, essa será a tua vitória».

Ai vai pagar, vai, porque os nossos governantes amam os negócios da guerra e dispõem, como querem, das contas bancárias dos contribuintes. Vai pagar EM MUITO GRANDE, até. Cada um de nós irá desembolsar a respectiva fracção de pelo menos 15 mil milhões de euros do cheque que Montenegro, sem precisar de nos consultar, já começou a passar. Investir na morte é lucro garantido, dir-se-á.

«São trocos», apressou-se a dizer aquela que poderá ser considerada, entre nós, a decana, ou mesmo a bastonária da ordem do comentariado. E aproveitou para zurzir o mesquinho chefe do governo espanhol, Pedro Sánchez, por ainda ter a dignidade de pôr o seu país a salvo dos tais 5% do PIB, destinados a pagar «a vitória de Trump». E que este, desprendido como é, utilizará para nos abastecer com fantásticas máquinas de morte, compradas a preços de novas nos saldos dos refugos da indústria imperial de armamento. Tudo isso é indispensável para a nossa «defesa», para a nossa «segurança», diz a NATO. Lembrem-se das advertências do perspicaz Almirante vindo do fundo dos mares: temos de nos precaver, porque os bárbaros russos estão a chegar e, se não capricharmos, quando cá estiverem já será tarde. Se assim é, 5% deve ser pouco. Mais valia perder o amor a 10%, ou 15%, liquidar de vez a educação pública, o Serviço Nacional de Saúde e outras coisas desnecessárias quando sobre nós paira, como sempre, a «ameaça russa», agora reforçada com o «perigo amarelo».

Sánchez atreve-se a não contribuir com os sagrados 5%, «mas vai pagar o dobro», assegura o imperador Trump, o fiscal do funcionamento da democracia liberal. Para Sanchez e os espanhóis aprenderem que têm de sofrer pesadas consequências por teimarem no capricho de cultivar velharias, como a dignidade e a coluna vertebral.

A Espanha «é terrível», «é irritante», acusou Trump. Não se desafia assim a «ordem baseada em regras». Sánchez foi até mais longe na heresia, e atreveu-se a dizer que os gastos feitos pela Espanha para a NATO já são suficientes. O país está seguro e, ao mesmo tempo, pretende preservar o Estado social. «ESTADO SOCIAL?» Quem se permite falar nisso, nestes tempos da democracia neoliberal? Maus exemplos como o do chefe do governo espanhol não podem ficar impunes. Trump, o seu serviçal Rutte, os governos da NATO e a direita apátrida espanhola – que não descansa enquanto não derrubar o executivo –, não o permitirão.

Os Estados Unidos de Trump não chegam a gastar 4% para a NATO, mas isso deverá compreender-se. O papel de polícia do mundo exige despesas muito mais elevadas em tarefas que o país executa sozinho, ao desempenhar a sua missão filantrópica global «defensiva», para o bem de todos nós.

Com delicada sensibilidade, Mark Rutte esforça-se para que Trump não desampare a Europa e a NATO, o que deve ler-se nas entrelinhas da sua epístola. Ele compreende que, para «fazer a América grande de novo», o presidente terá de assumir opções susceptíveis de obrigar o Velho Continente a ficar mais por sua conta, o que há muito desaprendeu.

O «comprometimento» custa 5%

Rutte sabe também que, para o actual presidente dos Estados Unidos, a utilidade da Europa é a mesma que um rolo de papel higiénico. Compete-lhe limpar os dejectos que os Estados Unidos deixaram na Ucrânia desde 2014, e já não é pouco.

Ciente da orfandade que ameaça este lado de cá do Atlântico, Rutte engendrou uma barganha e, para isso, alimenta a esperança de que a velha vassalagem das colónias europeias ainda seja capaz de polir o ego do imperador, talvez amansar a fera.

O próprio secretário-geral da NATO desvendou um pouco a sua ideia, antes da cimeira da organização, em Haia. «Trump está comprometido com a NATO», disse ele, quando todos sabemos que, pelo menos até agora, o que o presidente dos Estados Unidos tem dito e feito é em sentido contrário.

