"Leio num jornal que o exército do Sudão do Sul e as milícias suas aliadas estão autorizados a "violar mulheres" como forma de pagamento "pelos serviços prestados". Di-lo um relatório das Nações Unidas. Que as ordens são para destruir propriedades, pilhar bens, matar e esquartejar os homens e raptar e violar mulheres e crianças. Chama-se isto "política de terra queimada", dizem, embora nada tenha a ver com política. É apenas barbárie calculada. Não interessa neste conflito de que lado estará a razão, se na maioria Dinka do Norte ou nos Nuer do Sul. Não interessa se as potências ocidentais colonizadoras e exploradoras terão também aqui alguns pecados a expiar. Não interessa. Ninguém saberá já apontar a ofensa primordial. Há muito que esta é uma guerra que se herda. Uma guerra "porque sim", porque algo se perdeu na construção destes seres humanos e fez deles menos que animais.
Zeid Ra'ad Al Hussein, o Alto-Comissário da ONU para os Direitos Humanos, diz que apenas conhecemos "um fragmento da realidade". Tememos a totalidade dessa "realidade" que escapa à nossa compreensão. Aquela em que os nossos familiares e amigos são mortos à catanada e as nossas filhas violadas por dezenas de homens. É precisamente este desespero que leva homens, mulheres e crianças, seres humanos que recusam ser a "recompensa" de uma qualquer milícia ou os "danos colaterais" de uma qualquer guerra, a procurar abrigo na Europa. São estas pessoas que abandonamos em campos que fazem lembrar esses outros de má memória. 14 mil amontoam-se por agora no campo de refugiados de Idomeni, entre a Grécia e a Macedónia, um campo igual a tantos outros onde se depositam famílias inteiras, onde se adoece e passa fome, onde tudo está frio, molhado e pintado de lama. Onde pais descalços e desesperados com crianças ao colo tentam a travessia de um rio que teima em levar-lhes as vidas. Tudo vale menos voltar para trás. Uma dessas crianças dizia há dias para uma câmara de televisão que queria "voltar amanhã para a Síria", que não tinha "tido tempo para trazer os brinquedos e eles ficaram todos lá". Não podemos deixar que os muros nos contagiem a consciência e despertem em nós os instintos e preconceitos mais primitivos. São muros que se propagam à nossa volta e nos levam a empatia. Esta é uma crise de humanidade. Precisamos reconquistar a memória que a traga de volta".
NOTA
Texto da Eurodeputada Doutora Liliana Rodrigues (PS), publicado no Press News de Março que pode ser lido aqui.
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