Por estatuadesal
Clara Ferreira Alves,
in Expresso,
14/07/2019
De 1922 a 1927, George Orwell serviu o império britânico no norte da Birmânia, como oficial da polícia. Dele é a frase: “O passado pertence aos que controlam o presente.”
Eric Blair, nascido em 1903, vinha da baixa classe média, ou de uma classe média sem dinheiro, mas entrou em Eton, a mais elitista das escola, a escola dos príncipes. Foi vítima de bullying, e sobreviveu às sevícias e humilhações, mas não tentou frequentar Oxford ou Cambridge. Os cinco anos de snobismo e complexo de casta chegaram. Aos 19 anos, estava na Birmânia. Logo se apercebeu da situação colonial, uma exploração cruel dos nativos pela supremacia branca. Dessa experiência birmanesa resultou um livro, um romance, “Dias da Birmânia”, e dois ensaios de génio, “Shooting an Elephant” (Matar um Elefante) e “A Hanging” (Um Enforcamento). São textos que retratam, com a empatia e compaixão que caracterizavam a escrita seca e precisa de Orwell, a tragédia da exploração capitalista colonial e do racismo. O romance, “Dias da Birmânia”, está escrito num estilo soberbo, enfeitado, que Orwell depois renegou (era o primeiro romance e tinha os vícios habituais) e descreve exemplarmente os tipos coloniais. Não é tanto a crueldade mas a suprema indiferença pelos nativos, os asiáticos, a sua invisibilidade, a prestação esclavagista vista de cima para baixo como um direito do funcionário, do comerciante ou do proprietário colonial. Os nativos, escreveu Orwell, eram para os colonialistas, nativos. Interessantes mas, finalmente, inferiores.
O império estava no estertor, em breve a Índia escaparia das algemas e com ela o Paquistão, e, claro, a Birmânia. A tragédia dos rohingya não é compreensível sem conhecer estes capítulos do colonialismo britânico, que sempre se reclamou, em relação ao português, mais avançado e mais culto, menos brutal e troglodita. Basta ler os guias da Índia para ver como os portugueses são acusados, na sua missão cristianizadora, de terem destruído os belos templos das cavernas da ilha de Elephanta, a que demos o nome, em frente a Bombaim, transformando-os em campos de tiro. As estátuas das divindades hindus estão desfiguradas pelas balas dos portugueses, numa selvajaria profana contra os profanos. Sagrado era o que os cristãos diziam que era sagrado. Quem não fosse cristão, ou se convertia ou era destruído. Este foi o modelo da cristandade portuguesa durante séculos. O padrão e a cruz. Deixámos, por esse mundo fora, um império construtor de fortalezas e igrejas, e legiões de cristãos de pele diferente da nossa. Cristãos católicos da Ásia a África, fomos os responsáveis primeiros.
O colonialismo português, com a sua dose maciça de coragem, aventura, crueldade e exploração, de esclavagismo e ignorância, de indiferença e desconsideração, nem sequer achava os nativos interessante. Achava-os fungíveis e sub-humanos. Carne para criadagem, cozinha, cama.
Este colonialismo, com as tropelias e guerras da fase do estertor, nunca produziu um escritor que, como Orwell, tivesse a empatia e a lucidez de o descrever. Nem sequer um Kipling. Ou um Forster. Não produziu nada de extraordinário depois das epopeias, tragédias e relatos do século XVI e XVII. Certamente, nada de extraordinário nos séculos XIX e XX. Exceto o poema de Jorge de Sena, ‘Camões na Ilha de Moçambique’, “pequena aldeia citadina de brancos, negros, indianos e cristãos, e muçulmanos, brâmanes e ateus”.
O colonialismo foi depois amalgamado numa teoria de lusotropicalismo recheado de imbecilidades como as que ouvi dizer a alguns diplomatas e académicos de antanho. Os ingleses fizeram a guerra e nós fizemos amor, make love not war, e assim mestiçámos. Uma orgia de violação, uso e abuso das mulheres nativas e das escravas mascarada de humanismo sexualizado. A nossa sociedade colonial descambou no modelo ainda em vigor na sociedade brasileira, onde os negros são vistos como servos naturais dos brancos.
Luanda era descrita como a grande cidade branca de África, a mais evoluída, a mais arquitetada, a mais pensada, e como um símbolo da glória do império português. A Cidade do Cabo também era gloriosa, mas não tínhamos apartheid, éramos mais “humanos” porque mais mestiçados. Na verdade, a mestiçagem dava jeito e o apartheid, compondo a rigorosa separação das raças e condenando a mestiçagem como um crime, impossibilitava o abuso sexual das mulheres e dos homens que serviam o capitalismo colonial.
O salazarismo, nunca tendo Salazar arredado a manta e o fogareiro e posto um pé nas terras dos selvagens onde mandou combater os ‘turras’ dos movimentos de libertação, sacrificando os mancebos portugueses a uma guerra que não entendiam e da qual nada sabiam, tinha a convicção de que aquilo era nosso por direito próprio e que a posse da terra tinha dentro dela o direito a dispor de uma raça inferior. A Índia nunca lhe interessou tanto, por remota e exótica, ou os longínquos Timor e Macau, como África, Angola e Moçambique. Menos, Cabo Verde, e talvez tenha sido uma sorte para os cabo-verdianos. E a Guiné, onde a guerra seria mais fácil de ganhar.
O colonialismo português teve os seus capítulos de glória nas conquistas e caravelas mas atravessou o século XX, o século das descolonizações, de olhos vendados. Nas escolas, a História de Portugal era uma lenda e uma narrativa mentirosa, arranjada para manter o regime como o defensor dos valores da cristandade em terras de bárbaros. Construíamos a escola e a igreja ao lado e deixávamos o esgoto a céu aberto e o casebre. Já Eusébio era velho, visitei o bairro onde ele nasceu no Maputo, Mafalala. Era isto. O amigo moçambicano que lá me levou não odiava os portugueses. Pelo contrário, tinha vindo educar-se a Portugal e gostava muito de Lisboa. Ele e a mulher são cultos, ela estudou literatura, ele escreveu livros, e assim são os amigos deles. Sempre pasmei da ausência de ressentimento tanto nos intelectuais como na gente simples de um país que condenámos à miséria e à corrupção. Isto deve-se à tal empatia, à humanidade, à educação e à consideração de que somos todos parte de uma raça, a humana.
Não nos odeiam. Nós, temos por cá uma gente que odeia pretos, e ciganos, como temos gente que odeia mulheres, e homossexuais, e doentes com sida, e muçulmanos, e judeus, e por aí fora. Quando se começa a odiar nunca mais se para. É esta gente que tem de ser educada. É esta gente que tem de ler uns livros e sair do canto provinciano e mesquinho das suas cabeças. De ler George Orwell e o que escreveu contra os totalitarismos e autoritarismos de que o colonialismo faz parte. Temos de deixar de controlar o passado.
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