O trunfo na manga de Rutte é o de garantir, em troca desse «comprometimento», os 5% do PIB de todos os Estados membros, para financiar o orçamento da aliança e aliviar, assim, a carga norte-americana. De maneira a que tudo regresse aos bons velhos tempos da absoluta tutela colonial. Isto é: os países da NATO pagarão cerca de três vezes mais caro pelas tropas, os mísseis, as bombas e o (decadente) know-how militar dos Estados Unidos. Ser uma colónia está a tornar-se uma comodidade cada vez mais dispendiosa.

Acreditamos que, ainda a bordo do «Air Force One», de regresso a Washington, Donald Trump teve novas ideias e tomou decisões contrárias aos seus «compromissos» assumidos em Haia. É assim que gere o império: hoje sim, amanhã não, depois de amanhã talvez. E todos marchamos, bem comportados (com excepção de Sánchez, a ovelha ronhosa), enjoados, por um arriscado caminho sinuoso e que vai sendo desbravado à beira de um abismo, que pode ser existencial.

Rutte pode escrever-lhe cartinhas delicodoces para lhe polir a vaidade. Costa pode oferecer-lhe, com vénias tão deslumbradas como basbaques, a camisola de Cristiano Ronaldo. Trump precisa de adulação como de ar para respirar, gosta de graxa, mas despreza os graxistas. O seu «comprometimento» com a NATO será o mesmo de antes da cimeira de Haia, mas assegurou que os súbditos serão generosos no momento de liquidar o dízimo imperial. Essa foi a sua vitória.

O que fica destes episódios humilhantes é a certeza de que na União Europeia, na NATO, nos nossos países, somos governados por indivíduos e indivíduas mesquinhos, traiçoeiros e sem carácter. Que rastejam perante o padrinho desta máfia sem limites, mas são uns valentes quando se trata de desprezar as pessoas e os seus povos.

A sabujice de Rutte não é uma característica pessoal. Afecta todos os comparsas da Europa e da NATO, com a já citada excepção. Os outros talvez não tenham, porém, os seus dotes epistolares para exercitar em cartas a que o chefe dará o destino habitual das coisas inúteis e desprezíveis.Salvé democracia liberal.

Salvé democracia liberal.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Homilia do funeral do Padre Martins Júnior - Em dia desigual soubemos do último poema «igual» do Padre Martins Júnior

 

Morreu como desejava. Igual à vida que levou. Morreu de pé como as árvores como comumente dizemos. Uma vida agarrada nas mãos com o pensamento em constante ebulição. No fim, feita a história, a sua história ao jeito do seu pensar e querer, abandonou o corpo e entrou na imensidão cósmica da existência, como defendeu o teólogo Teilhard de Chardin.



Parece coisa pouco. Mas não! É muito num tempo onde quem não abdica de si para se colocar aos pés e mãos dos dominadores parece que não sobrevive e que não tem futuro.

Permitam-me destacar a seguinte coincidência e curiosidade. Em 2020, a 6 de junho, há precisamente 5 anos, sucumbiu ao mundo da morte o Padre Mário Tavares Figueira, o seu indefetível amigo e apoiante, o homem mais humano e humanizante que encontrei em toda a minha vida.

Agora com a diferença de 6 dias e 5 anos, 12 de junho de 2025, o corpo do Padre Martins Júnior, desceu também a esse mesmo mundo inferior que é a morte.

Os dias 6 e 12

Vou fazer uma coisa muito querida ao Padre Martins e que ele frequentemente fazia, relacionando números e datas, com as suas respetivas coincidências e significados.

Dizem os ensinamentos que «O número 6 é frequentemente associado a caraterísticas como amor incondicional, compaixão e responsabilidade. Ele simboliza o lar, a família e a comunidade, enfatizando a importância das relações interpessoais saudáveis e do bem-estar coletivo. Além disso, o número 6 representa a harmonia, a fidelidade e a solidariedade, sendo um símbolo de apoio e nutrição para os outros» ou ainda, «destino, estabilidade, confiança e prestabilidade».

