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sábado, 9 de julho de 2022

A preparar as nossas cabecinhas para a guerra nuclear


Por
estatuadesal
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
08/07/2022

Eu não me vou enfiar em casa de um tipo que não me convidou e que não gosta particularmente de mim na esperança de que ele me convide para ficar para jantar e eu possa aproveitar, assim, a sua bela casa. Especialmente se sei que o tipo embirra com a minha família e, sendo eu o chefe dessa família, expondo-a a sofrer um desaforo do anfitrião, que já sei ser um tipo pouco dado a cerimónias. Esta foi a segunda vez que Marcelo Rebelo de Sousa se foi enfiar no Brasil sem ser oficialmente convidado para tal, para além da cerimónia de posse de Jair Bolsonaro — para a qual não precisava de convite formal nem precisava de ir. Eu percebo perfeitamente que o Brasil seja uma tentação, à qual eu próprio já sucumbi inúmeras vezes. Mas eu não sou Presidente da República — o que significa que viajo quando e onde quero ou posso, sem as mordomias inerentes ao cargo, mas também sem precisar de convite nem de dar satisfações a ninguém. 




Com o Presidente é diferente: para começar, não se pode ausentar do país sem autorização da Assembleia da República, e deve justificar o motivo para tal; em segundo lugar, não viaja quando e para onde quer, mas sim quando e para onde os deveres institucionais de representação do país o convocam, e, em terceiro lugar, isso significa que cada viagem sua ao estrangeiro é objecto de um ajuste bilateral com o país visitado, o qual pressupõe, desde logo, a existência de um convite formal da parte deste que traduza o interesse desse país em receber o nosso Presidente. É assim que o Presidente de Portugal se deve comportar, a menos que queira fazer a figura daqueles Presidentes africanos que passam mais tempo fora dos seus países do que dentro, viajando para todo o lado sem serem convidados, chegando até a bloquear o aeroporto da Portela devido a uma aterragem atribulada com um dos seus jactos privados, como sucedeu na semana passada.

Já anteriormente Marcelo avançara para o Brasil sem a cobertura de uma visita oficial — que, aliás e segundo a regra da alternância, deveria esperar por uma visita do Presidente brasileiro a Portugal, coisa em que Bolsonaro nunca mostrou interesse. Dessa vez (imagina-se que após incansáveis esforços da nossa embaixada), Marcelo lá conseguiu um almoço com Bolsonaro. Mas onde, segundo consta, o Presidente brasileiro fez questão de o receber sem máscara em plena pandemia e de passar o almoço a contar anedotas inconvenientes: um enxovalho que deveria ter ficado de lição. Mas não, Marcelo resolveu agora reincidir, decidindo de sua lavra que ia visitar o Brasil para assinalar os 100 anos da travessia aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral e mostrar-se na Feira do Livro de S. Paulo, onde Portugal era país convidado — dois acontecimentos que passaram completamente ao lado das autoridades brasileiras.

Convidado e depois desconvidado para um almoço entre Presidentes, em Brasília, Marcelo acumulou esforços inúteis para disfarçar novo enxovalho, chegando ao cúmulo de se consolar dizendo que as bandeirinhas dos carros postos à disposição da comitiva portuguesa tinham escrito “visita oficial”.

Então, tentou deitar água na fervura dizendo que importante é que tínhamos emprestado o coração de D. Pedro IV para a celebração dos 200 anos da independência do Brasil, mas nada pôde dizer para minimizar a gafe de marcar um encontro com Lula — o candidato contra Bolsonaro nas presidenciais de Novembro — antes de saber se iria encontrar-se com Bolsonaro. Enfim, todo um desastre diplomático, absolutamente penoso e evitável, expondo-se e expondo-nos a uma humilhação às mãos do Presidente do Brasil e complicando ainda mais a nossa participação, já bem tremida, nas celebrações dos 200 anos — nas quais, seguramente, Marcelo também não abdicará de marcar presença, convidado ou não.

