Por
Miguel Sousa Tavares,
in Expresso,
04/11/2022
estatuadesal
No próximo dia 20 começa no Catar o 22º Campeonato do Mundo de Futebol, envolvendo 32 selecções, entre as quais a nossa. Antes que as nossas varandas se cubram de bandeirinhas nacionais e as crianças se vistam de camisolas do Ronaldo, antes que as televisões, os anunciantes e o Presidente Marcelo comecem a vomitar o insuportável discurso patrioteiro sempre associado aos feitos da selecção, convém pensar que não é nenhuma honra, antes uma vergonha, participar neste Mundial. Não sei se a nossa Federação de Futebol fez parte das que votaram contra o Mundial no Catar, das que votaram em consciência a favor ou daquelas cujos dirigentes se deixaram comprar para votar a favor. Espero bem que não tenha sido a última hipótese, mas todas são possíveis, pois só através da corrupção do colégio eleitoral — em grande parte provada — foi possível atribuir o Mundial a um país que, por razões climáticas, é forçado a organizá-lo pela primeira vez no Outono do Hemisfério Norte, forçando a alteração dos calendários estabelecidos na Europa para as provas nacionais e internacionais. Um país cujos nacionais se estão nas tintas para o futebol e cuja selecção (classificada no ranking da FIFA em 102º lugar e com o recurso a 17 estrangeiros em 23 jogadores) jamais conseguiria, não sendo anfitriã, apurar-se para um Mundial.
Em 24 de Outubro, o dirigente vitalício do Catar, o emir Tamin bin Hamad Al Thani, explodiu de indignação com as “críticas feitas de invenções e duplos padrões” dirigidas ao seu país e “sem precedentes em relação a qualquer outro país organizador”. E com razão. Além da questão da corrupção na escolha do Catar, da questão do clima e das nulas credenciais do país em matéria futebolística, e apesar de toda a cobertura dada pela FIFA, o Catar tem sido alvo de um rol de críticas relativas à forma como conseguiu pôr de pé este Mundial e, designadamente, construir de raiz 10 estádios, que, a seguir ao evento, não servirão para nada, num país em que não há memória de um jogo de futebol alguma vez ter tido mais do que mil espectadores num estádio. Mas, em contrapartida, o Catar tem muito, muito dinheiro: tem, por exemplo, a maior reserva mundial de gás natural, agora tão precioso. E consta que o emir, ao contrário dos seus súbditos, gosta muito de futebol, tanto que, através da Qatar Sports Investments, além de patrocinar a Roma e o Bayern de Munique, é dono do PSG — onde, troçando das regras do fair-play da FIFA e UEFA, que só se aplicam a pobres, juntou um trio atacante composto por Mbappé, Neymar e Messi, que custam em salários, sem contar com direitos de imagem, mais de €250 milhões por ano. Mas para organizar este Mundial, que o extasiado presidente da FIFA, Gianni Infantino, afirma que será o melhor de sempre, o emir não olhou a despesas: foram €330 mil milhões de custos, o equivalente a toda a riqueza produzida em Portugal durante um ano inteiro. Só que Portugal tem 10 milhões e meio de habitantes e o Catar tem três milhões, dos quais só 320 mil são catarianos, gozando de todos os direitos de cidadania, como o de não pagar impostos. Todos os restantes são emigrantes asiáticos, dos quais 72% homens trabalhando na construção civil e 28% mulheres trabalhando como empregadas domésticas. Claro que foram estes homens que o regime empregou para construir os estádios e tudo o mais, trabalhando oito a 12 horas por dia, seis dias por semana, debaixo de temperaturas extremas e em condições iguais aos que nós contratamos para as estufas de Odemira ou os olivais e amendoais do Alqueva: entregues à protecção de um kafala, com o passaporte retido, amontoados como gado, sem quaisquer direitos sindicais ou sociais. 6500 deles morreram a construir os 10 estádios onde as vedetas e os seleccionadores pagos a peso de ouro e especializados na fuga aos impostos se vão exibir para o mundo inteiro, não se esquecendo de cantar os respectivos hinos a plenos pulmões para que o povo em casa ou nas bancadas pense que eles se batem pela pátria.
