Anteontem tive um dia de fortíssima emoção. Pela primeira vez, a Luísa, minha irmã, comemorou o seu aniversário natalício (87º) no Lar da Associação Santana Cidade Solitária. Circunstâncias da minha vida, que me levaram a viver no Porto durante o último ano e meio, aliadas ao agravamento do estado cognitivo, auditivo, visual que condicionaram a sua autonomia, fizeram com que não restasse outra alternativa. E ontem senti, bem fundo, pelas circunstâncias, o que é a prática da solidariedade e o que é, mesmo que profissionalmente, dar-se aos outros. Aliás, sempre que entro naquela porta, um sentimento perpassa por mim: que ali tudo é feito para que a palavra solidão fique nas margens, porque os que lá trabalham, a todo o momento, espalham amor, mimos, compreensão, tolerância, distribuem sorrisos e tratam as pessoas sem infantilizações absurdas. Tratam-nas como pessoas seniores, respeitando as diferenças, dando quase a entender que elas fazem parte das suas famílias.
A emoção tomou conta de mim, confesso, porque os anos passam, a vida é finita e eu, tal como todos nós, estou na fila de espera pelo momento de uma qualquer opção. É difícil a previsão do amanhã. Gostaria de não dar maçada a ninguém e de ser tratado com a dignidade que ali se respira.
Faz-me muito mal sentir que existe um mundo cruel, desequilibrado, de múltiplos sofrimentos, um mundo que descarta homens e mulheres, que as esmaga com salários baixos, depois, com pensões de miséria, em contraponto com a ganância do ter, tornando-os números da sofisticada engrenagem económica e financeira, que não respeita prioridades; mas também é bom e faz-me sentir feliz quando dou conta que existe gente boa, estruturalmente bem formada, que sabe olhar para os outros e que vive os seus dramas. Eu sei que há muitos, profissionais e voluntários, que, de forma anónima, se distribuem por tantas instituições, facultando-lhes alma e atenuando dores sem fim. Bem hajam!
Não conheço a vida, vivência e convivência de outros espaços congéneres. Circunscrevo-me ao que assisto no Lar da Associação Santana Cidade Solidária. Às vezes afasto-me um pouco e fico a vaguear o olhar por todo o espaço, quase residente a residente. Reflicto sobre as suas possíveis histórias, na dureza que terá marcado as suas vidas, nas crónicas debilidades físicas, cognitivas e outras, no desenraizamento dos espaços, dos familiares e vizinhos, outrora vividos e sentidos, até nas rotinas da instituição, serena e tendencialmente sempre iguais. Passeio o meu olhar pelas dezenas de colaboradores da instituição, todos ali animados em servir e proporcionar bem-estar e conforto. Fico a pensar no apaixonado esforço dos seus dirigentes, no estica estica entre as receitas e as despesas, no corre corre atrás de qualquer coisa que acomode encargos sem fim.
Os residentes contribuem, mensalmente, com a sua pensão, mas ficam, ainda, com € 35,00 em cofre para despesas pessoais. Usufruem de seis refeições diárias e da excelência de um quarto com casa de banho privativa, para além do apoio na higiene diária. Também passeiam, fazem visitas e, por vezes, almoçam em um restaurante. E os dirigentes conseguem, colmatando um Estado muito parco nas responsabilidades constitucionais que lhe incumbe na defesa dos muitos outonos de vida! A Segurança Social, que é Nacional, um dos pilares da democracia, deveria manifestar um outro olhar e presença efectiva. O dinheiro é necessário, ele existe, porém, esvai-se em tantas opções não prioritárias. Sabemos bem.
Só mais um dado complementar e que me impressiona: aquela associação não circunscreve a sua actividade ao lar de idosos. Este é, apenas, uma valência que acopla o centro de dia. Por isso, deixa-me curvado perante tantas e significativas funções que passam pela loja social, a lavandaria social, as dezenas de refeições entregues, diariamente, no domicílio, para pessoas em dificuldade, as consultas externas, o pólo de emprego, a formação, eu sei lá até onde vão! Até se responsabilizam pela vinda ao Funchal para uma qualquer consulta externa.
É esta doação à causa dos e pelos outros que me enche em um turbilhão de emoções. Aquela festa de aniversário, com mais de cinquenta convivas, entre residentes e centro de dia, foi, com toda a certeza, apesar das circunstâncias, a melhor, porque mais emotiva, de todas ao longo da vida da Luísa.
Que gente boa! Obrigado.
Sem comentários:
Enviar um comentário