Por
António Garcia Pereira,
in NoticiasOnline, 29/04/2024
estatuadesal
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No passado dia 17/4 um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa declarou não haver quaisquer indícios credíveis no processo Operação Influencer da prática, por qualquer dos arguidos (e por parte também de António Costa), dos crimes que lhes estavam imputados, tendo por isso julgado improcedente o recurso que o Ministério Público interpusera do despacho do Juiz da 1.ª instância (de instrução criminal) Nuno Costa Dias. Mas este acórdão tem muito mais que se lhe diga do que aquilo que a infelizmente habitual “espuma dos dias”, noticiada e comentada, tem feito crer.
O objectivo do Ministério Público
Com o recurso que interpôs, o Ministério Público pretendia que se considerasse que estava fortemente indiciado que os arguidos, cujas detenções tinham sido divulgadas e noticiadas com enorme estrondo mediático, haviam cometido os crimes de prevaricação, corrupção e tráfico de influências, e que se verificavam perigos de fuga, de continuação da actividade criminosa e de perturbação quer da ordem e tranquilidade públicas, quer do próprio inquérito, justificando-se assim que fossem decretadas as medidas de coação mais gravosas.
Entretanto, e como todos sabemos, sob o “argumento” de que o nome do então Primeiro-Ministro apareceria referido nas escutas telefónicas realizadas durante anos, a Procuradora-Geral da República, violando grosseiramente o segredo de Justiça, decidiu elaborar a tristemente célebre “Nota para a Comunicação Social”, de 07/11/23, na qual revelou publicamente que fora também instaurado um processo crime visando António Costa, o qual correria, como a lei impõe, no Supremo Tribunal de Justiça. Tal circunstância levou a que o Primeiro-Ministro entendesse não ter o mínimo de condições para continuar a exercer o cargo e se demitisse, e tal determinasse a queda do governo, com o Presidente da República a dissolver o Parlamento e a convocar novas eleições, com os resultados que todos conhecemos.
A tese do Ministério Público era a de que a suposta conduta criminosa de António Costa teria sido a de ter agido em comparticipação com os arguidos do processo da operação Influencer na a prática do crime de prevaricação e que tal teria sucedido nomeadamente por via da aprovação, no Conselho de Ministros de 19/10/23, de um novo regime jurídico de urbanização e edificação (o “Simplex Industrial”), para com ele beneficiar a Start Campus, titular do processo de construção de um gigantesco Centro de dados, em Sines.
Um acórdão absolutamente demolidor
Sucede que, com uma demonstração, quer de facto, quer de Direito, muito sólida e mesmo arrasadora, o Tribunal da Relação considerou que, mesmo com base nas (infundadas e genéricas) asserções do Ministério Público, jamais as mesmas poderiam cair no âmbito da previsão do tipo legal dos crimes apontados, e desde logo do de prevaricação. Ou, como já se dizia no despacho da 1.ª instância, que a descrição dos factos feita pelo Ministério Público “não tem aptidão para preencher nenhum dos tipos de ilícito imputados pelo Ministério Público aos arguidos, por não conter factos objectivos, mas antes conclusões, expressões vagas e genéricas e reproduções do conteúdo de provas”. E como se consagra agora no dito acórdão, “é manifestamente ilegal e inconstitucional por violação dos princípios do processo justo e equitativo e das garantias de defesa consagrados respectivamente nos art.º 5.º e 6.º da CEDH e nos art.º 20.º, 27.º, 28.º e 32.º da Constituição Portuguesa e dos art.º141.º e 194.º do CPP; a tese que parece ser defendida pelo Ministério Público, no seu recurso, segundo a qual, na dúvida, o JIC deveria considerar as alegações do Ministério Público como factos indiciados e os indícios como fortes, e, nessa base, aplicar as medidas de coação peticionadas, o que seria a total negação da condição do processo penal português de direito constitucional aplicado e do papel do Juiz de Instrução Criminal como garante da legalidade dos actos de investigação”.
Mais claro não se podia ser, na verdade, quanto a este reprovável modus operandi do Ministério Público, mas convirá assinalar outros trechos do acórdão, particularmente importantes pelo que revelam dessa inefável actuação do Ministério Público, e que aqui se transcrevem com destaques nossos:
“(…) processos de inquérito não são o lugar de peças jornalísticas, sejam elas reportagens, entrevistas, textos de opinião, etc.
