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sexta-feira, 21 de abril de 2023

25 de Abril - O contentamento e a angústia

 

E já lá vão quase cinquenta anos relativamente à data que marcou o fim de outro quase meio século de uma ditadura que se impôs feroz de forma crescente. Abril trouxe-nos o perfume da liberdade, da democracia, do voto universal e livre; trouxe-nos o combate à chocante pobreza, a inversão da emigração forçada e desqualificada, a luta contra os silêncios impostos, a perseguição, a prisão, a tortura, a clandestinidade, a incultura, as gravíssimas limitações no acesso à escola; Abril trouxe-nos a laicidade, um não à estúpida guerra colonial com as consequentes mortes, estropiados e mais de uma centena de milhar de doentes pós-traumáticos; Abril acabou com os tons negros fascizantes do exercício da política, o "orgulhosamente sós", a escravização da mulher, o controlo total da sociedade, os senhores e os outros, a colonia, o servilismo e o chapéu na mão de tantos de coluna vergada até ao joelho! 



Como cantou o José Mário Branco:

"(...) Eu vim de longe
De muito longe
O que eu andei pra aqui chegar (...)"

E devagar e, inicialmente, de forma muito conturbada, o que foi natural, o país foi saindo daquela escuridão que Manuel Alegre sintetizou:

"(...) Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio - é tudo o que tem
quem vive na servidão. (...)"

Até que Sophia de Mello Breyner, em 1974, poetizou:

"Esta madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo"

E dos escombros políticos, económicos, sociais e culturais fomos edificando um novo Portugal. E quem lá para trás lança um olhar, obviamente que só pode ter uma resposta: valeu a pena. Por isso, curvo-me perante os Homens e Mulheres que sacrificaram as suas vidas, que pagaram com a prisão, a tortura, a deportação e a morte o "atrevimento" de serem oposição a um regime déspota; curvo-me perante famílias inteiras que sofreram o drama de não poder ter nem dinheiro nem voz e curvo-me perante sucessivas gerações a quem lhes bloquearam os sonhos. São dignos do respeito de qualquer cidadão, mesmo daqueles que, não tendo vivido a castração da época, hoje olham em redor com alguma satisfação, mas sem a mínima noção desse tão próximo quanto longínquo passado.

Podíamos estar melhor. Sim, concordo. Em todos os sectores, áreas e domínios da vida. Mas nos três pilares, saúde, educação e segurança social, qualquer comparação com aquele tenebroso e tirano passado torna-se despida de sentido. Só quem viveu e sentiu as agruras, quem foi espezinhado e triturado pode ter uma leitura entre o antes e o depois. Porém, é verdade, continuamos com uma altíssima taxa de pobreza, continuamos assimétricos e muito dependentes, porque sobraram em políticos de circunstância o que nos faltou em estadistas; porque a gritaria e os escândalos políticos "institucionalizaram-se", porque se permitiu, trazendo à colação o eterno Zéca Afonso:

"No céu cinzento sob o astro mudo
Batendo as asas pela noite calada
Vêm em bandos com pés de veludo
Chupar o sangue fresco da manada

Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhes franqueia as portas à chegada
Eles comem tudo eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada (...)"

Hoje, o "chupar o sangue da manada", com outros contornos, é certo, é muito evidente. É a inversão das prioridades estruturais; a habitação que se tornou um pesadelo; o escandaloso, eu diria ignóbil assalto perpetrado pela banca; a provocação diária das grandes instituições que impõem o que querem e entendem em claro desprezo pela vida das pessoas; são os corporativismos, proteccionismos e jogos de favor de toda a espécie; é a repetida mentira dita de forma convincente; é a comunicação social que muitas vezes distorce, porque estão em causa a sobrevivência, as audiências ou porque seguem o pensamento do vértice estratégico; são os escândalos no interior da Igreja e a sua ausência de respeito pela Palavra; é a especulação à solta e o mundo económico-financeiro subterrâneo; são os magros salários e pensões que atiram muitos para a periferia social; é a constrangedora situação da Justiça e a falta dela em tempo aceitável; é a ausência de escrúpulos e de confiança na relação entre o Estado e os cidadãos; é a genérica falência de credibilidade e de notoriedade entre os eleitos; são estações de televisão vocacionadas para o zero, para a superficialidade e o embrutecimento; é a falta de senso na organização espacial do território, enfim, todos sabemos o que por aí anda. E à socapa estão a aparecer os vendilhões populistas, os autoritários, os falsos amigos do povo, os que têm, na manga, soluções para tudo, os tais que "com pés de veludo" gritam e tentam, também estes, a seu tempo, pacientemente, "comer tudo e nada deixar".

Atravessamos tempos difíceis, nos planos externo e interno. Faltam-nos referências e uma outra cultura política que influencie os cidadãos de uma forma positiva e persuasiva. Falta-nos representantes "limpos e inteiros". Falta-nos a Escola que está muito para além dos manuais. Faltam-nos professores que estimulem a pergunta e que eduquem muito para além das respostas exigidas nos testes. Falta-nos um desassossego diário perante as inquietações. Falta-nos pessoas que governem e não se fixem nos "casos do dia". Falta-nos princípios, valores, ética e cultura. Falta-nos pensamento estratégico e respeito pelos princípios do desenvolvimento. Falta-nos sentir o País para além do futebol. Falta-nos o desafio das mentalidades. Falta-nos conquistar a felicidade e não a falsa felicidade que nos vendem!

Que regressem, pois, as canções de Abril. Ou relembremos, para já, contextualizando-a nos tempos que correm, a "Tourada", de Ary dos Santos, cantada por Fernando Tordo (1973):

"(...) Com bandarilhas de esperança
Afugentamos a fera
Estamos na praça
Da Primavera

Nós vamos pegar o mundo
Pelos cornos da desgraça
E fazermos da tristeza
Graça (...)"

Ilustração: Google Imagens.

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