Por
João Abel de Freitas,
28 Março 2022
O comércio bilateral, sem recurso ao dólar e ao euro, está em progressão. E, assim, o dólar vê reduzido o seu papel de moeda global, porque está a deixar de intervir em largas fatias do comércio mundial.
1. Os actores mundiais de topo que se cruzam na guerra Rússia-Ucrânia, embora com papéis muito distintos, acabam por ser três: EUA, Rússia e China.
A União Europeia não se situa neste patamar. É um actor com estatuto menor e aliado subalterno dos EUA, apesar de não ter cedido completamente às “sanções” inicialmente propostas pelo presidente norte-americano, Joe Biden, que preconizavam uma redução drástica no abastecimento de gás natural da Rússia, o que seria um “suicídio” para as sociedades europeias, pois, no imediato, vários países não tinham alternativa de substituição.
O quinto actor, a Ucrânia, embora no centro da guerra real e a sofrer o pior, é um “joguete”.
2. Vários analistas defendem que a Ucrânia vai resistindo graças, sobretudo, ao armamento de qualidade e ao treino das suas tropas na preparação para a guerra que os EUA lhe proporcionaram e, internamente, muito condicionada pelo célebre “Batalhão Azov”, integrado no exército ucraniano, que faz questão de ostentar símbolos nazis nas fardas e capacetes e, se não o deixassem fazer, a vida de Zelenski não andaria muito confortável.
Certamente que a ilegalização na semana passada dos 11 partidos políticos, sob a alegação de que todos faziam o jogo da Rússia, terá o dedo deste batalhão. Para quem, como Zelenski, se instituiu como último bastião da democracia e dos valores ocidentais, esta ilegalização é uma “amostra” perfeita da solidez de princípios que apregoa, decisão a que as democracias ocidentais fizeram orelhas moucas.
3. A curto prazo, a União Europeia vai trocar uma dependência energética, a actual (da Rússia), por outra (EUA) com produtos de menor qualidade e muito mais caros.
Os EUA são um fornecedor recente à Europa de gás natural liquefeito (GNL). O primeiro carregamento de GNL chegou à Europa em 2016, com destino ao terminal de regaseificação de Sines. Entre 2016 e finais de 2021, a situação mudou de forma substancial. Cerca de 45% do GNL descarregado na Europa já é de origem americana (232 TWh).
Ora, através destas medidas de retaliação altamente precipitadas sobre a redução da dependência energética (REPowerEU) e acordos Biden/UE na semana passada, os EUA ficam com via aberta para se tornarem no principal fornecedor de GNL da União Europeia (UE).
Esta mudança implica avultados investimentos da União em terminais de regaseificação na Alemanha e noutros países [um terminal demora dois a três anos a construir, ou 18 meses a dois anos se for flutuante], adaptações técnicas nos gasodutos e nas interconexões entre redes para os ajustar à qualidade do gás de características diferentes. Tudo isto soma muito dinheiro.
Existem vários estudos e artigos recentes sobre esta matéria no think tank Bruegel, sediado em Bruxelas. A leitura de alguns permite uma ideia da grandeza dos valores necessários para concretizar as diferentes medidas. Cito uma, a do próximo inverno ser o primeiro sem gás natural russo. O valor apontado no Bruegel para que isso possa acontecer aos preços actuais (finais de Fevereiro) e para injectar 700 Twh no armazenamento europeu, é da ordem de 70 mil milhões de euros quando, nos anos anteriores, não excederia 12 mil milhões. 58 mil milhões de euros a mais? Quem vai pagar tudo isto se esta medida sancionatória avançar como está concebida?!
Sistema europeu de energia absurdo – mudança para pior
4. A estrutura do sistema energético na Europa é absurda. Uma dependência excessiva da Rússia, certamente a menos cara e graças à influência da Alemanha, onde Angela Merkel teve peso decisivo. Interessante saber-se porquê. Não estou a insinuar nada em termos de regalias pessoais mas de filosofia política, pouco europeia e muito alemã.
Essa situação, mais cedo ou mais tarde, teria de ser corrigida. O que questiono é a forma precipitada como se está a processar a mudança sem concertar, entre os Estados-membros, uma política de fundo, conhecendo-se que há dois grupos de interesses antagónicos capitaneados pela França e pela Alemanha, que ainda a 31 de Dezembro de 2021 andaram em litígio público quando a Comissão Europeia decidiu incluir a energia nuclear e o gás natural no “pacote” de energias de transição.
É difícil perceber a aversão frontal da Alemanha à energia nuclear quando estão a ser dados passos gigantes a nível tecnológico para uma segurança cada vez mais robusta. A guerra Rússia-Ucrânia parece estar a suavizar esta oposição, pois até “os verdes alemães” abrandaram a sua posição.
Sanções económicas têm ricochete
5. As sanções têm efeito ricochete, volto a repetir. Em marcha estão a subida dos preços e a escassez dos produtos energéticos e de uma série de outros bens, entre eles os alimentares, fábricas desactivadas e destruição de empregos. Isto nos países da UE e já com manifestações de contestação popular, para além do maior recurso às energias fósseis.
É evidente que na Rússia os efeitos também são muito devastadores. Há que pensar em consequências de fundo de longo prazo, talvez até mais destruidoras.
Leio na imprensa internacional, após o “teatro” de Bruxelas de quinta e sexta-feira, que o Ocidente (UE/EUA) está mais unido mas isolado. De facto, muitos países não estão a alinhar nas sanções económicas. O comércio bilateral, sem recurso ao dólar e ao euro, está em progressão. E, assim, o dólar vê reduzido o seu papel de moeda global, porque está a deixar de intervir em largas fatias do comércio mundial.
A China, a Índia e muitos outros países vêem com bons olhos a perda de importância do dólar, um instrumento de domínio e de ganhos graúdos para os EUA. E se aos negócios bilaterais se vier a juntar o yuan digital, a nova moeda que a China tem em estado avançado de experimentação, o mercado financeiro existente pode, a prazo, começar a baralhar-se em demasia.
A exclusão dos maiores bancos russos do sistema de pagamentos internacional SWIFT trouxe dificuldades acrescidas à Rússia, mas acicatou no comércio mundial o aparecimento de alternativas.
As sanções actuais traduzem-se em proveitos de muito curto prazo, sobretudo para os negócios dos EUA – olhe-se para o negócio do gás. Ora, os potenciais efeitos desastrosos das sanções a médio e longo prazos não estão a ser devidamente ponderados pelos seus autores, nomeadamente o surgimento de um novo tipo de globalização económica com uma carga penalizadora no dólar/euro.
Em síntese: ganhos no curto prazo garantidos para os EUA, aumento da sua influência na União Europeia e consequências complexas de futuro no sistema económico-financeiro com perdas, direi irrecuperáveis, para quem as tomou, e recuo de anos no combate à transição climática.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
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