Enalteceu o presidente do governo regional da Madeira: (...) "Nunca o homem viveu tão bem, tanto tempo e nunca os sintomas de pobreza, de discriminação, de abandono, de sofrimento foram tão baixos".
Esta declaração tem muito que se lhe diga. Desde logo, é evidente, no tempo de D. Afonso Henriques era extremamente complexa a vida comparada com os dias de hoje; por aí fora, já no tempo que a nossa memória alcança, no na ditadura Salazar/Caetano, a todos os níveis, a vida foi insuportável; e, ainda, tendo em consideração memórias mais recentes, nos tempos da última "troika", que o digam os portugueses em geral o que foram as agruras da vida, que conduziram a altas taxas de desemprego, pobreza e emigração forçada. À letra ou, superficialmente, aquela declaração, em abstracto, sem ter em consideração inúmeras variáveis, até parece verdadeira, só que, ela tem de ser analisada à luz das épocas e dos contextos económicos, financeiros, sociais e culturais. Daí que, a frase tenha tanto de aparência verdadeira como de totalmente falsa.
Basta que tenhamos presente os indicadores de pobreza. Em Novembro de 2018, o Instituto Nacional de Estatística dava conta que a Madeira e os Açores eram as regiões do país com valores mais elevados de risco de pobreza, nomeadamente 27,4% para a Madeira e 31,5% para os Açores. Segundo o padrão adoptado pelo INE, a taxa de risco de pobreza correspondia, em 2017, à proporção de habitantes com rendimentos monetários líquidos (por adulto equivalente) inferiores a 5.610 euros anuais (468 euros por mês). Fonte - Lusa/DN-Madeira/30 de Novembro. Estudos anteriores, da responsabilidade do Doutor Alfredo Bruto da Costa (1938/2016), apontavam para cerca de 30% de pobreza na Região. Portanto, as taxas estão em linha, com uma variação que fica a depender da metodologia adoptada.
Este indicador de pobreza deveria conduzir o presidente do governo a uma moderação nas palavras, contextualizando-as, porque está ligada, de facto, à "discriminação, ao abandono e ao sofrimento". Uma coisa é o papel de celofane e o laço, outra o conteúdo estragado do chocolate! Aqueles 27,4% significam que cerca de 70.000 madeirenses não estão bem. Aliás, um outro estudo sobre a "Desigualdade Económica em Portugal, realizado pelo Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, considerava a Região da Madeira como "a mais pobre".
As evidências não devem ser ignoradas. Há desigualdades gritantes e assimetrias indisfarçáveis que não devem ser escamoteadas, sob pena de algumas declarações políticas de circunstância não poderem ser consideradas sérias. O facto de uma pessoa, por exemplo, estar entre os 30 mais ricos de Portugal (ver lista na revista Sábado, 20.09.2018), esse indivíduo não pode tomar o todo pela parte. É óbvio.
E se as palavras do presidente do governo regional, porque fala do Homem, têm uma abrangência planetária, também não é correcto, no tempo que estamos a viver, assumir aquela declaração, simplesmente porque os indicadores dizem-nos que os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. "(...) Os 26 mais ricos têm tanto dinheiro quanto a metade mais pobre da população mundial. De acordo com a Oxfam, ao longo de 2018, a riqueza dos mais ricos aumentou 12%, mas a dos mais pobres caiu 11%, alargando o fosso entre ricos e pobres" - Fonte Público, 21.01.2019.
Socorro-me, finalmente, do Papa Francisco que exortou a que se ouça o grito dos pobres, "cada dia mais forte, mas também menos escutado, sufocado pelo barulho de alguns ricos". Concluo, então, que o bom senso aconselharia que o Senhor presidente do governo regional dissesse que, apesar de terem sido feitos inegáveis progressos, na ciência (esperança de vida, por exemplo) e em muitos sectores, a verdade é que temos, ainda, um longo caminho a percorrer na dignificação dos direitos do ser humano.
Ilustração: Google Imagens.
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