Por
José Pacheco Pereira,
in Público,
11/01/2020
Volto a Trump, a única coisa relevante que há hoje para discutir. É pouco mediático num país que é muito indiferente às questões internacionais, não dá títulos saborosos como os pequenos “casos” nacionais, cansa e parece monotemático, mas é decisivo para o nosso futuro. O que fizer ou não fizer Trump, e o que nós lhe permitimos, vai decidir as próximas décadas. E cada vez parece mais uma obrigação ética travar o combate para o deter, porque estamos num desses momentos da história, em que esta se acelera, e, como na maldição, se torna “interessante”. Pensam que isto é um exagero e Trump um epifenómeno? Puro engano. Vejam só que ele já fez.
O que é perigoso na actual discussão é que mais uma vez se verifica algo que vi toda a vida: quando alguém tem força, essa mesma força é interiorizada como razão, como explicação, como realismo e dá-se uma falência crítica e perde-se clareza. E mais do que tudo com Trump é preciso ver claro. Os poderosos têm seguidores pelas vantagens de estar ao lado do poder, mas o efeito mais insidioso é a impregnação do pensamento e da crítica mesmo daqueles que se lhes opõem.
Leia-se o que se escreveu esta semana em Portugal. Vejo com espanto a facilidade com que o discurso trumpista se interioriza, e como o caos e as contradições resultam em discursos salomónicos, e em benefício da dúvida. Claro que não se pode esquecer que em Portugal há mais “trumpinhos” por aí à solta do que se imagina, quer os que o adoram, mas mais ainda os que precisam dele à direita para equilibrar um mundo que, pensam, se deslocou demasiado para a esquerda.
Não lhe dão palmas em público, mas dentro da cabeça, porque Trump bate nos mesmos inimigos em que eles gostariam de bater. É uma simpatia por afinidade que não ousa dizer o seu nome. Existe em Portugal, no Observador, no i , nalguns blogues muito à direita e que são câmaras de eco em bruto do Observador, mesmo na comunicação social de referência com gente mais preocupada em manter “equilíbrios” e distanciações, quando isso é exactamente o que os trumpistas querem.
O discurso de Trump é simples: há vitórias e vitoriosos e derrotados. Ele Trump teve uma “vitória”, porque os iranianos “cederam” e “recuaram” e assim ele pode obter o efeito útil de ter morto um adversário dos EUA, sem grandes consequências e mostrar força, fazer de Rambo e bater com as mãos no peito como o Tarzan para fins eleitorais. É o discurso habitual de Trump e os mecanismos mediáticos, que ele explora com sucesso, são hoje muito adequados a ver as coisas assim. Talvez, se se parasse para pensar, se perceba que não só esta é uma maneira muito grosseira de ver as coisas — o que se adapta muito bem a Trump e às colunas do sobe e desce, e às redes sociais —, como assenta mais no wishful thinking do que em factos, e não nos fornece uma visão coerente do que se passa. E acrescento não é muito complicado perceber que é uma história muito esfarrapada, ou como agora se diz “uma narrativa” que só se sustenta no peso da força e no ainda maior peso da preguiça mental.
Veja-se só, a título de exemplo, o próprio discurso vencedor de Trump — um discurso que em condições normais deveria arrepiar toda a gente. Mas que “passou” bem, porque pareceu moderado. Trump começa por dizer que os iranianos não atingiram ninguém, porque as contramedidas sofisticadas resultaram, impedindo-os de obter o objectivo de matar soldados americanos. Mais adiante, no mesmo discurso, sugeriu que os iranianos afinal deram uma resposta débil, porque recuaram com medo da resposta americana. Então queriam ou não matar americanos?
Nos dias seguintes, fontes militares disseram que sim, outras fontes acentuaram o recuo a “desescalada”, e a tese predominante é a segunda. Por sua vez, os iranianos mantêm também um discurso contraditório, mas porque lhes é vantajoso. Os iranianos não têm o poder dos EUA, como, aliás, os norte-coreanos. Medidos por essa bitola são sempre o lado mais fraco. Mas face a Trump são mais inteligentes, têm uma estratégia consistente e não dependem da imprensa do dia seguinte para prosseguir os seus objectivos — e não têm eleições para ganhar.
Qual é nos dias de hoje o “seguro de vida” do regime iraniano, como, aliás, do norte-coreano? Ter armas nucleares. Agora que não têm as peias do acordo é o que os iranianos vão fazer a toda a velocidade. Ora Israel e os EUA não o podem permitir, o que significa que terão de atacar o Irão. E como é? Vão só atacar de alto e não colocar “botas no chão”? Só com enormes baixas colaterais, civis. E não há Rússia e China?
O assassinato do general iraniano é uma distracção, neste contexto que radicaliza todas as frentes menores e não ajuda a maior, que Trump ajudou a estragar ao abandonar um acordo nuclear que estava a ser cumprido pelo Irão. Quando digo que o principal risco da política de Trump é ser errática e caótica, é por aqui que se mede. Não houve por isso vitória nenhuma, só encurralamento cada vez maior no caminho de uma guerra generalizada. Trump não quer saber disso para nada, desde que entenda que sai favorecido eleitoralmente. E, como quer ter vantagens sem grandes custos, apela aos países da NATO para lhe darem cobertura e homens e mulheres para não haver muitas baixas americanas. A resposta frouxa da NATO é quase tão perigosa como o caos de Trump.
Infelizmente, isto vai continuar.
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