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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

OS VAMPIROS DE HOJE

Local: uma grande superfície comercial. À entrada dei de frente com um amigo que já não via há um certo tempo. Conversámos sobre as nossas vidas. Das palavras de circunstância passámos a alguns assuntos mais sérios, no essencial, a sociedade que estamos a deixar para os vindouros. Um diálogo que, rigorosamente, nada teve a ver com qualquer atitude bota-de-elástico, ao jeito de "no nosso tempo é que era bom". Nada disso, até porque o nosso tempo de plena juventude, permitam-me a palavra, foi uma trampa, na sequência do pós II Grande Guerra, da ditadura de Salazar e quejandos, do analfabetismo, da emigração, da pobreza avassaladora e de uma posterior guerra colonial estúpida e sem sentido na qual estivemos envolvidos. Safámo-nos, como poderíamos ter regressado em um caixão de chumbo! Nos primeiros seis anos de guerra, o Estado só pagava o regresso dos militares vivos. Portanto, tempo que não se esquece, mas que também nos permite olhar o presente com distanciamento e preocupação. Falámos, obviamente, da parte política, dos desencantos, dos roubos, das pensões, de um mundo às avessas que humilha, do nosso país que se transformou, é verdade, mas onde quase tudo o que se passou ao longo do Século XX não serviu de memória para a construção de uma sociedade menos assimétrica e, sobretudo, com preocupações de plena humanidade. Os sucessivos casos de corrupção, as obras megalómanas, a inversão das prioridades, o encolher de ombros para as gerações seguintes e as políticas do facto consumado, deixam um enorme rasto de tristeza. Porque tudo poderia ser diferente, para melhor, com o mesmo dinheiro! 


Vou a sair e novo encontro, agora com  uma Amiga de longa data, desde há 40 anos, com quem não me cruzava faz muito tempo. Filhos crescidos, dois com curso superior, que deambulam de emprego em emprego, quando surgem, claro, sempre muito limitados nos salários em contraponto com os encargos da habitação e de tudo o que envolve a sobrevivência. Ela, uma funcionária de uma transportadora aérea que acabou com a representação na Região, preferindo a escravização de um call center, porque sai mais barato! Acabaram com a montra e os colaboradores para casa. Apesar disso, essa minha Amiga apresenta um semblante de optimismo contagiante. Será?

Na sequência do nosso interessante diálogo, cruzando o que ali estávamos a equacionar com os desabafos que antes tinha tido com o outro amigo, perpassou-me a canção "Os Vampiros" cantada pelo Zéca Afonso... "eles comem tudo e não deixam nada...". É isso, exemplos tantos, arquitectos e engenheiros a 300/400 euros, recibos verdes, precariedade em todos os sectores de actividade, anulação de direitos sociais, juventude impedida de viver na sua terra, natalidade bloqueada ou adiada, fracasso nas habilitações académicas e profissionais, cerca de 1000 idosos dependentes que não conseguem um espaço em um lar que suavize o outono da vida, e damos com uma catrefada de vampiros de hoje a pedir à juventude que seja empreendedora neste mundo cão, selvagem, indigno, desumano "que chupa o sangue fresco da manada". 

Sejam empreendedores, dizem-nos com voz terna, face aos "mordomos do universo todo, senhores à força, mandadores sem lei (...)". É, minha querida Amiga, é isso, quando tudo poderia e deveria ser equilibrado e, sobretudo, JUSTO, se outro tivesse sido o sentido organizacional de construção de uma sociedade para todos, inclusiva, que garantisse à maioria, respeitando a diferença, o direito à esperança.
Meti-me no carro e dei comigo a cruzar pensamentos, os encontros acabados de ter e sobre uma fotografia que tinha visto, logo pela manhã, sobre uma escola que obteve muitos "vintes" na avaliação final do secundário. Que paradoxo, exclamei para dentro! Afinal, de que servirão esses vintes, quando a vida, a vivência, a convivência, a cultura, a sabedoria, o sucesso e um relativo bem-estar é muito mais que uma circunstancial nota? Eu que nunca tive nenhum vinte escolar, "graças a Deus"! Uma satisfação que pode ser pontual, mas que de pouco valerá, quando o sistema no qual funcionamos está estruturalmente errado. O verdadeiro conhecimento é muito mais do que x em uma determinada disciplina escolar. Basta repetir (treinar) até à exaustão que a nota aparece na pauta. Basta repetir o manual. Basta uma certa inflação na dita avaliação. Pode oferecer, acredito que sim, essa tal satisfação momentânea, poderá servir, até, para o director y dizer "que a minha escola é melhor que a tua", e depois? Quantos, mas quantos foram, ao longo dos anos, no quadro deste sistema educativo, considerados excelentes e, depois, descartados por uma estrutura organizacional da sociedade que não os considerou? Quantos obtiveram "vintes" e mudaram de curso? Sei de muitos! E sei de casos que são os pais e os avós que os aguentam. Seria interessante fazer um estudo para avaliar por onde andam os "vintes" dos últimos dez anos e de que valeu esta pública e nociva luta entre duas escolas. A vida pede-nos conhecimento, e a SABEDORIA, a excelência mental, é muito mais complexa que um somatório de alguns "vintes".  
Regresso ao centro comercial cenário desses meus encontros. Na aparente vida, do entra e sai das lojas, questiono-me, tantas vezes, sobre quantos dramas ali se cruzam? Da aparente felicidade à realidade há uma enorme distância. Quantos poderiam ser resolvidos ou atenuados, não fosse a desorganização onde, intencionalmente, nos meteram? Cantou o Zéca:

(...)
A toda a parte chegam os vampiros
Poisam nos prédios poisam nas calçadas
Trazem no ventre despojos antigos
Mas nada os prende às vidas acabadas
(...)
Ilustração: Google Imagens.

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