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quarta-feira, 22 de junho de 2022

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Por
estatuadesal
Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 
17/06/2022

Como sempre acontece com tudo, a guerra na Ucrânia vai perdendo aos poucos o monopólio das atenções. Para tudo dizer em poucas e cruéis palavras, já estamos todos fartos da guerra na Ucrânia. Mas seguramente ninguém mais do que os ucranianos: mais de 4 milhões permanecem ainda exilados no estrangeiro e, embora muitos tenham já regressado, o que encontram em muitos casos e muitos lados é um país desfeito e cujo futuro próximo não parece ser outro senão o contínuo troar dos canhões e a destruição paulatina de qualquer hipótese de regresso a uma vida normal. 


Todas as noites as televisões repetem imagens de pré­dios, escolas, hospitais em ruínas, campos minados e cidades semidesertas, e servem-nos intermináveis entrevistas com habitantes que apenas pedem o fim da guerra e uma oportunidade para retomarem as suas vidas. Todavia, invocadas sondagens cuja origem é misteriosa garantem-nos o contrário: que a grande maioria dos ucrania­nos deseja que a guerra prossiga até à derrota total do invasor russo. E todas as noites Zelensky, o Presidente dos ucranianos, aparece-lhes na televisão, vestido com a sua eterna T-shirt verde-militar, a prometer mais guerra e a pedir aos amigos da NATO novas e mais mortíferas armas para combater os russos. Fora isso, e das raras vezes que vai ao terreno, curio­samente só vemos Zelensky entre militares — discursando-lhes, condecorando-os, exortando-os a prosseguir o combate —, mas jamais o vemos entre os civis, prometendo-lhes mais sangue, suor e lágrimas e encorajando-os a sofrer mais morte e destruição sem fim à vista. Uma falha na meticulosa operação de imagem do Churchill dos tempos modernos.

Ilustração Hugo Pinto

Há um mês, os EUA, a Inglaterra e a NATO tinham convencido Zelensky de que a vitória era possível e estaria iminente: a Rússia ficaria de tal forma debilitada que tão cedo não se atreveria a ameaçar a Ucrânia ou quem quer que fosse. Era esse o objectivo final, conforme explicou em Kiev o secretário da Defesa americano. A imprensa ocidental ajudava a essa crença, descrevendo, com base sobretudo em informações dos serviços militares ingleses, uma força russa desmotivada, desorganizada, mal abastecida e mal comandada. Assim sendo, qualquer veleidade de retomar negociações de paz não só seria um favor feito a Putin, como soaria até a traição. Mas, entretanto, a situação mudou no terreno e mesmo os mísseis de longo alcance fornecidos por Londres e Washington não conseguiram evitar a inversão da situação militar a favor dos russos. Mariupol caiu e o Donbas está praticamente todo nas mãos de Putin, o seu primeiro objectivo militar declarado. Neste momento, até “a necessidade de evitar a humilhação da Rússia”, a declaração de Macron que lhe valeu tantos insultos em Kiev, parece ultrapassada pelos acontecimentos no terreno. O que poderá aquele trio de falcões do lado de cá fazer a seguir? Fornecer armas nucleares tácticas à Ucrânia: dar o passo que falta em direcção à guerra total ou conformar-se, não com a humilhação da Rússia, mas da NATO?

Entretanto, como vamos reparando todos os dias e como era de prever, a Europa, 600 milhões de europeus, mais uns milhões indeterminados de africanos e, entre eles, os pobres entre os pobres estão prisioneiros desta guerra que não começaram, que não quiseram, mas que, segundo nos contaram, serviu para unir mais do que nunca a Europa e a NATO. Mas, arrostando outra vez com a fúria dos sapientes de olhos vendados, deixem-me recapitular a versão alternativa dos factos — que, dia após dia, vem emergindo à superfície até ao dia em que, tal como sucedeu com o Iraque, saberemos a verdade toda, apenas uns milhares de mortos tarde demais.

