Por
LILIANA RODRIGUES
Professora Universitária/Investigadora
30/06/2019
Decorria o ano de 1946 quando Wilhelm Reich escreveu sobre o Zé Ninguém. O Zé Ninguém é aquele tipo de homem em que “o elogio fúnebre é o momento máximo da sua carreira” (Pimenta, A. 1983).
Em termos intelectuais, é o que de mais raso há no senso comum e sofre de uma patologia moral na sua acção. Portanto, evitemos julgá-lo como aquele a quem faltam bens materiais para ser alguém. É melhor ter alma do que ter coisas. As coisas são deterioráveis, mas só deixa apodrecer a alma quem quer. Também evitemos confundir senso comum com bom senso ou com simplicidade de vida. O senso comum é isso: a arte de afirmar sem saber o que se está a dizer. Em última análise, corresponde à demência moral e ética.
O Zé Ninguém é aquele que é vítima da escravatura da dependência institucional, precisamente porque não conhece a liberdade como caminho. Não faz o seu percurso. Pisa e é pisado porque não sabe viver de outra maneira. Ele é poder quando cai na rua. Quando se assume como “representante do povo” ilude com a mentira, com o ódio e a inveja. As elites? Que se acabe com todas elas, mesmo sem compreender o conceito de elite. Aliás, é comum o Zé Ninguém confundir a elite com a posse de dinheiro e propriedades e, nos seus discursos inflamados pelo vazio, misturar (quase geminando), numa palermice de boçal, a ideia de elite com burgueses capitalistas. Na verdade, foram as elites as guardiãs da cultura e da civilização, foram elas que sempre tentaram “negociar, moralmente, intelectualmente e existencialmente, os ideais, afirmações, praxis rivais da cidade de Sócrates e da cidade de Isaías” (ARENDT, H. 1992).
Os homens medíocres diabolizam a ideia de mestre e de educação crítica, mas gritam com todo o ar que têm nos pulmões pela liberdade, desde que seja a sua. Até a autocrítica é condenável. Não vá o diabo da consciência ter razão. Assim, também no caminho escolhido, onde se saltam degraus e o beco mais curto impera, o Zé Ninguém recusa a possibilidade de uma consciência limitada (a sua, em especial) que se dobre à ditadura da dúvida. O mote é “quanto menos entendes, menos prezas (...). Continuarás a viver em barracas e paredes rebocadas de estrume, mas muito ufano dos teus palácios da cultura. Basta-te a ilusão de que governas – até que sobrevenha a próxima guerra e a queda dos novos tiranos” (Reich, 1993).
Ele frequenta os lugares de onde possa tirar algum proveito. Mas ele está em todos os lugares pela ganância de os ocupar e a sua história começa com Judas. Mas até este, com o seu falso arrependimento, quis livrar-se das 30 moedas com que se vendeu e que os judeus recusaram. Infelizmente, o que o Zé Ninguém é na vida pública também o é na vida privada. Isto serve a todos os Zés Ninguéns cuja gravata servirá para fazer juramentos a Deus como ao Diabo, o que mais lhe convenha a cada momento. Mas há aqueles, mais dissimulados, que só se revelam no desgosto de não ser apreciados. Todos nós já conhecemos um assim. “Eu conheço-te, Zé Ninguém. (...) Mas a história nunca te ensinou o que quer que fosse. (...) continuas na lama” (Ibidem). Na verdade, este fenómeno social do Zé Ninguém é o processo mais eficiente de esconder aquilo que ele sabe não ser capaz de, por si próprio, sequer pensar. Quando fazes acordos, “é difícil saber se é um acordo público que traz vantagens particulares ou se é um acordo particular que traz desvantagens públicas” (Alberto Pimenta, 1983). A tua degenerescência é a tua força e a tua piedade oportunista. O teu olhar opaco denuncia-te, Zé Ninguém. Ainda não desistimos da tua cura.
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