Por
João Abel de Freitas
Economista
Na ocupação do mercado mundial, a China vai defrontar-se com vários outros problemas, nomeadamente o da certificação europeia e norte-americana. Mas poderá conquistar fatias de mercado no Sul Global, onde aquela não é exigida.
1. Esta batalha da China ao Ocidente, no domínio do espaço aéreo, vai prolongar-se muito no tempo. Até porque a capacidade de combate da China está no início. Nada tem a ver com Taiwan. Essa está sempre latente a outro nível. Ao nível da guerra, e agita-se sobretudo quando acicatada do exterior, como foi o caso da visita de Nancy Pelosi, tida por provocação, ao romper com o consenso estabelecido.
Esta batalha, iniciada a 28 de Maio de 2023, mas com vários anos de trabalho anterior, com falhanços e entorses de percurso, admitidos pela China, até pouco tem a ver com o papel do Estado/País.
2. Quando se trata de empresas, o Ocidente costuma ajeitar às empresas chinesas o figurino de “espias”, sobretudo no campo das tecnologias em que está em perda, como aconteceu e está a acontecer com a Huawei (no G5), impedindo ou limitando a sua actuação nos mercados.
Lembram-se, de certeza, da célebre entrevista do Embaixador dos EUA em Portugal sobre a Huawei, com ameaças nada veladas ao Estado Português, aquando dos leilões da Anacom, de que não houve reacção oficial, ou sendo concreto, houve um bloqueio silencioso da Huawai.
3. No dia 28 de Maio, o avião C919 fez o seu primeiro voo comercial, Xangai-Pequim, ao serviço da transportadora aérea CEA (China Eastern Airlines), dando início a uma longa batalha de alcance imprevisível com a Airbus (um consórcio europeu) e a Boeing (grande empresa dos EUA), os dois colossos mundiais da indústria de Aviação Civil.
O C919 é um avião comercial de passageiros de média distância, de fabrico COMAC (Commercial Aircraft Corporate of China) com sede em Xangai. Este avião corresponde a um “sonho antigo” da China de começar a discutir a primazia nas alturas e a ganhar autonomia face às duas rivais Boeing e Airbus (senhoras do Mundo neste mercado) e, certamente, corresponder a Xi Jinping que, em 2014, dizia, a China nunca será uma potência mundial, enquanto não construir o seu próprio avião comercial. A China pretende, assim, conquistar uma posição equilibrada na construção aeronáutica civil, como já detém no transporte comercial.
4. A COMAC começou, aliás, por fabricar um, de pequeno porte para curtas distâncias, (transporte regional) que tem alguns clientes externos, como a Indonésia. A COMAC tinha razão. Não era naquele modelo de pequeno porte que se coloca o desafio que lhe interessa desenvolver. Aí competiria, quando muito, com uma Embraer (Brasil), uma Bombardier (Canadá)…
As ambições da COMAC teriam de virar-se para outra gama e, assim, apareceu o C919 que se propõe começar a construir 150 aviões/ano, durante os próximos cinco anos, tendo já 1.200 pedidos de 32 clientes diferentes, o que ultrapassa a produção prevista para os cinco primeiros anos. Não são ambições ainda a fazer mossa a uma Airbus ou a uma Boeing. Mas começa a incomodar, sobretudo no mercado da Ásia.
A COMAC, certificada na China nos três tipos de certificação obrigatória para poder entrar em exploração comercial, está a posicionar-se como alternativa ao 737 da Boeing e ao A320 da Airbus. Por algum tempo subsistirá um problema – a elevada integração de componentes do exterior, EUA e Europa. As empresas concorrentes também o são. A Boeing adquire cerca de 40% a 50% de fora dos EUA. A Airbus até da Malásia integra componentes. A COMAC tem uma incorporação mais elevada, dizem os especialistas, mas a questão basilar não é essa, mas sim o ambiente instável que se vive, a nível do planeta, que pode trazer restrições de entrega ou mesmo de cancelamento de componentes, como tem acontecido com a Huawai e outras empresas chinesas.
Necessidades da China em transporte aéreo de passageiros
5. A China é o segundo mercado mundial da aviação comercial. Tem três ou quatro empresas de transporte de passageiros com grandes frotas, entre as 12 maiores do mundo. Estima-se que, até 2041, precise de 8.500 aviões, equivalente a cerca de 20% do mercado global. Para cobrir estas necessidades, a China recorre sobretudo à aquisição de aviões de fabrico europeu, a Airbus, com parte já encomendada mas agora em redução, o que nos leva a concluir que o primeiro grande colosso da indústria mundial da Aviação a ser afectado pela COMAC será a Airbus.
Aliás, essa é a posição dos analistas de mercado, sem apontarem as razões de fundo. Lemos desta maneira porque a própria COMAC indica a pretensão de ocupar, até 2035, um terço do mercado chinês e 20% do mercado mundial. Na ocupação do mercado mundial, a China vai defrontar-se com vários outros problemas, nomeadamente o da certificação europeia e norte-americana. A certificação em si já é um processo moroso, porque exigente, mas, neste caso, pode ser sucessivamente atrasado, o maior tempo possível, como meio de “reserva” de mercado para os seus aviões.
Mas, certamente, poderá conquistar fatias de mercado no Sul Global, onde a certificação europeia e americana não é exigida, só mesmo a pressão dos governos dos EUA e da União Europeia poderá funcionar.
Mas uma estratégia de cooperação a desenvolver com os BRICS, designadamente na área das componentes, poderá constituir um trunfo importantíssimo. Aliás, o grande elo entre os BRICS é mesmo a economia e não a política, e os BRICS estão com uma dinâmica interessante. No próximo Verão são esperadas decisões significativas, designadamente em termos de alargamento, e existe um leque de países candidatos. Que designação terão “os futuros” BRICS?
O marketing da COMAC
6. Não é fácil pôr a funcionar um marketing global com efeitos imediatos. O problema da confiança/segurança para um produto desta natureza conta muito. Convencer as transportadoras aéreas a fazer a troca de marca leva tempo.
Em muitas áreas do Sul Global reina uma antipatia forte contra o Ocidente, alicerçada em múltiplas razões e, na sua maioria, com fundamento de natureza histórica, cultural e social, e depois estão em desuso os acordos globais e de longo prazo que os Estados Unidos e a União Europeia praticam e tentam impor aos parceiros.
Cada vez funcionam mais os entendimentos para fins específicos e, neste modelo de parceria, a China é mais expedita. E um trunfo que conta, uma vez ganha a confiança na qualidade do produto, é a agressividade/preço.
A COMAC, segundo a informação disponível, produz bem mais barato que a Boeing e a Airbus, e poderá oferecer preço e condições de pagamento sugestivas, o que será bem aceite por alguns países destas economias emergentes com maiores dificuldades financeiras. Um grande trunfo. Mas o lançamento de sustentação assentará, inicialmente, nas transportadoras aéreas chinesas. O que com elas se passar marcará, sem dúvida, o futuro da COMAC.
7. Por último, e a título de informação. A China trava uma outra batalha e esta no mar. A plataforma que colocou a 17 de Maio último para estudo da captura de urânio, existente na água salgada (3.3 microgramas, em média, por litro).
Com esta investigação, se vier a ser bem-sucedida – a China pensa ter resposta até 2035 –, o Mundo passará a dispor de uma quantidade quase infinita de urânio a partir de 2050. Para a China, este sucesso equivale a uma escolha estratégica para sustentar a sua indústria nuclear no futuro.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
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