O jornalismo é uma área de actividade que nada tem a ver com a investigação criminal, nem com a administração da justiça. A justiça pode e deve ser sindicada pela comunicação social porque isso é o que corresponde ao funcionamento democrático das sociedades e ao pleno exercício das liberdades de informar e de acesso à informação.
Mas nem os jornalistas são órgãos de polícia criminal, nem as suas peças jornalísticas constituem prova de factos a demonstrar ou a indiciar, no âmbito do processo penal.
De resto, mal se compreende, porque não se vislumbra qual seja a sua utilidade, que nos dezasseis apensos que integram o presente processo, exista um apenso 2 com o título «Notícias Comunicação Social», composto de dois volumes com mais de mil páginas, no total, cujo único conteúdo são excertos de jornais e revistas.
Aparte esta curiosidade e o desacerto de técnica jurídica, que consiste em misturar e confundir factos penalmente relevantes com trabalho jornalístico, fazendo passar uns pelos outros, como se fossem uma e a mesma coisa…”
“Também não consta da narração do Mº Pº, exarada no requerimento de apresentação dos arguidos detidos a primeiro interrogatório judicial, nenhuma circunstância concreta relacionada com a forma de agir do Primeiro-Ministro…”
“(…) tudo quanto está dito nos pontos 83 a 85, de resto como nos pontos 72 a 82, é especulativo, conclusivo e assenta exclusivamente na tal reunião das qualidades de melhor amigo do Primeiro-Ministro e de consultor jurídico e representante da Start Campus…”
“(…) a parte C sob a epígrafe «plano criminoso» (…) com excepção das transcrições das conversas, não passam de um conjunto de meras proclamações assentes em deduções e especulações retiradas do que o Mº. Pº. ouviu arguidos e membros de governo falar ao telefone, proferindo afirmações vagas, genéricas e conclusivas…”
“(Nas conversas telefónicas gravadas – nota nossa) Há, é certo, várias alusões ao Primeiro-Ministro, mas nunca concretizadas, pelo menos, de que haja notícia: não há uma única conversa de entre as várias escutadas e transcritas ou mencionadas no texto do requerimento do Mº. Pº.
Mesmo que houvesse, da simples circunstância de políticos e seus eleitores conversarem entre si sobre assuntos do interesse destes e que compete aos primeiros decidir não encerra em si mesma nenhuma ilicitude. E esta é a única ilaçãoque pode legitimamente retirar-se de todos os excertos das conversas mantidas ao telefone acima elencadas.”
“(…) Mas não há uma única conversa ou telefonema mantidos directamente com o Primeiro-Ministro.
O mesmo se diga, em relação à Secretária de Estado…”
“(…) As conversas telefónicas nada mais demonstram do que a sua própria existência, provam que aquelas frases foram ditas e foram proferidas por aquelas pessoas que surgem identificadas nas transcrições, como sendo os seus interlocutores.
Mas não são factos. São meios de prova.
E a sucessão de conclusões ou ilacções que o Mº. Pº. delas retira, não são nem uma coisa nem outra.”
“(…) Tudo isto, para concluir que, na medida em que as interpretações que o Mº. Pº. faz das sucessivas conversas telefónicas que andou a escutar ao longo de anos, assentam em meras proclamações, não concretizadas em circunstâncias objectivas de tempo, modo ou lugar (…) não ultrapassam o patamar de meras interpretações que só vinculam o próprio Mº. Pº.
Não têm qualquer aptidão de princípio de prova, muito menos, têm lugar num requerimento de apresentação de arguidos detidos a primeiro interrogatório judicial de ou de um juízo de indiciação feito por um Juiz de instrução criminal, para sustentar a aplicação de qualquer medida de coacção.
Não há, pois, indícios, nem fortes, nem fracos, da prática do crime…”
“(…) no seu requerimento de interposição de recurso, o Mº. Pº. veio alegar factos que nem sequer constavam descritos no requerimento de apresentação dos arguidos detidos a primeiro interrogatório judicial, como se pode verificar da comparação das duas peças processuais (…) o que corresponde a uma prática incorrecta e claramente contrária aos deveres de probidade e boa fé que também devem imperar na interacção dos diversos sujeitos processuais no âmbito do processo penal (…) deveres estes, que até são especialmente exigíveis ao Ministério Público por ser uma Magistratura e por ser o titular da acção penal.”
