Violência, agressividade entre bem-falantes, intolerância, ausência de diálogo cooperante, conflitos por uma hegemonia contrária ao sentido da vida, paulatina destruição da nossa casa comum, ganância em contraponto à negação da exploração do homem pelo homem, abandono, fome, pobreza, guerra e morte, tudo isto continuou em 2019, apesar dos sempre louváveis acenos e desejos de um bom ano! A todos os níveis, do mais alto exercício da política até ao mais paroquial, a hipocrisia voltou a pontificar, continuaram as Acções de Graças com governantes na primeira fila, orando e batendo no peito, "por minha culpa, minha culpa, minha tão grande culpa", mas a terminar, nestes dois últimos dias, mulheres aperaltadas e homens de smoking embora descalços, abraçam-se, mastigam passas (para quê?) bebem champanhe, em muitos casos do melhor, assistem ao fogo e fazem promessas e juras. Para o ano é que será o concretizar dos sonhos e desejos!
Fogo na Madeira em 2016. Foto da minha autoria. Atribuí o título: "Abraço de Anjo" |
E para a esmagadora maioria o próximo ano não será, obviamente. A engrenagem está montada, sofisticadamente oleada, aquela que subtil mas intencionalmente tritura e impede a esperança de melhores dias. O diabo continuará a amassar o pão e eles, do alto do seu púlpito, continuarão a sua luta pela descoberta de palavras e frases vãs, assobiando para o lado relativamente ao mundo que os mais vulneráveis vão escondendo e reclamando.
Não sou uma pessoa derrotada pelas evidências, mas não gosto de caminhar vendo não vendo! Acompanha-me Salgado Zenha (1923/1993), um político que frequentemente assumiu que "só é vencido quem desiste de lutar". Já estive em algumas, profissionais e de cidadania activa, agora remeto-me a ler, reflectir e transmitir o que brota da acumulação de sentimentos. Não é novidade para qualquer um de nós que os "Vampiros" não nos deixam. O Zeca continua cheio de razão, embora outros sejam os tempos: "No céu cinzento sob o astro mudo / Batendo as asas pela noite calada / Vêm em bandos com pés de veludo / Chupar o sangue fresco da manada (...)". A sofisticação dos actos é que é diferente. Não é preciso uma polícia de Estado, não são necessários bufos de papel passado e a tortura apresenta-se sem marcas físicas externas visíveis. São interiores e devoradoras. Tudo flui no quadro de uma anormal normalidade. Roubam às escâncaras, pagamos os luxos e corrupções, desrespeita-se o sentido das prioridades estruturais e os pavões do "carro-preto" fazem-nos trazer em memória o que uma princesa terá dito ao saber que os pobres não tinham pão: "eles que comam brioche", o que significou e significa uma completa ausência de entendimento das tais prioridades básicas. Pois, Zeca, a engrenagem tem História e seguidores: "(...) São os mordomos do universo todo / Senhores à força mandadores sem lei / Enchem as tulhas bebem vinho novo / Dançam a ronda no pinhal do rei (...)".
Não estou a exagerar. Basta olhar em redor e fixar este número: por aqui, 30% de pobres significa cerca de 75.000 pessoas que não vivem bem em uma Região Autónoma, qual fruto bonito por fora mas corroído por dentro. Ficam claras as assimetrias. O Banco Alimentar que o diga, a que se juntam instituições religiosas e tantas outras que mitigam a fome. E o que dizer de tantas outras fomes? E o que dizer de um tempo onde ter um emprego não significa não ser pobre? E o que dizer dos milhares com consultas médicas e intervenções cirúrgicas em atraso. E o que dizer de um sistema educativo espantosamente apresentado como inclusivo, mas que deixa pelo caminho milhares que engrossam o "clube" da desesperança?
Porque temos o dever de acreditar no Homem, porque por detrás de Hong-Kong, dos coletes amarelos, dos jovens em luta pela defesa do Planeta entre tantos outros movimentos de cidadania de importante e constante revolta, apesar dos fazedores de implacáveis guerras e de uma comunicação social ao serviço de interesses não descortináveis em um simples olhar, oxalá que, em 2020, sejam dados passos no sentido de uma inteligência que respeite a dignidade do ser humano. Que os milionários se lembrem que a sua defesa e progresso está directamente relacionada com o bem-estar dos semelhantes. Que já descobrimos que as crises são fabricadas e que não é saudável, este é um mero exemplo, que 2/3 da riqueza dos Estados Unidos esteja nas mãos de dez famílias. E ali fala-se do sonho e da liberdade! Que os Estados olhem para as pessoas e que as economias estejam ao serviço do Homem e não de minorias. Por isso, apesar de tudo, um Bom Ano. Que a saúde não atraiçoe!
Ilustração: Google Imagens.
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