Serve este significado para ambas as figuras que aqui homenageamos combalidos pela tristeza humana, mas com o nosso ser interior em júbilo por termos sido bafejados pela sorte de termos feito parte da amizade e da história destas duas figuras, tão únicas e distintas bem longe do rebanho de tantos iguais.

O significado do nº 12, dia da partida do Padre Martins, adianta seis vezes mais em tudo que há na força das energias do amor, que geralmente influencia os que possuem o dom de amar tudo e todos.

12 meses tem o ano. Jesus teve 12 Apóstolos e Apóstolas. Os ponteiros do relógio passam duas vezes por dia sobre o nº 12. E o dia 12 de junho de 1514, foi o dia da criação da nossa Diocese do Funchal (quem quiser tirar ilações, pois que as tire, porque dá para fazer pensar a coincidência da morte do Padre Martins acontecer precisamente neste dia 12 de junho de 2025).


Enfim, o 6 e o 12, das meias dúzias e das dúzias, fazem parte permanentemente do nosso quotidiano. São a vida de todos nós todos os dias, foram a vida intensa e completa da vida do Padre Martins Júnior.

Perdoem-me esta incursão pelos números, mas serviu-me para aceitar e serenar o meu interior de mais esta perda que veio de chofre como se fosse um murro duro no estâmago.

Esta hora não é, não pode ser, para celebrar a morte. Mas a vida que derramou pela beira pelo Padre Martins Júnior, nos seus vários contornos: religioso como padre e pároco, político, cultural e intervenção social.

Vou destacar três vertentes que me inspiram e pelas quais mais nutro admiração: a liberdade, a cultura e o desalinhamento. Só para destoar de tantos que colocam a obediência e o apagamento de si mesmos à frente destes valores.

A liberdade

A palavra «transubstanciação», que aparece no romance «O Canto do Melro», é o nome dado na Eucaristia ao momento da consagração do Pão e do Vinho em cada Eucaristia que celebramos todos. Esta definição contida no livro definiu toda a ação e obra da investigadora Raquel Varela, acerca do Padre Martins Júnior. Na página 248, resposta dada pelo Ricardo, o amigo admirador da obra do padre Martins Júnior e que é também o narrador do romance, diz: «Aprendi aqui na Ribeira Seca. A transubstanciação das pessoas em pessoas, o reencontro com a própria humanidade, as pessoas a transubstanciarem-se em pessoas. Poderem ser finalmente o que eram, “o rio desaguou, porra!”».


Este é o epicentro da sua vida e da sua história. Este é o olho do furacão chamado Padre Martins Júnior e toda a história da comunidade paroquial da Ribeira Seca.

Nada disto seria possível sem um espírito livre, uma veneração quase «fanática» pela liberdade, a sua e dos outros.

O grande estadista inglês Winston Churchill dizia: «Todas as grandes coisas são simples. E muitas podem ser expressas em uma só palavra: liberdade; justiça; honra; dever; piedade; esperança». Estes valores cantam-se poeticamente e vivem-se convictamente, mesmo que por eles se derrame sangue, suor e lágrimas.

Cito um pensador: «Nem todos podem tirar um curso superior. Mas todos podem ter respeito, alta escala de valores e as qualidades de espírito que são a verdadeira riqueza de qualquer pessoa» disse o autor Alfred Montapert.

O Padre Martins Júnior bem expressou com vida e pela palavra poética esta realidade, com «Poemas Iguais aos Dias Desiguais».

Mas também a sua dimensão profética fez jus ao pensador aqui citado, quando se viu e sentiu a sua profunda incursão profética e sabedoria nas suas riquíssimas homilias que podem ser testemunhadas pelos milhares de pessoas que as saborearam, mas hoje esfaimam-se delas pela falta que fazem e pelo vazio que deixaram.

Um espírito de ideias e pensamento próprio. Uma opção clara pela humanização, a libertação e pelo despertar das mentes que encontrou subjugadas ao espírito do tempo e à conceção completamente descabida de uma coisa chamada «vontade de Deus» para justificar injustiças, opressões e pobrezas miseráveis. Não deu tréguas à «tirania das ficções sociais» como denunciou o nosso querido poeta Fernando Pessoa, em «O Barqueiro Anarquista».
A liberdade foi a sua luz. A liberdade foi a sua primeira causa, como ele sublinhou em 2023 quando deixou a paroquialidade da Ribeira Seca: «Deus respeita a liberdade das pessoas. Depois cada qual tem de aguentar as consequências».