“(…) Sobre isso e sobre a construção de toda a narrativa inserta no requerimento de apresentação dos arguidos detidos a primeiro interrogatório judicial assente em meras conjecturas, conclusões, especulações a partir de conversas telefónicas que a única realidade que demonstram é a de que houve conversas entre aqueles interlocutores e com aqueles conteúdos, sem que delas se possa retirar qualquer ilacção ou dedução lógica sobre se, efectivamente, ainda que por prova indirecta com recurso a presunções judiciais assentes em regras de experiência, houve intromissão abusiva nos processos de decisão pública, que algum dos membros do governo, ou do município de Sines tenha agido a troco de qualquer vantagem ou em violação dos deveres do cargo, apenas ocorre escrever mais o seguinte:
«O processo penal é um meio de luta contra o crime; tem uma função ética. O combate ao mal não pode fazer-se por modo irregular ou imoral: um fim moral não justifica meios reprováveis; bem pelo contrário toda a estrutura do processo deve ser impregnada de alto sentido ético, porque o exemplo da dignidade é já de ‘per si’ um modo de reprovação» (Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, volume II, p. 322, lições reimpressas em 1981, Universidade Católica).”
Já sem falar na questão – grave, mas referida apenas de passagem no acórdão – de que a Lei Orgânica da Investigação Criminal (que é lei especial, prevalecente sobre a lei geral, como é o Código do Processo Penal) estabelece muito claramente, no seu art.º 7º, n.º 2, que a investigação de crimes, como os de tráfico de influências, corrupção, prevaricação e abuso de poder é da “competência reservada da Polícia Judiciária, não podendo ser deferida a outros órgãos de polícia criminal”. Todavia, neste processo da Operação Influencer, isso ocorreu, tendo sido deferida à PSP.
Resposta do Ministério Público
Perante esta absolutamente devastadora demonstração quer da sua incompetência técnica, quer da má-fé da sua conduta processual, quer ainda da completa falta de fundamento para a revelação pública da Procuradoria-Geral da República de que fora instaurado o processo crime contra o Primeiro-Ministro, o que fez então o Ministério Público? Até hoje, nem uma palavra ou sequer um sinal de preocupação e, menos ainda, de juízo auto-crítico!
Ao invés, o que a Procuradoria julgou relevante fazer foi, antes de mais, tentar “responder” à decisão do Juiz de instrução criminal com um comunicado no qual invocava que a sua posição já teria merecido a concordância de cinco outros Juízes e, depois, proferir esta frase lapidar: “O Ministério Público, pese embora a decisão proferida, prosseguirá as investigações, tendo por objectivo, nos termos da lei, apurar os factos suscetíveis de integrar a prática de crimes, determinar os seus agentes e a sua responsabilidade.”. Ou seja, e em suma, não fizeram nada de errado e vão prosseguir pelo mesmo caminho.
Logo de seguida – numa decisão, aliás, claramente ilegal, já que a competência do Supremo Tribunal de Justiça, e também do Ministério Público respectivo, se afere pelas circunstâncias (na presente questão, o arguido ser Primeiro-Ministro) existentes à data da ocorrência dos factos, sendo irrelevantes as que ocorreram posteriormente – tratou de passar a investigação para a sua “tropa de elite”, o DCIAP, e de proclamar arrogantemente que agora o processo seguirá “tomando o tempo que é necessário”, como se não houvesse prazos, fixados na lei processual penal como máximos, para o termo dos inquéritos!?…
Deste modo, a enorme gravidade jurídica, social e também política de tudo o que o Ministério Público praticou não pode agora ser esquecida e escamoteada sob o chavão de que o acórdão do Tribunal da Relação foi a Justiça a funcionar. É que todos compreendemos que, lamentavelmente, esta se tornou a forma habitual de actuar do Ministério Público, como também percebemos que se o juiz de instrução fosse o justiceiro Carlos Alexandre, seguramente que os arguidos ainda hoje estariam detidos sob o argumento de que as provas indiciárias (afinal, e como se viu, inexistentes) eram “avassaladoras”, e se os arguidos não tivessem a capacidade de defesa que evidenciaram (desde logo para recorrer) e os Juízes da 2.ª instância não tivessem tido a coragem de enfrentar a avassaladora lógica do Ministério Público (de que os fins justificam os meios e de que a verdade é aquilo que, em violação do segredo de Justiça, é passado para a imprensa), decerto não teríamos tido o desfecho que tivemos.
