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domingo, 1 de agosto de 2021

Que triste campeonato da ignomínia na direita portuguesa


Por
Francisco Louçã,
in Expresso Diário, 
27/07/2021

Ramalho Eanes foi adversário de Otelo em quase todos os dias do pós-25 de Abril. Prendeu-o após o 25 de novembro. Representou contra ele, nas eleições presidenciais de 1976, o campo político que veio a ganhar a hegemonia política no nosso país. E, no entanto, foi a voz mais digna da direita portuguesa no momento da morte do seu adversário e amigo, mostrando o que os aproximava e o que os separava, sublinhando o papel histórico do organizador da ação militar que derrubou a ditadura e não deixando de criticar a sua ação posterior. Há nesta atitude uma grandeza e um equilíbrio que merece respeito.



O contraste entre Eanes e a cacofonia das direitas sobre Otelo não podia ser mais evidente. Enquanto Ventura e Melo disputam encaloradamente o campeonato da ignomínia, rastejando em ajustes de contas em que se fantasiam de heróis em batalhas que não disputaram, Eanes, que unificou a direita de então e o PS nas escolhas que definiriam o regime, teve uma palavra certa, reconhecendo a Otelo um lugar histórico que é só dele. A diferença entre uma vingança parola e a justiça que não quer falsificar o passado é monumental.

No entanto, no atual campeonato mesquinho entre as extremas-direitas há mais do que uma reveladora falta de carácter, ou até de uma saudade da ditadura que agora é exibida como uma medalha. Embora a tentativa de usar a morte de uma figura pública para certificar uma tese ou para criar um espantalho ideológico não tenha sido inventada por Ventura ou por Melo, ou pelos que correm atrás deles, as invectivas usadas contra Otelo, ou o silêncio de algumas figuras de que se esperaria o mínimo de dignidade, dizem muito sobre o que é hoje essa direita. Ventura tocou a rebate para explicar como aplicaria a sua pena de prisão perpétua (ou pena de morte?), sem sequer se dar conta da cobardia que constitui nunca o ter dito enquanto Otelo era vivo. É um valentão que insulta um morto, desafiando quem não lhe pode responder. Melo, que repete sempre Ventura em versão fidalga, explicou candidamente que Otelo só conseguiu ser um chefe militar “por um dia” porque a ditadura lhe ensinou o mando com a paciência dos santos. É a isto que estão reduzidas as vozes mais gritantes da direita, a disputar a escala da injúria, se não mesmo a da falta de imaginação. Os outros, a pretexto de não haver um consenso histórico, como se alguma vez tal coisa aparecesse no cimo de uma azinheira, preferem esquecer o assunto: Rio ficou por umas palavras de circunstância, Chicão não faço ideia do que tenha dito.

Que o passado está sempre em disputa, disso não restam dúvidas. Que os vencedores procuram freneticamente fabricar a memória e justificar-se, tão pouco há nessa constatação alguma surpresa. Talvez por isso a dignidade de Eanes, ao reconhecer o papel histórico de Otelo, contrasta com o modo como as direitas de hoje se agitaram para fazer da própria morte do capitão de Abril uma nova vítima. Em tempo de política da raiva, olhar para trás para domesticar a revolução de Abril é uma prioritária missão cultural da direita que quer fazer a ponte com o regime repressivo e colonial. O que nessas manobras está em causa não é a aventura criminosa das FP25 (ou sequer compará-las com outras bandas políticas, como se o paralelo fosse justificativo para uns ou para outros) ou as frases soltas de um período em que a intriga se fazia no Procópio e as ruas estavam cheias de gente, de ilusões e de paixões; o que verdadeiramente importa é que o povo se revoltou contra uma ditadura e a sua burguesia pindérica e essa falta não pode ser perdoada por quem olha para o futuro como a promessa da ressurreição desse Velho Portugal. Homenagear Otelo, ou reconhecer o facto da sua coragem determinante na revolução fundadora da vida democrática, é por isso mesmo a única forma de respeitar, viver e conviver agora com a liberdade.

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