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domingo, 7 de agosto de 2022

"Não, não vou por aí! Só vou por onde me levam meus próprios passos..."

 

Porventura não está tudo narrado sobre a vida e obra do Padre José Martins Júnior. Já muito li e escutei de outros que acompanharam de perto, na paróquia, no concelho e na região, a sua vida marcada pela Palavra e pela dedicação às populações que serviu. Não venho aqui repetir e tecer considerações que outros, de memória mais presente que a minha, enalteceram de forma brilhante. Não venho, sequer, enquadrá-lo, politicamente, na linha de uma esquerda de valores sociais que também comungo. Os historiadores, se honestos com a sua verdade, que caracterizem a sua trajectória de Vida. De um aspecto estou certo: mesmo que alguns não gostem, tem um lugar na História da Madeira. Em Setembro, no meu regresso à Região, com ele estarei em mais uma amena cavaqueira pela tarde ou pela noite adentro. Tenho esse dever de Amigo. De resto, gosto de com ele estar, porque aprendo no extravasar de emoções das palavras e desabafos ditos e sentidos. De resto é sempre uma honra e um privilégio.



No nosso penúltimo encontro, a propósito de uma celebração, disse-me que essa seria, provavelmente, uma das suas últimas ao serviço da Igreja. Não me surpreendeu, por isso, o anúncio da sua retirada aos 84 anos. Em 2023 outro será o pároco da lendária Ribeira Seca.

Não creio, no entanto, que o Padre se afaste de tudo e se remeta ao silêncio. Ele tem uma missão Terrena e, embora com menores responsabilidades, estou certo que continuará a ser um guia espiritual e transmissor da Palavra. Aliás, para o Povo da Ribeira Seca e não só, não se me afigura tarefa fácil assumir a inevitabilidade da substituição, mesmo que se considere que não existem insubstituíveis. Mas porque há uma ligação de afectos, uma conexão umbilical de dezenas de anos, uma união em torno de múltiplas áreas que não apenas a dos rituais religiosos (música, teatro, eu sei lá...) torna-se difícil continuar o seu projecto de anos. Ainda recentemente escreveu (05.08.2022)no contexto da cultura: "Mesmo que ninguém o diga, toda a gente o vê: Machico é diferente!" Complemento: na Ribeira Seca, é diferente.

Ao olhar lá para trás, sem percorrer os detalhes, em síntese, eu diria que há um tempo para estar e um tempo para partir. "Tudo tem o seu tempo determinado e há um tempo para todo o propósito". Foi ali, naquela paróquia, que a Palavra foi contextualizada com a Vida real. Foi ali o tempo determinado para o propósito de uma Igreja sentida e vivida que, em circunstância alguma, deve estar desligada da vida real. Foi ali que foram despedaçadas posições anquilosadas de uma Igreja parada no tempo. Foi ali que o Povo entendeu Cristo e que valia a pena infringir e violar o pensamento de hierarquias cristalizadas. Foi ali que o catecismo teve vida enquanto despertador de uma Igreja prospectiva, acordando o Povo para outras realidades que estão para além dos actos de contricção. Foi ali que o Povo, advinhando, percebeu que a "bondade" de certas atitudes partidárias estavam a léguas de uma política transparente e ao seu serviço. Foi ali que o Povo entendeu que o voto não se compra e que "(...) Só há liberdade a sério quando houver, a paz, o pão, habitação, saúde, educação (...) Só há liberdade a sério quando houver liberdade de mudar e decidir (...)" - Sérgio Godinho. Foi ali que o Povo, em sua defesa, tantas vezes cantou e interiorizou letras do Zeca Afonso, Francisco Fanhais, Pedro Barroso, Janita Salomé e escutou a Palavra do "teólogo da praça pública" Frei Bento Domingues, o Padre Doutor em Filosofia Anselmo Borges, um Homem de pensamento profundo e frontal, por cá, de Mário Tavares a José Luís Rodrigues. E foi ali que, subtilmente, através da doçura e compreensão das palavras e dos sentidos, tomou consciência de grandes teólogos libertadores. 