Esta guerra podia e mais do que devia ter sido evitada e houve tempo suficiente para o fazer. Pessoalmente, comecei a escrever isso dois meses antes do 24 de Fevereiro, impressionado com a estranha passividade com que toda a gente, ONU incluída, via rufar os tambores de guerra e nada fazia para a evitar, nomeadamente trazer as partes de volta aos Acordos Kiev-2, que Putin declarou aceitar como solução definitiva. Apesar disso, acreditei que Putin não invadiria a Ucrânia, de tal forma esse passo me parecia estúpido e desproporcionado. Mas fê-lo, em força e à bruta, que é a maneira russa, sendo que também não há maneiras brandas nem limpas de fazer a guerra. No início, Zelensky deu sinais de estar disposto a negociar e houve várias tentativas de entendimento directo entre russos e ucranianos, mas sempre mediadas ou intermediadas por potências “menores”, como a Turquia ou Israel, sem que os “grandes” se envolvessem — o que foi estranho. E quando os “grandes” finalmente entraram em cena, foi para apostarem abertamente na guerra — o que me tornou as coisas mais claras. A guerra na Ucrânia convinha e convém à Grã-Bretanha cujo primeiro-ministro precisa desesperadamente de causas externas — a Ucrânia, a violação dos acordos do ‘Brexit’, a expulsão dos emigrantes negros para o Ruanda — para que o seu patético desempenho do cargo lhe permita ainda flutuar durante uns tempos mais à tona da sua mediocridade política. Biden precisa da Ucrânia para fazer esquecer a vergonha da retirada do Afeganistão, para substituir junto dos europeus os fornecimentos de gás e petróleo de Moscovo e para lhes vender armas, pois que, desgraçadamente, toda a política americana está cativa dos fabricantes de armas: quer a política interna quer a política externa. E a NATO, nas mãos desse sinistro Stoltenberg, tem tudo a ganhar: importância acrescida depois de ter estado à beira da morte, novos membros e novas áreas de actuação, mais poder militar e mais poder político, recuperando os EUA como líder indispensável em troca de subscrever e acompanhar todos os seus interesses estratégicos, até aos mares da China, se necessário, e como Stoltenberg já foi avisando.

Parece-vos uma visão simplista das coisas? Pois, talvez. Mas não o é menos a visão oposta: a de que a Rússia, sem qualquer razão para ver na contínua expansão em direcção às suas fronteiras da NATO (uma organização puramente “defensiva”), sem nenhuma razão para se opor à adesão de mais um membro, a Ucrânia, lançou uma guerra que, se não for travada ali, irá pela Europa fora até ao Atlântico. Concedo que em Moscovo reina um louco, só não me convenço que do lado de cá reinem missionários da paz.

Mas, entretanto, aqui na Europa — cuja política se resume ao seguidismo em relação aos americanos, à NATO e a Zelensky — os cidadãos comuns vão agora começando a perceber o preço que tem uma guerra que não foi evitada quando o podia ter sido e que ninguém quer parar. A Rússia, que nos garantiram ser um ‘tigre de papel’ económico que se desmoronaria em três tempos com as sanções, está aparentemente bem melhor do que os europeus.

Os brilhantes estrategos deveriam ter meditado nas lições da História e ter-se lembrado de que, enquanto César conquistava a Gália, a Helvécia, a Germânia e a Bretanha inglesa, alargando os limites ocidentais do Império Romano até às fronteiras atlânticas, Roma estava à beira de se desmoronar pela revolta popular motivada pela falta de trigo para o pão. Esqueceram-se os estrategos de que “o tigre de papel russo” tinha duas armas determinantes: energia e cereais, e a possibilidade de cortar as exportações dos cereais da Ucrânia através do Mar Negro. E agora até há “analistas” que falam na “primeira guerra alimentar da História” — uma coisa tão velha e tão usual nas guerras como a própria História. Putin deve estar a rir-se contemplando o resultado das sanções na Europa: energia a preços sem controlo e inflacionando tudo em cadeia, falta de cereais, recessão ao virar da esquina e combate às alterações climáticas chutado para o caixote do lixo.

Mas não só: os próprios fundamentos da Europa e da União Europeia como referência do primado da lei e dos direitos humanos estão a ser afastados pela necessidade de se submeterem aos novos interesses dominantes.

Só o Parlamento Europeu impediu (para já...) Ursula von der Leyen de fazer tábua-rasa da recusa da Polónia em obedecer à legislação europeia em matéria de independência judicial e direitos individuais, dando-lhe €36 mil milhões como prémio de ser dos maiores apoiantes da NATO e da Ucrânia. Mas a mesma Von der ­Leyen foi a Kiev declarar que a Ucrânia, um dos Estados mais corruptos da Europa, “já antes da guerra cumpria os critérios de adesão à UE” e que o país, onde Zelensky acaba de ilegalizar oito partidos políticos, “é uma democracia parlamentar sólida”. E o já citado secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, que agora também já se imiscui na política interna dos paí­ses, declarou-se “muito feliz” porque a Suécia “está a levar muito a sério as preocupações da Turquia com a sua segurança e já começou a mudar a sua legislação antiterrorista”. Ou seja, para ultrapassar o veto da Turquia à adesão da Suécia e Finlândia à NATO, os suecos estarão a preparar-se para declarar o PKK curdo como organização terrorista, como pretende a Turquia, acabando com o asilo político que davam aos seus militantes perseguidos por Ancara. Os mesmos que na Síria foram aliados preciosos de europeus e americanos no combate contra os verdadeiros terroristas do Daesh. Para tudo isto, li algures uma extraordinária explicação “democrática”: estamos em guerra e em guerra funciona o estado de excepção — até para os direitos humanos.

Eis para onde caminha a Europa dos valores e da prosperidade. Eis o preço a pagar por esta guerra da qual somos todos prisioneiros.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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