Antes que as televisões, os anunciantes e o Presidente Marcelo comecem a vomitar o insuportável discurso patrioteiro sempre associado aos feitos da selecção, convém pensar que não é nenhuma honra, antes uma vergonha, participar neste Mundial
Pois, o emir está zangado com tudo isto. O emir não percebe como é que as melhores empresas de consultadoria de imagem inglesas e europeias ou vedetas como Xavi Hernández ou o pateta do David Beckham, que só sabia marcar cantos e variar de penteados, não conseguiram mostrar ao mundo como o Catar — que até sedia uma televisão, a Al Jazeera, tantas vezes melhor do que as grandes marcas internacionais — não era aquilo que um relatório da ONU de há um par de anos classificava como “uma sociedade de castas de organização medieval”. É verdade que o próprio Governo do emir não ajudou muito quando começou a divulgar conselhos ao milhão de visitantes previstos para o Mundial de que deveriam “respeitar os costumes do país” e aos milhares de jornalistas que irão cobrir o evento avisos de que não poderão entrevistar pessoas na rua ou em suas casas, em especial os trabalhadores estrangeiros, ou entrar em edifícios públicos. Acontece que entre os costumes do país está a proibição da homossexualidade, que lá é crime, e o Governo fez saber que tolerará a sua entrada (como não?) mas não tolerará as suas manifestações. Quanto às mulheres, estão autorizadas a conduzir automóveis mas não se aconselha que saiam à rua sozinhas: Alá não gosta e, além disso, o Catar é suspeito de tolerar, sim, simpatizantes da Irmandade Islâmica e do Daesh.
Eis, a traços largos, o retrato do país que albergará o próximo Mundial de Futebol. Mas o futebol não tem culpa nenhuma disto. Algures, em estádios do antigamente, como o La Bombonera, em Buenos Aires, onde Diego Armando Maradona começou a elevar-se aos céus ao serviço do Boca Juniors, ainda hoje a multidão enche o estádio sem precisar de ir ao engano, porque aí ainda o futebol é genuíno. Feito de arte, geometria, dor e alegria. A toda a volta, onde estão os ídolos que as televisões e os jornais promovem e as massas idolatram, há toda uma teia de sanguessugas — na FIFA, na UEFA, nas federações nacionais, nos grandes clubes — que explora a “festa do povo” em seu benefício próprio e que de há muito perverteu tudo. O jogo agora chama-se dinheiro. E a cobiça é tanta que, depois de a UEFA ter inventado um outro Campeonato da Europa de Selecções a que chama Taça das Nações e que alterna com aquele a cada dois anos, é a vez de a FIFA querer também um Mundial de dois em dois anos e de os grandes clubes da Europa congeminarem outra Champion’s League só para eles e com lugar cativo para eles todos os anos. Tudo isto, claro, é feito à custa de uma overdose de jogos absurda e de uma exploração extrema do esforço dos jogadores. Mas os grandes jogadores aceitam porque também a eles só uma coisa verdadeiramente lhes interessa: o dinheiro. Já alguém viu um jogador de futebol, nas imensas viagens que faz ou nos intermináveis estágios em que tem de permanecer, ocupado a ler um livro ou um jornal que não seja desportivo? Já alguém o viu de visita a um museu, um monumento, umas ruínas históricas? Não, ocupam todos os tempos livres a jogar futebol na PlayStation, a postar imagens das férias no Instagram ou a debitar banalidades para os seguidores no Facebook.
E tudo isto, claro, alimenta-se do terceiro factor: o público. No dia em que não houver público nos estádios o futebol definhará até morrer, como se viu durante a covid. E é uma pena se o que nos leva ao estádio, seja tanto a beleza do jogo como a descarga de adrenalina e tudo o mais que precisamos de descarregar e que um jogo de futebol permite como poucas coisas mais, não seja também uma oportunidade para descarregar contra todo o universo sujo escondido por detrás do jogo.
Se os espectadores soubessem (se os jornalistas desportivos lhes contassem...) o luxo em que vivem e viajam os dirigentes dos clubes, das organizações de futebol, das federações, os agentes que chulam os clubes, os da UEFA e da FIFA, a riqueza que acumulam enquanto eles, espectadores, só gastam o seu dinheiro a manter o negócio milionário dos outros, talvez as coisas fossem diferentes.
Se a multidão que enche os estádios com o seu amor à camisola (o único que é genuíno) tivesse o mesmo espírito crítico para com jogadores e dirigentes — em matéria de corrupção, de fiscalidade, de negociatas — que tem para com os políticos, talvez o futebol fosse menos indecente. Ou, ao menos, mais envergonhado. Não estou a ver as opiniões públicas a engolir um prémio das Nações Unidas para os direitos humanos atribuído ao Catar.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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