A luta pela liberdade centrou-a na sua comunidade concreta, Ribeira Seca, mas extravasou para o Concelho de Machico, para a Madeira inteira, para o país inteiro, e no dizer da sua biógrafa e amiga Raquel Varela, para o mundo.

A ninguém passou despercebido. Para o bem, que foram muitos a reterem e a saborearem o seu valor. E para poucos, que não o souberam entender e se ficaram no casulo do comodismo de não pensar e ver mais além da curta mediocridade da vida cercada em dogmas, «ficções sociais», no pensamento único e nos condicionamentos das pretensas facilidades que os silêncios estratégicos e o comodismo conferem.

O âmbito cultura

O Padre Martins Júnior era um homem culto. Não era apenas um literato, embevecido pela literalice vaidosa que dá prémios e rende muita fortuna monetária. Era um sábio com uma memória prodigiosa, que citava pensamentos e poemas inteiros de cor com as suas respetivas referências autorais e fontes. Não precisou de gravar nomes na lista do telefone, bastavam-lhe os números apenas que os descobria com a mestria de relacionar datas, acontecimentos e eventos para descobrir os seus respetivos donos.

A música foi umas das suas paixões, que não guardou para si, mas que a transmitiu ao povo, compondo e musicando a poesia do povo, para que o povo dedilhasse e cantasse o seu saber, o seu querer e o seu poder. Não há em Portugal, melhor exemplo, de figura que tenha feito mais e melhor pelo Evangelho inculturado, feito carne de povo na expressão mais rica que é o viver em comunidade experienciado no terreno como dinamismo democrático e sentido evangélico.


Morre o Padre Martins para este mundo nos tempos em que nada se pensa, em que o desrespeito pelo bem comum é motivo de orgulho, a natureza explorada até à saciedade é ato nobre e é «atrasado mental» que não o fizer ou defender a criação. E recrudesce como silvado a indiferença, a descriminação, a aceção de pessoas, o desrespeito pelo trabalho digno e todas as formas de violência que nos torna doentes e desumanos.

O Padre Martins é uma memória, um apelo e um grito contra toda esta desumanidade, esta alienação e todas as injustiças que ainda escurecem os nossos espíritos.

É um lamento que as suas capacidades tão criativas e tão entregues aos outros, não tenham sido reconhecidas e aproveitadas por quem devia reconhecer o seu altíssimo valor. Antes prevaleceu a intriga, a calúnia, maledicência e todas as guerras inúteis que se assistiu na história dos últimos 50 anos da Comunidade Ribeira Seca.

O desalinhamento

Tal como os pagãos dos tempos antigos que, por medo, lançavam os seus primogénitos para o fogo aos pés da estátua de Baal, também nós acreditamos que nos devemos sacrificar para ser agradável ao deus minúsculo. Incapazes de compreender a grandeza, a beleza e o amor infinito de Deus, adoramos assim um ídolo criado apenas por cada um (ou pelas tais «ficções sociais» de Fernando Pessoa) para alienar e não para libertar. Assim sendo, uma vida espiritual adulta e vivificante consiste em resistir e em recusar realizar qualquer prática religiosa cujo fundamento único seja o medo de um deus «deste circo ambulante», refiro-me ao poema da pag. 104 de «Poemas Iguais aos Dias Desiguais».

Morreu de pé e até na hora da morte mostrou mais uma vez que não se encaixava dentro da normalidade como foi sempre a sua vida. Sublinha-se mais esta coerência, o seu inconformismo e a sua postura de resistência face às convenções políticas, sociais e religiosas.

