Por estatuadesal
Clara Ferreira Alves,
in Expresso,
12/09/2020
A conversa começaria assim. Vicente, tenho de escrever sobre uma pessoa que morreu de quem gosto muito. Sabes como é, a chatice dessa espécie de obituário doloroso, a morte do amigo, do colega, da pessoa que fez parte da nossa vida durante anos, tão perto como família, uma das pessoas com quem crescemos e aprendemos.
O Vicente faria uma daquelas caras com um sobrolho levantado, o lábio de baixo descaído numa espécie de desgosto, levaria a mão à cabeça e apercebendo-se que o cabelo se tinha ausentado, tiraria os óculos e limpá-los-ia com toda a consciência, como quem lava um vidro de uma janela para ver melhor. Eh pá, eu sei, é uma chatice. Mas não puxes ao sentimental, conta uma história cómica, o homem parece que tinha o seu feitio, fez coisas importantes. Das coisas importantes falam, conta as histórias. Não pendas para o trágico. E eu responderia, como é que vou pender para o trágico se ele de trágico não tinha nada? Era um homem muito divertido.
Era um homem livre. E um grande jornalista, um grande diretor. E toda a gente gostava dele, apesar das discussões épicas sobre miudezas, sobre coisas sem importância. Havia um entendimento secreto, simples. A falta de qualidade deve ser rejeitada, e um jornalista tem de trabalhar em duas frentes: escrever e pensar com o rigor moral da liberdade. Era assim que o Vicente Jorge Silva trabalhava e aplicava a si mesmo as regras da exigência.
No dia em que a Revista do Expresso fechava, durante toda a noite, vinha uma hora em que o Vicente se abrigava no gabinete e berrava, vou escrever a minha cronaca. Crónáca. Assim. E enredado em escrúpulos gramaticais e lexicais, fumando um cigarro a que chamava o paf paf, paysage audiovisuel français, vá-se lá saber porquê, remoía com alguns de nós o tema da coisa. Ou remoía antes ou remoía depois, quando a crónáca estava escrita, mas não pronta. Era a hora da consulta popular, com meia dúzia de jornalistas que faziam o corpo da Revista do Expresso que o Vicente fundara com eles, ou do 1º Caderno, geralmente da Política. A crónica do V.J.S. abria a Revista e era maturada longamente e em coletivo. O coletivo justificava-se pelo facto de toda a Revista ser feita em coletivo, com um grupo de gente que vivia mais tempo na Duque de Palmela, e nos restaurantes da Duque de Palmela, incluindo o Pabe onde Francisco Balsemão tinha a mesa dele, a maior de todas, do que em casa.
A sede do Expresso era uma casa da democracia por duas razões. Porque quem era quem na democracia passava por lá, e tanto nos cruzávamos com um general no corredor como com um futuro ou passado primeiro-ministro, como a democracia interna do jornal era violentamente democrática. Toda a gente tinha uma opinião e toda a gente a dizia alto. Não existia a menor reverência perante o poder, pelo contrário. O único critério para ter opinião era ter qualidade. Ora, o Vicente era o vigilante de serviço, um astuto conhecedor da mediocridade e do oportunismo que verberava. Na Revista, a sua sede, o coletivo era constituído por um grupo de pessoas que se portava como uma família e o Vicente era o patriarca. Um patriarca bondoso, qualidade que ele tentava esconder com medo de o acharem macio e dúctil. Chamava-nos tontaços.
