Porventura não está tudo narrado sobre a vida e obra do Padre José Martins Júnior. Já muito li e escutei de outros que acompanharam de perto, na paróquia, no concelho e na região, a sua vida marcada pela Palavra e pela dedicação às populações que serviu. Não venho aqui repetir e tecer considerações que outros, de memória mais presente que a minha, enalteceram de forma brilhante. Não venho, sequer, enquadrá-lo, politicamente, na linha de uma esquerda de valores sociais que também comungo. Os historiadores, se honestos com a sua verdade, que caracterizem a sua trajectória de Vida. De um aspecto estou certo: mesmo que alguns não gostem, tem um lugar na História da Madeira. Em Setembro, no meu regresso à Região, com ele estarei em mais uma amena cavaqueira pela tarde ou pela noite adentro. Tenho esse dever de Amigo. De resto, gosto de com ele estar, porque aprendo no extravasar de emoções das palavras e desabafos ditos e sentidos. De resto é sempre uma honra e um privilégio.
Não creio, no entanto, que o Padre se afaste de tudo e se remeta ao silêncio. Ele tem uma missão Terrena e, embora com menores responsabilidades, estou certo que continuará a ser um guia espiritual e transmissor da Palavra. Aliás, para o Povo da Ribeira Seca e não só, não se me afigura tarefa fácil assumir a inevitabilidade da substituição, mesmo que se considere que não existem insubstituíveis. Mas porque há uma ligação de afectos, uma conexão umbilical de dezenas de anos, uma união em torno de múltiplas áreas que não apenas a dos rituais religiosos (música, teatro, eu sei lá...) torna-se difícil continuar o seu projecto de anos. Ainda recentemente escreveu (05.08.2022)no contexto da cultura: "Mesmo que ninguém o diga, toda a gente o vê: Machico é diferente!" Complemento: na Ribeira Seca, é diferente.
Ao olhar lá para trás, sem percorrer os detalhes, em síntese, eu diria que há um tempo para estar e um tempo para partir. "Tudo tem o seu tempo determinado e há um tempo para todo o propósito". Foi ali, naquela paróquia, que a Palavra foi contextualizada com a Vida real. Foi ali o tempo determinado para o propósito de uma Igreja sentida e vivida que, em circunstância alguma, deve estar desligada da vida real. Foi ali que foram despedaçadas posições anquilosadas de uma Igreja parada no tempo. Foi ali que o Povo entendeu Cristo e que valia a pena infringir e violar o pensamento de hierarquias cristalizadas. Foi ali que o catecismo teve vida enquanto despertador de uma Igreja prospectiva, acordando o Povo para outras realidades que estão para além dos actos de contricção. Foi ali que o Povo, advinhando, percebeu que a "bondade" de certas atitudes partidárias estavam a léguas de uma política transparente e ao seu serviço. Foi ali que o Povo entendeu que o voto não se compra e que "(...) Só há liberdade a sério quando houver, a paz, o pão, habitação, saúde, educação (...) Só há liberdade a sério quando houver liberdade de mudar e decidir (...)" - Sérgio Godinho. Foi ali que o Povo, em sua defesa, tantas vezes cantou e interiorizou letras do Zeca Afonso, Francisco Fanhais, Pedro Barroso, Janita Salomé e escutou a Palavra do "teólogo da praça pública" Frei Bento Domingues, o Padre Doutor em Filosofia Anselmo Borges, um Homem de pensamento profundo e frontal, por cá, de Mário Tavares a José Luís Rodrigues. E foi ali que, subtilmente, através da doçura e compreensão das palavras e dos sentidos, tomou consciência de grandes teólogos libertadores.
Houve um propósito e esse consegui-o. Basta escutar a população para se perceber que os "Poemas de Deus e do Diabo", de José Régio, foram, pela prática quotidiana, entendidos através do Cântico Negro:
Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos docesEstendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
Há gente que fica na história
Da história da gente
E outras de quem nem o nome
Lembramos ouvir (...)"
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