Já tem uns anos quando visitei a Galeria Nacional de Oslo. Ali se encontram obras de El Greco, Renoir, Monet, Cézanne, Degas e Picasso, entre muitos outros. Não apenas por isso, mas, conhecedor da emblemática história de Edvard Munch, "O Grito", sobremaneira, motivava-me. Entre salas dei como essa Obra, de 1893, a original (existem, julgo eu, mais três versões), significativa do desespero. Munch não teve uma infância fácil, a mãe faleceu muito cedo tal como uma irmã e o pai, segundo li, era portador de uma doença do foro mental. Tornou-se artista, expressionista, e aquela Obra, pelos intensos diálogos, no quadro das preocupações sociais que, todas as semanas, mantinha com o meu Amigo Franklim Lopes, já falecido e que tanta falta me faz, era uma que me fascinava pelo significado da ansiedade, da angústia, do desespero existencial e até do medo.
"O Grito" estava, na altura, mesmo ao lado de uma outra Obra da sua autoria, "Madonna", de uma enorme sensualidade. Tenho presente todo o ambiente. Sentados no chão, de pernas cruzadas e, curiosamente, de mãos colocadas à cara tal qual na pintura, estava um grupo de meninos que, talvez, não tivessem mais de dez anos. Um professor, na altura considerei, com a voz muito baixinha e meiga, gesticulava e falava, presumo, sobre o(s) quadro(s) que os pequenitos observavam com interesse. Situação normal que se vê em tanto lado. Mas, ali, aquele quadro, o seu significado, acrescido de uma educação vivida perante e através da pintura, redobrou o meu entusiasmo. Até que ficámos sós, inertes, a uns três metros da Obra, em silêncio, cruzando pensamentos sobre os tantos e mais variados gritos que acontecem. Uns, interiores, pelo que se vê e sente, outros, manifestados de tanta maneira e de forma bem audível. Franklim ficou com as lágrimas nos olhos, ele, um apaixonado do jazz, do canto e da música do sofrimento, ele, o Homem culto capaz de cruzar os inúmeros gritos que a humanidade dá e que passam ao lado da maquiavélica máquina trituradora dos seres humanos.
Depois conversámos sobre tudo isto, sobre o Mundo egoísta, cruel, sem amor, de pura ilusão, destruidor, de dor, de desmedidas e insustentáveis ambições, na palavra de Saramago, onde "(...) tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses (...)".
"O Grito" do norueguês Munch é isso, é actual, é um basta, estou farto, cansado, não aceito que, no plano global, dentro em pouco, 1% dos mais ricos venham a ser donos de dois terços de toda a riqueza. Li, há tempos, um estudo sobre desigualdade, do francês Thomas Piketty, que revelava que os 0,1% mais ricos aumentaram a sua riqueza tanto quanto a metade mais pobre da população. Mas "O Grito", tenhamos presente, tem, também, uma expressão local, quando se olha para a sociedade, quando nos cruzamos com a pobreza, visível ou escondida, para a escravização do mundo laboral, para as miseráveis pensões, para os olhares tristes, para a(s) solidão(ões), para as mãos estendidas à caridade, para a inversão das prioridades, para as diversas violências, para a secundarização da educação e da saúde, ou quando olhamos, paradoxalmente, para a ânsia na conquista de um lugar, para os atropelos, para a marginalização, para a crueldade dos actos, para o submundo político, distante do altruísmo, transformado em um tabuleiro de xadrez, cheio de jogadas exaustivamente pensadas até ao cheque-mate, quando se olha para a venda do homem aos bocados (Sttau Monteiro), para presunção, a tristeza da arrogância e a incompetência, para tanto nariz colado aos joelhos, para tanto discurso oco e falso de gente sem espelho e consciência das suas limitações. O quadro de Edvard Munch explica-me isso, na perenidade daquela Obra, uma razão estúpida de viver e de comportar-se com os outros. Na última semana tantas vezes senti-me frente ao quadro de Munch. E gritei, para dentro!
Ilustração: Google Imagens.
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