Por
Miguel Alexandre Palma Costa
Professor de Filosofia
1. Quem como eu nasceu na década de 70 do século passado, nos últimos quase 50 anos já se fatigou (e inoculou) do vocábulo “crise”. Arrisco aqui a mencionar (e enumerar) algumas das consecutivas crises políticas nacionais – e respetivas ‘instabilidades governativas’ – do pós-25 de abril, crises que nos acompanham ciclicamente até ao momento presente, todavia, destaco particularmente, as diferentes crises económico-financeiras internacionais. Por exemplo, a crise resultante do embargo petrolífero e geradora do conflito Israelo-árabe (1973-1974); a crise que levou à primeira visita do Fundo Monetário Internacional (FMI) a Portugal e a medidas drásticas de austeridade entre 1977 e 1978, incluindo limites quantitativos ao crédito, mas também a desvalorização do escudo para restaurar a competitividade da nossa economia e produtos. Não olvido a segunda intervenção do FMI, que regressou em 1983, por iniciativa do Governo do Bloco Central e conduziu o país a mais uma recessão fruto da (inconveniente) receita aplicada. Mais recentemente, a famosa crise do Subprime que teve origem nos EUA, no verão de 2007, originada por problemas nos empréstimos à habitação e que atingiu o seu ponto mais crítico em 2008, com a falência do Lehman Brothers – uma das principais instituições financeiras norte-americanas –, crise que se disseminou por várias instituições de crédito portuguesas (Bancos) e que fomos constrangidos a resgatar para prevenir a possibilidade de ocorrência de risco sistémico no sistema bancário. (Este é o mesmo sector que teve no ano passado [2022] lucros acima dos dois mil milhões de euros e que sobe consecutivamente as taxas de juro dos créditos dos seus clientes.) Seguiu-se, então, a dura crise financeira de 2010-2013, em que a desconfiança dos mercados (investidores) relativa às dívidas públicas soberanas se alastrou e o receio sobre a incapacidade de vários países conseguirem cumprir com os seus compromissos levou a uma nova intervenção externa, agora da célebre “troika”, que se fez acompanhar de “insensíveis e firmes” medidas que visavam corrigir os diferentes desequilíbrios económico-financeiros da nossa débil (e muito exposta) economia por forma a restabelecermos a capacidade de nos voltarmos a financiar nos mercados. Para o fim, mas bem mais perto de nós, está – e prossegue – a crise sanitária da Covid-19, provocada pelo novo e célebre vírus “SARS-CoV-2”, uma nova “pneumonia viral” que surgiu (enigmaticamente) na província de Wuhan, na República Popular da China, em finais de 2019, mas que rapidamente se espalhou por vários países da Ásia e depois pelos 5 continentes, colhendo mais de 26 mil mortos em território nacional e que sinaliza o começo de mais uma crise/recessão.
Paralelamente a todas estas “provações”, existiram e subsistem outras que convivem diariamente com todos aqueles que ainda habitam este país (e mundo) – e até aqueles que já o deixaram –, como as crises orçamentais, climáticas/ambientais, energéticas, na habitação, justiça, saúde, demográficas, sociais, de segurança, no desporto, na democracia…, mas evidencia-se uma que é talvez a razão/causa de todas as anteriormente referidas, a incessante crise moral. Neste contemporâneo mundo em que estamos todos deslumbrados, obcecados e entretidos com o prazer, com a velocidade e novidade tecnológica – mas também com o dinheiro e poder –, a (educação) moral já não é relevante.
2. Em todos os momentos e em todas as sociedades existiram – e continuam a existir – comportamentos considerados bons e outros maus. É no seio da comunidade, na relação com o(s) outro(s) que revelamos a nossa moralidade, que ponderamos e decidimos conscientemente, que avaliamos como corretas ou incorretas atitudes e condutas, e que sentimos (ou não) a obrigação/dever de cumprir com as normas, prescrições e orientações instituídas. Somos seres morais na medida em que o nosso agir está comprometido com uma codificação de regras, leis, normas, valores e motivações que nos dizem o que é o Bem e como devemos segui-lo/praticá-lo. Porém, a realidade é que continuamos a errar (e muito), falhar, a cometer deslizes e injustiças. A este propósito, Emmanuel Levinas, filósofo francês do século XX, é muito claro na obra Totalidade e Infinito, quando declara que importa muitíssimo «não nos iludirmos com a moral», pois ela esbate na prova com o real, sobretudo quando vivemos num estado (e economia) de Guerra que “suspende a moral” – por agora, militarmente circunscrita à Ucrânia, mas com impacto económico global –, tal como a praxis política, que “se opõe à moral”.
