Por
Miguel Sousa Tavares,
in Expresso,
26/08/2022
estatuadesal
Mas a verdade é que se começa a temer o aparecimento de brechas nesta tão elogiada unidade europeia, à medida que o Inverno se aproxima e que mesmo a total subversão de todas as metas acordadas em Paris para conter o aquecimento global não dissipam o medo que o corte de fornecimento de gás russo à Europa faça as pessoas exigir o fim da guerra. Porque se as drásticas e “nunca antes vistas” sanções à Rússia para castigar a sua agressão atingiram praticamente todas as exportações, elas deixaram prudentemente de fora o petróleo e o gás, de que grande parte da Europa depende para se aquecer e fazer funcionar a sua economia.
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A guerra na Ucrânia fez seis meses e nenhuma das partes envolvidas — Rússia, Ucrânia e NATO — dá sinal de pretender sequer ponderar abrir negociações para lhe pôr termo. Não sei o que se passa na Rússia, com a sua opinião pública e os seus comentadores (se é que ainda os há, que possam escrever em liberdade). Mas aqui, no lado ocidental da opinião, a simples menção à necessidade de encontrar uma saída para a guerra faz desabar imediatamente em cima de quem se atreve a sugeri-lo a acusação de fazer o jogo de Putin e o epíteto, hoje insultuoso, de ‘pacifista’. E, enquanto se cobre a NATO de elogios e se louva a unidade inabalável dos europeus no apoio à Ucrânia e na defesa dos princípios democráticos, vemos a Suécia e a Finlândia entregarem refugiados políticos curdos a Erdogan como preço a pagar por entrarem na NATO, vemos Joe Biden a atravessar um oceano e um continente para se ir curvar aos pés do príncipe saudita que cortou um jornalista às postas e que espalha o terror islâmico em casa e financia-o fora de portas. E escutamos o apelo dos países bálticos para que todos os cidadãos russos sejam proibidos de entrar na Europa.
Mas a verdade é que se começa a temer o aparecimento de brechas nesta tão elogiada unidade europeia, à medida que o Inverno se aproxima e que mesmo a total subversão de todas as metas acordadas em Paris para conter o aquecimento global não dissipam o medo que o corte de fornecimento de gás russo à Europa faça as pessoas exigir o fim da guerra. Porque se as drásticas e “nunca antes vistas” sanções à Rússia para castigar a sua agressão atingiram praticamente todas as exportações, elas deixaram prudentemente de fora o petróleo e o gás, de que grande parte da Europa depende para se aquecer e fazer funcionar a sua economia.
E, depois de tantas sanções à Rússia, o cúmulo da ironia é ouvir falar da “chantagem russa” quando a Gazprom anuncia três dias de suspensão do fornecimento de gás através do Nordstream I. Mas apesar de tudo, e apesar das previsões sombrias da OCDE para a economia europeia no próximo ano, parece que a guerra está para continuar indefinidamente, e que vale a pena.
Pelo menos é o que tenho lido na pena de alguns sábios economistas, que nos garantem que, se nós estamos mal, na Europa, a Rússia está pior, com as sanções. Eis o que não pode deixar de servir de conforto suficiente, sobretudo num Verão em que vemos todos os rios da Europa secos como nunca, as florestas em chamas e o planeta a caminhar inexoravelmente para um desastre cujo combate deveria ser a prioridade absoluta de quem nos governa.
2 Estava o mundo neste pé, quando Nancy Pelosi resolveu melhorar ainda mais as coisas indo a Taiwan provocar a China. Explicou-se dizendo que a China é uma ditadura que não respeita os direitos humanos, que cometeu o massacre de Tiananmen sobre os seus dissidentes, que ocupa ilegalmente o Tibete, que mantém os uigures em campos de concentração, que violou os acordos feitos com a Inglaterra sobre Hong-Kong, que não desiste da unificação com Taiwan e que é uma ameaça regional e planetária. Tudo verdades incontestáveis e sabidas há anos. E então? Quantas mais ditaduras há por esse mundo, e algumas amigas e aliadas dos Estados Unidos e do Ocidente, que a senhora Pelosi queira ajudar a derrubar? De que serviu a viagem senão para reforçar internamente o poder e a vontade expansionista do ditador chinês, para aumentar a um ponto extremo a instabilidade na região e para sabotar anos de esforços diplomáticos de aproximação entre dois mundos completamente diferentes, com resultados palpáveis e agora destruídos, como a cooperação no domínio das alterações climáticas?
3 No momento em que escrevo desconheço ainda o resultado das eleições angolanas, mas prevejo mais uma inevitável vitória do MPLA — com batota ou sem ela. Será uma desgraça e uma imensa oportunidade perdida para Angola. 48 anos de poder e 46% de pessoas a viverem abaixo do limiar da pobreza num país tão rico como Angola dizem tudo sobre a obra do MPLA.