Houve um propósito e esse consegui-o. Basta escutar a população para se perceber que os "Poemas de Deus e do Diabo", de José Régio, foram, pela prática quotidiana, entendidos através do Cântico Negro:

Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

O Padre José Martins Júnior não foi pelos caminhos lamacentos que outros quiseram que ele peregrinasse. Sofreu nas entranhas a distorção da verdade, as mentiras da maldade política, sem julgamento eclesiástico, desvirtuamentos narrados pelo seu irmão, Dr. Bernardo Martins, no livro "O 25 de Abril em Machico", ou no livro "Olhares Múltiplos sobre um Homem de causas", publicado no decorrer das solenidades do 50º aniversário sacerdotal ou, ainda, no episódio "Vidas Suspensas" da SIC. O Padre, enfim, carregou, durante anos, uma ignominiosa e fabricada suspensão (política), porque "o propósito" não servia os desígnios de alguns. Ele não foi "por aí", antes preferiu a fidelidade ao Evangelho, o amor a Jesus Cristo e ser um permanente construtor de utopias nesta sociedade que se deixou corroer por dentro. Para que é que ela serve (a utopia), perguntou o cineasta Fernando Birri a Eduardo Galeano: a utopia serve para caminhar, respondeu. Ele soube, humildemente, com a sua acção, interpretar o tempo de caminhar e de parar, o "tempo de rasgar e o tempo de coser; o tempo de estar calado e o tempo de falar". Por isso, uma vez mais, trago aqui Jorge Fernando que escreveu "A Chuva", cuja letra tenho em Mariza a melhor interprete:

Há gente que fica na história
Da história da gente
E outras de quem nem o nome
Lembramos ouvir (...)"

O Padre Martins Júnior fica na "história da gente". Ele escolheu o caminho mais difícil, mais penoso, porque optou pelo "tempo de abraçar e o tempo de afastar-se de abraçar", para voltar a abraçar. O seu blogue Senso e Consenso, o blogue dos dias ímpares, com cerca de 1 500 textos publicados, constitui a tradução fiel da sua luta na dignificação do ser humano. Leio-o e deixo-me envolver na oportunidade, no brilhantismo e ecletismo cultural escorreito dos seus textos, nas linhas e entrelinhas amadurecidas por anos de leituras e de experiências múltiplas. A sua escrita exala o perfume da vida com sentido e a crítica serenamente cáustica que faz acordar para a realidade. Por isso, transcrevo aqui as suas palavras quando, recentemente, se referiu a um outro lutador, o Padre Teixeira da Fonte, palavras que eu, agora, lhe dirijo: "cumpriu o mandato evangélico: servir o Povo de Deus, mais que servir e aninhar-se na Instituição". 

Por tudo isto e a propósito, tenho presente uma excelente síntese de um texto do Padre José Luís Rodrigues (Junho de 2019), a qual não tem merecido a necessária atenção: "(...) A Igreja perdeu o inferno, o céu vai no mesmo caminho, dizem que os jovens não querem saber da Igreja para nada, os casais mandam às urtigas todas as directrizes morais que a Igreja lhes reclama, a sociedade em geral emancipou-se faz tudo sem a referência ao religioso, a cultura actual funciona muito bem sem a Igreja, a vida é possível sem a doutrina da Igreja (...)". E mais adiante: "ninguém deseja uma Igreja apenas zeladora do património, que se preocupa apenas com os bens deste mundo, qual senhor rico que se gasta com as transações do mercado e com as papeladas burocráticas que ditam a posse e o domínio da propriedade (...) Precisamos de encontrar uma Igreja aberta ao mundo, a este mundo concreto da nossa vida, onde o normal já não é o unanimismo da nossa fé (...)".

Ora, foi esse o caminho de luta precursora escolhido pelo Padre Martins Júnior, a de uma Igreja aberta ao Mundo, aberta às pessoas e desligada dos poderes subterrâneos. A Ribeira Seca não é o centro do mundo, mas é centro de uma pedagogia da libertação dos silêncios que matam. Como escreveu (2012) o comum Amigo José Ângelo Paulos, já falecido, "o Padre José Martins Júnior é o Pierre Theilhard Chardin dos tempos actuais". E nisto há Bispos, ainda vivos, que lhe devem um pedido de perdão. Não apenas a ele, mas ao Povo da Ribeira Seca. Também alguns políticos, pelas ofensas, humilhações e perseguições sem sentido. Gente que sempre desejou "trazer a Igreja pela trela". Durante anos não acredito que uns e outros tenham dormido de consciência tranquila. Subtilmente, dirigindo-se à hierarquia católica, um dia Martins Júnior disse e bem a um jornalista: "Ninguém pode servir a dois senhores: ou se serve a Cristo ou se serve o Poder" (...) e o que nos vale é que há mais Cristo além da Mitra."

Falta, agora, o livro da Vida e Obra deste Padre revolucionário, palavra que só pode ser entendida como inovador, original, renovador e ousado. 

Um abraço meu querido Amigo. Encontramo-nos em Setembro. 

Ilustração: Fotorodas/Barcelos

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