Estava eu na Guiné-Bissau. Um mês depois de ter casado recebi a guia-de-marcha. Em 1972 o mundo parecia desabar sobre os meus sonhos de vida. Imaginam, certamente, o que alimenta e atormenta o pensamento, a todo o momento, a possibilidade de um não regresso. E milhares lá ficaram. No avião militar sentei-me ao lado de um Tenente-Capelão. Inicialmente, desconhecia a sua patente e missão. Falámos sobre a cretina estupidez daquela guerra sem sentido, depois, sobre um Deus que é amor e a função dele, Capelão, face à contradição entre a guerra e o amor aos outros. Recordo-me, na descida para o aeroporto de Bissalanca, com os meus olhos a verter algumas lágrimas de uma saudade que ainda ali começara, ele ter tirado do bolso do camuflado um estilhaço de obus que tinha a configuração de uma Cruz. Com alguma imaginação, ele via ali a personificação de Cristo. Disse-me, apontando para o estilhaço: “vês, não tenhas medo, porque Deus também aqui está”. Mais tarde vim encontrá-lo em S. Luzia. Aos Domingos celebrava a Missa das 19 horas, onde o General Spínola, pontualmente, entrava, em passo vigoroso, capela adentro.
Fui colocado em Guileje, a nove quilómetros da fronteira com a Guiné-Conakry. Dizíamos que, face à extensa floresta, era a coroa na cabeça de um padre! Por ali passava o famoso “corredor de Guileje” que alimentava, através da fronteira sul, as tropas de Nino Vieira, mais tarde presidente da República da Guiné. Comandei um pelotão açoriano, todo ele de Rabo-de-Peixe. Gente pobre, fantástica e amiga. Ainda hoje desconfio que eles percebiam o meu medo e, por isso, protegiam-me. Na nossa relação havia uma cumplicidade em que falávamos não falando! Sobretudo no mato ou nos ataques ao aquartelamento, onde a ameaça e o receio estavam sempre presentes.
Aquele lugar era tão inóspito e isolado que ao fim de dez/onze meses as companhias tinham de rodar. Talvez como compensação, seguimos a picada de Guileje até o porto de Gadamael (“o percurso da morte”) e de LDG para Bissau, depois Nhacra, a cerca de 30 km. Foi aí que, passadas umas semanas, fui designado para trabalhar no Quartel-General, no Comando Geral das Milícias. Era liderado pelo então Major Carlos Fabião. Eu tinha a responsabilidade de controlo administrativo de todos os pelotões de milícia da Guiné. Mas, mais importante que esta tarefa foi o facto de ter conhecido e trabalhado, durante alguns meses, com o Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, responsável pela Acção Psicológica no teatro operacional. Na prática, com humor, uma vez disse-me: o nosso Alferes controla os pelotões de milícia e eu distribuo os rádios pré-sintonizados. Eram rádios em que os nativos só podiam escutar a estação oficial e, naturalmente, toda a nossa propaganda.
Com Otelo fiz muitos serviços na escala do Quartel-General: ele como oficial de dia e eu como subalterno. Estávamos em 1973, “vésperas” do 25 de Abril. Só mais tarde percebi o total secretismo da operação que ele gizou no quadro da Revolução de Abril. Nessas noites de serviço, propícias a conversas mais distendidas, nunca me falou do nosso país, do atraso estrutural, da guerra colonial e da necessidade de uma mudança política. O silêncio era uma regra de ouro. Uma só vez, quando a páginas tantas de uma conversa referi a expressão “faz-se isto e faz-se aquilo”, subtilmente, saltou-lhe a aliteração: “pois, os fascistas”. Confesso que, no contexto da nossa conversa, não percebi o que, de facto, queria dizer.
Mas era sensível que ali, na Guiné, a guerra estava perdida. Em 1973, logo no início do ano, assassinaram Amílcar Cabral e, em Setembro, o PAIGC declarou, unilateralmente, a independência. Entretanto, cercaram e tomaram Guilege, onde tinha estado, após uma violenta saída das tropas portuguesas. Aliás, toda a zona sul era intensamente flagelada e a norte era desesperante a concentração das tropas do PAIGC. Sinais evidentes, entre muitos outros, do eminente colapso militar. O livro de António Spínola, “Portugal e o Futuro”, ele com um passado alinhado com frentes políticas extremamente conservadoras (para ser brando nas palavras) acabou por consubstanciar a preocupação de uma guerra perdida.
No dia 25 de Abril, entrei no QG pelas oito da manhã. Estávamos de prevenção. Foi aí que tomei conhecimento do que se tinha passado em Lisboa. Não demorou muitas horas e o madeirense General Bettencourt Rodrigues, empossado como Governador-Geral da Guiné, após a saída do General António Spínola, viajava para Lisboa por não concordar com a Revolução em curso.
Regresso ao princípio: tive medo e tive sorte. Lembro-me sempre da Cruz do Capelão. Quando me confronto com treze anos de guerra, onde 90% da população jovem foi mobilizada para um conflito que fez cerca de 10 000 mortos em combate e acidentes, aproximadamente 20 000 inválidos, cento e trinta mil a sofrer de stress pós-traumático e, ainda, 100 000 vítimas entre civis das colónias, a pergunta que coloco é tão simples quanto esta: para quê? Um país subdesenvolvido, paupérrimo e analfabeto, “orgulhosamente só”, dava-se ao luxo de gastar 33% do Orçamento do Estado e, a preços de 2018, 21,7 mil milhões de euros no esforço de guerra. A maldade, a frieza e o desprezo pela vida daquela dupla, de péssima memória, António Oliveira Salazar/Marcelo Caetano, foi tal que mais de 3 000 militares permanecem enterrados algures em Angola, Moçambique e Guiné. Recordo que durante os primeiros seis anos da guerra colonial, o Estado só pagava o regresso de militares vivos. Quem desejasse a trasladação, teria de pagar 12 mil escudos. Vergonha é a única palavra que me ocorre.
Ora bem, ao invés da Escola transmitir conhecimentos que não interessam nada para vida, os professores deviam fazer descobrir o nosso passado recente para que Abril se cumpra, com o conhecimento desse tempo de obscurantismo, indigno e desumano, a fim de gerar a capacidade necessária para enfrentar o futuro político, económico, financeiro, social e cultural.
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