4 As duas primeiras vezes que me deparei de caras com a agora chamada “linguagem inclusiva” aconteceram no Brasil e apenas me fizeram sorrir, longe de imaginar que mais tarde se tornaria moda e que de moda passaria a certidão de bom comportamento cívico e daí a quase imperativo — tão inútil, tão absurdo e tão idiota quanto o ridículo Acordo Ortográfico da língua portuguesa: o mais patético e humilhante documento jurídico alguma vez assinado por um Governo português.
A primeira vez, aconteceu estava eu a fazer um filme de 60 minutos para a RTP sobre a história da colonização portuguesa da Amazónia — (um projecto editorial que hoje, apenas pelo seu objecto, obviamente não seria autorizado). E estava então em trânsito numa daquelas cidadezinhas amazónicas com nomes do Ribatejo — Santarém ou Almeirim, já não recordo —, quando uma noite me deparo com um comício eleitoral para a prefeitura local, a decorrer numa praça ao ar livre. Sobe ao palanque um candidato com pinta de jagunço dos livros do Jorge Amado, bate três vezes no microfone para se certificar que funcionava, e começa: “Meus povos...” Porém, detém-se, olha a plateia, faz uma pausa e recomeça. “E minhas povas.” Estávamos em 1987.
A segunda vez aconteceu vários anos depois, em Brasília, quando fui entrevistar Dilma Rousseff, acabada de ser eleita Presidente do Brasil. Antes de entrar para a entrevista, uma sua assessora perguntou-me se eu estava ciente de que a Presidente Dilma gostava de ser tratada por “presidenta”. Na verdade eu já tinha ouvido uns zunzuns sobre isso, mas fiz-me de parvo: “Sabe, eu falo português de Portugal. E lá, o substantivo presidente não tem género, tanto se aplica a um presidente homem como mulher. Se eu tratasse a presidente Dilma por ‘presidenta’, teria de tratar um Presidente homem por ‘presidento’. E, mais ainda: a senhora, por exemplo, teria de tratar o polícia federal que está ali fora por ‘senhor polício’.”
Apesar de tudo, e apesar das previsões sombrias da OCDE para a economia europeia no próximo ano, parece que a guerra está para continuar indefinidamente, e que vale a pena
Porém, o que então me parecia anedótico agora é real. Mas não porque os princípios tenham mudado ou porque a necessidade de lutar por eles tenha cessado. A luta contra a discriminação de género mantém-se actual e imperiosa em muitos lugares e muitas situações; o mesmo contra a discriminação sexual e mais ainda contra o racismo. O que mudou foi o discurso e, sobretudo, os intérpretes do discurso: esta auto-instituída vanguarda de aiatolas do pensamento autorizado e do protagonismo consentido que decretou quem é que pode falar em nome dos discriminados e defender os seus direitos, quem é que está autorizado a homenagear a sua cultura e respeitar os seus modos de vida, ficando todos os outros reduzidos ao silêncio, sentenciados como hipócritas e expiando as culpas seculares dos seus antanhos. A única coisa que os distingue dessa nobre Comissão para a Promoção da Virtude e Repressão do Vício que zela pela pureza islâmica na Arábia Saudita é que a estes ainda não lhes é possível cortar as mãos aos infiéis, mas apenas cortar-lhes as boas intenções, nessas madraças do terrorismo de massas que são as redes sociais (e é bem feito para as suas vítimas; ando há anos a pregar-lhes a solução: se se atreverem a viver sem as redes sociais, o que não custa nada, o veneno das víboras não os atinge, transforma-se em baba dentro da boca destas). Dá assim dó ver esses incautos que saem à contenda, carregados de boa consciência e boas intenções, contra os novos aiatolas e os seus mandamentos sobre a “linguagem inclusiva”, a “apropriação cultural” e o “movimento woke”, convencidos, ingenuamente, de que vão ao encontro de uma discussão séria. Não vão: estes fanáticos não querem nem discutir nem convencer. Querem proibir, atemorizar, afugentar da luta contra o racismo e a discriminação quem não pertence à tribo: “Se és branco, és necessariamente racista; se és heterossexual, és homofóbico; e se és homem, és obviamente machista.” A extrema-direita agradece e, graças a eles, cresce.
Mas isso pouco lhes importa. Aliás, nada mais lhe importa; e basta lê-los na imprensa de referência que lhes dá acolhimento: nem a guerra que devasta a Europa, nem os miseráveis que morrem afogados a atravessar de África para um paraíso sonhado, nem o planeta que se extingue à nossa vista. São capazes de fazer abaixo-assinados a apelar aos jornais para censurarem quem não escreve segundo a novilíngua, mas dormem tranquilos enquanto os talibãs proíbem as mulheres afegãs de irem à escola ou de trabalharem; são capazes de se indignarem porque a Rita Pereira põe tranças afro, o que acham uma usurpação cultural, mas estão-se nas tintas para os desgraçados escravos asiáticos da agricultura alentejana — porque são apenas amarelos e não pretos. Na verdade, não enxergam nada de mais importante além do próprio umbigo. Como se a auto-invocada superioridade moral da sua litigância e do seu protagonismo os dispensasse de olhar para o mundo. No fundo, não passam de uma gente sem causas que importem.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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