Por
António Guerreiro,
in Público,
20/08/2022
estatuadesal
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Por volta de 1985, uma revista francesa (L’Express?, Le Nouvel Observateur? Não consigo lembrar-me) publicou uma reportagem assinada por um jornalista francês que se infiltrou nos ambientes gay frequentados por membros da Igreja Católica, muitos deles a residir no Vaticano. Havia nessa reportagem a descrição do que se passava em bares e discotecas que garantiam a estes frequentadores o sigilo que eles exigiam; indicava-se, com pormenores, a existência de moradias da Igreja que tinham sido clandestinamente convertidas em instalações para encontros sexuais; localizavam-se locais onde os padres iam em busca dos ragazzi di vita; nomeava-se o número de um autocarro que, na sua última viagem nocturna, já depois da meia-noite, atravessando Roma e com a sua última paragem no Vaticano, era posto ao serviço do engate ambulante.
Nada de violência sexual sobre menores (isso pertencia a outro território que só mais tarde viria a ser explorado); nada daquela “anarquia do poder” definida por um dos hierarcas no Salò, de Pasolini; nada que os cidadãos laicos não conheçam ou não experimentem. Apenas incursões na noite escura e pródiga de prazeres, frequentada em abundância por quem faz parte da instituição obcecada pelos pecados da carne e por penalizações infernais a quem os comete.
A reportagem, longuíssima, publicada numa revista prestigiada e de grande circulação, tinha tudo o que hoje levantaria vozes indignadas e gritos de escândalo. Mas não aconteceu nada. Provavelmente, a maior parte dos leitores leu-a com a mesma atitude com que eu a li: nada de novo sob o Sol, apenas casos pouco católicos no coração e nos arredores da Santa-Sé, com pormenores picantes vistos e relatados por um jornalista. Era a Igreja tal como a imaginávamos com algum deleite para além da sua circunspecção oficial e da sua moral doutrinária. E isso era mais motivo para conversa jocosa, mas indulgente, do que para julgamentos sem perdão.
Mas o humor e o espírito da época mudaram. E hoje a Igreja, até aos lugares mais altos da sua hierarquia, está a ser examinada não nas suas derivas pecaminosas, mas nas suas práticas criminosas. Hoje, a opinião pública apoderou-se do sofrimento e trauma das vítimas e engendrou um consenso acerca do teor e intensidade desses traumas.
Exclusivamente traumatizantes são os actos sexuais exercidos por adultos sobre crianças e adolescentes. Mas dos outros traumas que o regime dos internatos e seminários infligia aos seus alunos (e há tanta literatura sobre isso), inclusivamente o regime das interdições sexuais, em que até por pensamento se pecava, ninguém fala e ninguém se ergueu para exigir reparação das vítimas, mais não seja simbólica.
De facto, também aí há tanta matéria criminosa como na violência sexual. Infelizmente, o consenso é a de que é nas zonas do sexo, e em nenhum outro lugar, que se engendram os monstros e as suas vítimas.
Na época em que li essa reportagem, li também um volume da autobiografia do escritor catalão Juan Goytisolo, Coto vedado, que tinha acabado de sair. Impressionou-me um episódio que o escritor conta com uma grande naturalidade: a viver com os avós, ainda não tinha entrado na adolescência quando começou a ter uma continuada visita nocturna no seu quarto. Era o avô que lhe ia acariciar o sexo e ali ficava deitado ao lado dele por algum tempo, sem que a avó suspeitasse.
Recordando este acontecimento da sua vida familiar, Juan Goytisolo tem a delicadeza de manifestar um enorme carinho pelo avô, sem fazer dele um monstro e manifestando dor pela repressão a que o avô teria sido submetido ao longo de toda a vida. Tal como é contado, este episódio de Coto Vedado pertence a uma época de humores e disposições diferentes da nossa. A completa ausência de trauma, nem sequer sofrimento, em Juan Goytisolo, vista à luz da psicologização sombria em que estamos envolvidos, é impressionante.
Juan Goytisolo reinterpreta o que lhe aconteceu não como uma produção de trauma individual, mas como manifestação de uma sociedade repressiva de que o avô tinha sido vítima. E aqui levanta-se uma questão importante (de que fala, aliás, Geoffroy de Lagasnerie no seu livro agora editado em Portugal, O Meu Corpo, Este Desejo, Esta Lei e na entrevista que pode ser lida nesta edição): muitas vezes, o sofrimento é induzido pelo processo de reinterpretação e resignificação do passado à luz do presente, dos consensos que ele cria. A des-razão do nosso tempo engendra monstros e traumas.
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