Apadrinhando a opinião, a fantasia e a ilusão, vivemos hoje num paradigma social que concebe e alimenta uma civilização essencialmente hipócrita onde a Verdade e o Bem parecem já não ter lugar ou apreço. Dito por outras palavras, a mentira parece ser agora um ‘pilar’ moral da nossa época, na medida em que os cidadãos se desinteressam (e abdicaram) do próprio conceito de Verdade… e tudo graças há espantosa quantidade de mentiras utilizadas no dia a dia. De facto, na política, nos negócios, na área da justiça, na “fina” finança e não só, os mentirosos são hoje tão bem-sucedidos e admirados que parece até que a Verdade deixou de ter qualquer categoria/valor moral e epistemológico. Pior, atualmente – e segundo o filósofo americano, Harry G. Frankfurt – tanto a verdade como a mentira foram ultrapassadas por uma nova forma de discurso e de conhecimento: o bullshit, a treta, parvoíce, o disparate, a farsa, a artimanha, a arte de dizer tolices, mentiras, falsidades… porque é do interesse daquele que a exprime (e exclusivo benefício) desprezar os factos, mas sobretudo consolidar o seu estatuto/posição de poder e enfraquecer os adversários. Ora, para quem acompanha a nova novela da Comissão Parlamentar de Inquérito à Tutela Política da Gestão da TAP (mas também poderia ser a ex-Comissão de inquérito sobre alegadas “obras inventadas” na Madeira), percebe que a verdade não passa por ali. O que importa aos vários protagonistas das audições públicas (sejam ministros ou ex-ministros, ex-secretários de Estado, chefes de gabinete, ex-adjuntos, a ex-CEO ou mesmo a antiga administradora da TAP, Alexandra Reis, que alegadamente recebeu uma indeminização choruda pela cessação de funções na empresa) são os efeitos políticos das suas afirmações – verdadeiras ou falsas – em quem as escuta, conhecendo perfeitamente a verdade e sabendo que aquilo que diz é falso e que toda (ou muita) muita gente sabe que é falso. Para além de já estarmos todos “empanturrados” com estas audições sobre a TAP no Parlamento, sabemos que o objetivo principal não é querer dizer (e defender) a Verdade nem ter a aparência de verdade, mas tão só chocar a opinião pública e semear a dúvida entre os cidadãos que se julgam bem informados. A finalidade é “condicionar” (ou mesmo liquidar) putativos candidatos a altos cargos partidários e governativos, e para isso é preciso dizer qualquer coisa, seja qual for a mensagem, verdadeira ou adulterada, pois isso resultará num ruído de fundo incessante nos media – proporcionará capas de jornais, aberturas de telejornal, comentários, crónicas, previsões, análises e até séries de entretenimento – que todos nós, público, vamos consumir. Sobre este assunto, num pequeno texto, Hannah Arendt é clara ao afirmar que abandonamos a Verdade como ideal cultural: “as mentiras foram sempre consideradas como instrumentos necessários e legítimos, não apenas na profissão de político ou demagogo, mas também na de homem de estado” (Verdade e Política). Entramos, livres e voluntariamente, na era da pós-verdade!
Em suma, infelizmente as democracias contemporâneas promovem agora todo o tipo de tretas, mentiras, asneiras, idiotices… a ignorância em geral, e o próprio alicerce da educação já não procura formar o “carácter” dos cidadãos de modo a viverem bem e na/para a Verdade. A moral degenerou num instrumento utilitário, que nos dá prazer e permite ganhar dinheiro, para muitos a coisa mais importante na vida.
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