Por
António Guerreiro,
in Público
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O que são “crimes de guerra” — como os que têm sido apontados à Rússia, mas também à Ucrânia — no tempo da guerra técnica, da massificação e mecanização do combate conduzido a uma distância cada vez maior (que as aproximações não anulam) e em que a aniquilação e a destruição se tornaram eminentemente impessoais? A resposta é simples e dolorosa: a actual categorização de “crimes de guerra” não é mais do que um vestígio piedoso de uma ética que os mecanismos gigantescos da guerra actual tornaram completamente anacrónica: a ética guerreira fundada em regras que podiam ser as do ódio pelo inimigo, mas sem que, pelo menos num nível superestrutural, deixasse de haver a afirmação de outros valores.
Não começou agora esta experiência da guerra em que tudo é reduzido à categoria de material, numa guerra de materiais e, num grau crescente, de armas imateriais. A Primeira Guerra Mundial foi muito traumática exactamente porque inaugurou esta nova forma de belicismo. E, num fragmento de Minima Moralia, Adorno sintetiza assim a lição da Segunda Guerra Mundial: “Se a filosofia da história de Hegel tivesse abrangido a nossa época, as bombas-robots que eram os V2 de Hitler teriam o seu lugar entre os factos empíricos que ele [Hegel] considerou que exprimem o estado alcançado pelo Espírito do mundo”. E, ampliando esta ideia de que o “espírito do mundo” pôde ser visto montado nas asas de um foguete sem cabeça, e não num cavalo (como o viu Hegel), Adorno tira a “satânica” conclusão de que o “sujeito” desapareceu — já não há piloto no avião, já não há uma pessoa detentora da arma. Muita energia foi gasta pelos sujeitos “para que já não exista o sujeito”, diz Adorno.
Não há exemplo mais eloquente deste desaparecimento do sujeito (e, sem sujeito, onde está a o crime e o criminoso de guerra?) do que a execução de um inimigo, sem protocolos judiciários e reduzido à condição de simples alvo vulnerável, mesmo que se esconda nos antípodas. Foi o que aconteceu recentemente ao líder da Al-Qaeda, o egípcio Ayman al-Zawahiri, morto por um drone, no Afeganistão.
Um drone, na definição técnica que podemos ler em Théorie du drone, de 2013, um livro essencial para percebermos as características das guerras actuais, da autoria de um investigador em filosofia no Centre National de la Recherce Scientifique chamado Grégoire Chamayou, é uma câmara voadora de alta resolução, telecomandada e equipada com um míssil. Chamayou também o designa como um OVNI, isto é, um objecto violento não identificado que pulveriza completamente as categorias clássicas que definiam a guerra, incluindo as próprias categorias de acção e lugar. O que é um lugar onde decorre a guerra e onde é que uma acção se realiza (a acção de matar, por exemplo) quando essa acção se estende entre pontos tão distantes como uma sede da CIA, em Washington, ou uma base militar no Nevada e uma aldeia do Afeganistão? O drone predador, que substitui a guerra por uma caça ao homem, fica evidentemente fora da equação dos “crimes de guerra”. É a arma da impunidade absoluta: mata sem que se cometa crime e sem que chegue a haver guerra. Do ponto de vista de um tradicional ethos militar, o drone é a arma dos cobardes: não requer bravura nem espírito de sacrifício e erradica totalmente a exposição à violência por parte de quem o comanda. Quem o usa é completamente invulnerável.
O livro de Chamayou encerra com um capítulo que avança com uma hipótese sinistra: a de que os drones passarão a ser telecomandados nos laboratórios de investigação militar por robots. Esta “robótica letal autónoma” não é ficção científica, é o resultado de todo o conhecimento e energia despendidos para que “já não exista o sujeito”, como previu Adorno. Os drones accionados e telecomandados por robots não requerem a presença do humano em nenhum momento da operação, nem acima dela. São as máquinas que tomam a decisão de matar, já não há ninguém a carregar no botão. Uma das vantagens desta robotização que expulsa o humano é que se tira o tapete a quem tem contestado a utilização dos drones. E os mais veementes nessa contestação, diz-nos Chamayou, nem sequer foram os pacifistas, foram os pilotos da aviação militar, os “cavaleiros do céu”, essa casta superior que de repente se viu desapossada da sua nobreza, baseada no ethos guerreiro, isto é, no heroísmo, na gravidade e na virilidade de que ele sempre se serviu.
“Crimes de guerra”? Que conversa tão antiga, tão mole, tão destituída de sentido quando percebemos o que é a guerra actual.
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