Infelizmente, o Brasil tem uma relação muito mal resolvida com Portugal. Com excepção de uma pequena franja de brasileiros que se deram verdadeiramente ao trabalho de conhecer Portugal para além do pastiche do padeiro, da mulher de bigode e de Fátima, para a generalidade dos outros a imagem que têm de Portugal não apenas é datada e errada, como injusta. Injusta para com um país que tem sido tão generoso na concessão da nacionalidade a brasileiros (sem exigir reciprocidade alguma) e no acolhimento deles: são hoje 250 mil brasileiros oficialmente registados como residentes em Portugal, o equivalente a 4% da população portuguesa. Tal seria bastante para que nenhum Presidente brasileiro se dignasse distratar um Presidente português, mesmo que este se fosse lá enfiar a despropósito: não o fizeram Lula, nem Fernando Henrique, nem mesmo Dilma, que não gostava particularmente de Portugal. Mas Bolsonaro é diferente: é grosseiro, mal-educado, ignorante, indiferente ao estado das relações entre os dois países e, aliás, a quase tudo o que não seja manter-se no poder, ele e o seu clã familiar. É claro que Marcelo sabe tudo isto desde sempre. Assim como sabe que entre ele e Bolsonaro há todo um abismo, em termos políticos, humanos, culturais. E é precisamente por isso que mais custa ver um Presidente português a sujeitar-se a ser vexado por este Presidente brasileiro. E só porque não resistiu a mais uma viagem ao Brasil.

2 Nunca alinhei no bota-abaixo generalizado contra os políticos e a classe política que tanto prazer dá aos portugueses e que tantas desculpas lhes serve para as suas frustrações e as suas próprias mediocridades. Pelo contrário, costumo dizer para mim mesmo que ainda bem que há quem queira fazer política, interessar-se pela coisa pública e governar-nos, justamente porque eu seria incapaz de sentir a menor vontade de governar os portugueses. Mas, se bem que tenha conhecido e visto, ao longo dos anos, casos de quem genuinamente nasceu para fazer política, no sentido nobre de serviço à comunidade, nisso empenhando o melhor das suas energias e competências e, por vezes, pagando um amargo preço por isso, também, como é evidente, inúmeras outras vezes vi na política gente absolutamente desprovida de quaisquer ideais ou sonhos que não o simples exercício do poder como prova de existência.

Esta última gente faz-me confusão. O poder pelo poder, desprovido de qualquer horizonte de realização concreta, de cumprimento de um ideal político, certo ou errado, de serviço prestado à comunidade, o poder apenas como ornamento de vaidade pessoal — o carro escuro e o motorista, o tratamento por “sr. Ministro”, os jantares oficiais, as via­gens no Falcon, a espinha curvada dos assessores e aduladores, os discursos ocos e grandiloquentes —, tudo isso, o simples “perfume do poder”, aparece-me como um exercício de vida digno de gente patética e triste. Porque o poder ou é a oportunidade de fazer alguma coisa de útil quando se pode fazê-lo ou então é a liberdade de não ter poder algum. Mas tê-lo em vão, lutar pela sua inutilidade, sofrer pela sua manutenção, é simplesmente desprezível.

Neste episódio de sobrevivência no poder de Pedro Nuno Santos — cuja lenda o retrata como alguém com ­ideais — o que mais me impressionou foi vê-lo chapinhar pela sobrevivência no charco do poder, não em nome daquilo que, sobrevivendo, poderia ainda fazer por nós, mas sim por ele mesmo, pela sua “carreira política”. O projecto era ele mesmo, só e nada mais. E por isso a nada se poupou para se manter à tona do pântano, até à baixeza de recordar os serviços partidários prestados a António Costa na sua ascensão a secretário-geral do PS. Veja-se ao que pode chegar o desespero de se manter no poder: confundir os interesses do partido, das facções do partido, com os interesses do Governo e do país. Nada que não soubéssemos, mas que, mesmo assim, é preciso descaramento para gritar aos quatro ventos.

Mas não devemos chocar-nos demasiadamente se até na pudica Inglaterra, farol moral da democracia, acabamos de ver o que um primeiro-ministro foi capaz de fazer para se manter no poder. Ali, Boris Johnson, um líder para os tempos de hoje — populista, oportunista, incompetente, desprovido de qualquer sentido ético na política —, caçado a mentir uma, duas e três vezes e a fazer em Downing Street aquilo que proibira os ingleses de fazer em suas próprias casas — e uma vez submetido a um voto de censura do seu próprio partido, o que fez para se manter no poder? Socorreu-se do apoio de Volodymyr Zelensky, sugerindo ser insubstituível para ajudar a Ucrânia, e prometeu baixar impostos (e, com isso, ganhar votos para o partido) se o mantivessem no poder. E, uma vez ganha a votação e assegurada a sua sobrevivência, lá foi ele, impante, participar nas reuniões da UE, do G7 e da NATO, desempenhando o seu papel de grande do mundo, dando lições de bom comportamento ao mundo e decidindo sobre os destinos do mundo, com a autoridade moral que lhe dá ser alguém sabidamente desprovido de qualquer autoridade moral. E depois admirem-se que haja uma crise de credibilidade nas democracias!

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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