Na vida de qualquer padre, mais tarde ou mais cedo, se verá confrontado entre dois caminhos, um que diz «Caminho da instituição madre igreja» e o outro «caminho do povo, onde estão os teus ossos e a tua carne». Terá que fazer a escolha. Muitos seguem o primeiro, porque é mais fácil, pode dar mais prestígio e ajuda a fazer carreira nas hierarquias, mas perde o caminho da existência e da autonomia. Perde o pensamento próprio, perde a vida própria, numa palavra perde a liberdade, porque deixa de ser o que é para ser o que os outros pretendam que seja. O Deus verdadeiro não quer isto, «vomita» claramente esta tragédia.


O padre Martins, mesmo com condições intelectuais mais que sobejas para seguir o primeiro caminho, recusou-o pensada e deliberadamente. Esteve sempre no caminho que diz: «caminho do povo, onde estão os teus ossos e a tua carne». Como ele várias vezes me confidenciou «a carne, os ossos e o sangue do padre é o povo».

Como é normal daqui vieram os beneficiados, os apoiantes e os admiradores, que foram muitos, milhares de pessoas, várias gerações. Mas também vieram os detratores com o vocabulário de «comunista», «vermelho», «desalinhado», «excomungado» e «suspenso» («ad divinis»)… Como se fosse possível um Deus, sendo Pai/Mãe, alguma vez suspendesse ou dispensasse um filho... Digam-me onde está esse deus para eu dizer-lhe que sou ateu olhos nos olhos.

Só aqui se compreende como é possível manter-se inquebrável durante tantos anos e só pode ser motivo de admiração tal fidelidade às causas, às ideias e ao povo. Os cravos que ostentamos são o símbolo cimeiro daquilo que aqui proferimos e o sinal de que o Padre Martins Júnior, parafraseando a frase que tanto gostava e tantas vezes pronunciou em tantos funerais que realizou dos seus amados paroquianos da Ribeira Seca: «Morrer é só não ser visto, é fazer a curva da estrada».

Conclusão

Termino com o que ele escreveu no seu último post de 18 de março de 2025, no seu riquíssimo e bem escrito «Senso y Consenso», pela ocasião dos «40 anos de libertação». Escreveu, «Faz hoje 40 anos! Foi uma madrugada de abril em março quase primaveril. A Páscoa antecipada» e continuou, «A religião, tantas vezes usada e abusada pelos oligarcas, foi nessa altura um esteio libertador, tendo em conta o êxodo dos hebreus escravizados após 40 anos pelo faraó do Egipto. E no Novo Testamento, a palavra do senador Gamaliel no Sinédrio, cujos juízes se preparavam para mandar matar os apóstolos. Disse Gamaliel:

“Não vale a pena, porque se a mensagem desses homens não vem de Deus, ela vai consumir-se por si mesma. Mas se vem de Deus, não há poder que a destrua”». E continuou, «O povo da Ribeira Seca venceu, porque teve resistência, autodomínio e vigilância sem termo».


Agora continuemos e sigamos o seu exemplo. A sua memória inspira-nos e frutificará das profundezas deste mundo ainda tão falho de humanidade.

Daqui e para aí onde estiver no lugar da plenitude vai o meu sentido obrigado padre Martins Júnior pelo seu exemplo, a sua amizade, por tudo o que me ensinou e por tudo o que me inspirou a ver mais longe para lá das medíocres circunstâncias voláteis do pulsar inconstante daqueles que se limitam a fazer da vida uma redoma, servida por pacotes de fé e de ideias baseadas em «ficções sociais», que alimentam a vã glória de mandar e de dominar.

Não somos uma terra de «abençoados indígenas», como considerou, quiçá desencantado, o nosso gigante poeta Herberto Hélder. Somos uma terra de paz com gente dentro, sedenta do melhor para si e para os outros. Esse sonho e direito não pode ser gorado por nada nem por ninguém, como ensinou com a sua entrega o Padre Martins Júnior.

A vida neste mundo do Padre José Martins Júnior valeu a pena. Muitos têm afirmado de muitas e variadas formas estes dias, precisamente, esse «valeu a pena». Por isso, parafraseando o pensador e filósofo Emanuel Kant que diz, «Se vale a pena viver e se a morte faz parte da vida, então, morrer também vale a pena». Obrigado e até um dia no festim da eternidade.

22 de junho de 2025
José Luís Rodrigues