Ligeiramente surdo, gritava mais que toda a gente. Conheci-o antes, na casa de Mário Soares, em Nafarros. Era tudo o que eu achava que deve ser um jornalista. Via-se que afinava pela cartilha do Ben Bradlee no “Washington Post” do Watergate, a denúncia corajosa da corrupção e da amoralidade na política. Soares achava-lhe graça, gostava dele e nunca deixou de gostar mesmo quando foi picado por ele. Mas o que o distinguia era o amor pelo cinema e a literatura, pela cultura francesa e pela italiana, pelos cinemas esconsos da Rive Gauche de Paris onde comia e bebia filmes e pelas livrarias recheadas de debates e polémicas intelectuais que seguia com devoção. Nos anos 80, o mundo era um processo de descoberta da liberdade depois do 25 de Abril, mas o que tornava o V.J.S. diferente era o cosmopolitismo, tão diferente da escola de jornalismo ao tempo em Portugal, vetusta discípula de “O Século” e do “Diário de Notícias”. Esta escola tinha códigos e dogmas que a Revista rejeitou. Sem o Vicente, teria sido impossível estilhaçar o jornalismo canónico. E sem o cosmopolitismo do Vicente, teria sido impossível reunir aquele grupo selvagem de pessoas que não obedeciam a nada nem a coisa nenhuma. Com ele e com o António Mega Ferreira, outro cosmopolita, uma nova escola estava a ser inventada. Dela sairiam o “Público” e “O Independente”, e muita gente ilustre.
A fundação do “Público” teve momentos cortantes, quem foi e quem ficou. Eu fiquei, por lealdade ao jornal e a Balsemão e porque os textos que gostava de escrever não me pareciam de jornal diário. Trabalhara em dois diários e o ritmo era infernal e curto, partia-se sempre atrasado. Foi o que disse ao Vicente. Não foi fácil entremear a rivalidade com a amizade. Ele tinha um sonho, realizar um filme, uma longa-metragem, e o “Público” iria interpor-se entre o sonho e a realidade. O filme acabaria por vencer, quando se cansou do fecho diário e quando o “Público” estava estabilizado. A amizade ficou. Almoçávamos em ocasiões importantes. Quando ele resolveu ser deputado pelo PS. Vicente, vais aborrecer-te. Quando ele fez o “Porto Santo”. Vicente, não interessa nada se é ou não um sucesso, é um filme maravilhoso, tudo o que sempre quiseste fazer como cineasta. E quando ele conheceu a última mulher, Rosana, com quem ficou casado para sempre. Vicente, nunca te vi tão feliz. Tão harmonioso. Eh pá, que palavra foleira.
Creio que apesar de ter estado na origem dos grandes empreendimentos jornalísticos da segunda metade do século XX português, o Vicente se orgulhava mais do que tudo da família, a mulher e os três filhos. A mãe do primeiro filho morrera, uma mágoa da qual falava pouco. Ao herdar uma casa (um apartamento minúsculo) do Vicente quando ele se casou pela segunda vez, percebi que havia memórias que tinham ficado para trás. Fotografias. E o Vicente era descendente de uma família de fotógrafos da Madeira, a fotografia era para ele tanto ou mais importante do que a palavra e foi por causa disto que ele foi tão bom editor.
A morte dele é um bocado da nossa morte, ele foi um bocado da nossa vida. Era um tipo divertido. Realmente divertido. Lembro uma imitação que o Vicente fez do Eduardo Prado Coelho. Era a segunda eleição Mitterrand e encontrámo-nos todos em Paris. A Maria João Avillez, o Vicente, eu. No Marais, em casa do Eduardo Prado Coelho, conselheiro cultural. Casado com a Tereza Coelho, nessa altura da Revista, depois do “Público”. Um grupo de amigos aos berros no serão cheio de vitualhas, ninguém cozinhava, que todos tínhamos comprado e comido até fartar. Uma vozearia argumentativa e feliz, palavra foleira. O Eduardo despede-nos na porta com a frase, pelas quatro de manhã, e agora vou comer uma sandes de fiambre. O Vicente e eu, a caminho de um táxi, dobrámo-nos a rir. O Vicente a imitar “o Eduardinho”, de quem gostava muito, pespegado no meio da rua. E agora vou comer uma sandes de fiambre. Ficou a nossa piada particular. E agora vou comer uma sandes de fiambre. Lembro o E.P.C., lembro-me disto. Lembro o Vicente. Não consigo chorar.
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