Desta forma não temos, nem teremos, nenhuma garantia minimamente segura de que dislates e atentados à Democracia como os agora cometidos não se voltarão a repetir, até porque os seus autores, sob a falácia do “à Justiça o que é da Justiça”, nunca são chamados à responsabilidade e, em vez de reconhecerem o erro, empenham-se em vincar que nada fizeram de errado e que vão continuar a agir da mesma forma.
Conclusões e apuramento de responsabilidades
Importa, pois, retirar as devidas conclusões, apurar responsabilidades e, natural e inevitavelmente, assegurar a reprovação e o sancionamento dos responsáveis. Aqui fica, pois, a minha contribuição que inclui, aliás, o que venho persistentemente a defender há mais de 25 anos:
1º O Ministério Público, e em especial o DCIAP, precisamente porque se habituou a fazer o que bem entende, a não prestar contas a ninguém e a não querer ouvir quaisquer objecções ou chamadas de atenção, não tem o menor sentido auto-crítico e antes se mostra absolutamente incapaz de fazer qualquer balanço sério da sua actividade.
2º Precisamente por isso, não consegue ver que o balanço a fazer em matéria de investigação criminal é, infelizmente, bastante negativo, ou seja, de que investiga muitas vezes mal, tendo-se mesmo viciado na realização de escutas e habituado a confundir o teor das mesmas (aliás, muitas vezes transcritas com pouco rigor e até com erros graves) e as suas próprias ilacções e especulações com factos, que era aquilo que se deveria preocupar em apurar, condenando assim ao fracasso investigações de casos em que até, na verdade, existiria a prática de crimes (vide casos como os dos hemofílicos, dos submarinos, dos negócios da Empordef, Portucale, Tecnoforma, Estaleiros de Viana do Castelo, etc., etc.).
3º Tendo podido contar durante quase uma década com um Juiz de instrução (Carlos Alexandre) que, em vez de um garante de direitos, liberdades e garantias de arguidos e queixosos, se assumiu como um “super-polícia” que tudo chancelava e tudo permitia ao Ministério Público, este habituou-se a substituir a averiguação competente e rigorosa de factos pela mera, abstracta e genérica formulação das suas interpretações e dos seus juízos valorativos e conclusivos, bem como por uma cultura do espectáculo e da pretensa legitimidade das condenações antecipadas, públicas e sem contraditório.
4º O sentimento de arrogante impunidade leva mesmo o Ministério Público, e sobretudo a PGR, a praticar ilícitos (como o das violações do segredo de Justiça, maxime envolvendo António Costa), a fazer interpretações ilegais (como a de que o Juiz de instrução teria que, por princípio, e tal como sempre fizera Carlos Alexandre, dar como verdadeiras as ilacções do Ministério Público e decretar, sem questionar, as medidas de coação por aquele propostas) e a possuir indecorosas condutas processuais (como a que é denunciada e fulminada no acórdão).
5º Uma postura, nunca verdadeiramente desmascarada e menos ainda sancionada, de se considerarem portadores de uma moralidade acima da dos seus concidadãos e executores da messiânica tarefa de combater a classe política, tida generalizadamente como corrupta, leva os Procuradores “de topo” do Ministério Público a praticarem actos, também eles de natureza política, conquanto sem qualquer escrutínio democrático e sem bastante suporte factual, mas que, com a batota das detenções em directo e das sempre cirúrgicas e sempre impunes violações do segredo de Justiça, são afinal transformadas em verdades oficiais, frequentemente com pés de barro mas sempre dotadas de uma tremenda eficácia destruidora dos visados.
Não! Aquilo a que assistimos hoje não é a Justiça a funcionar! Não! Uma sociedade verdadeiramente democrática não pode mais tolerar este descrédito da investigação criminal e este sequestro dos direitos e liberdades dos cidadãos!
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