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sexta-feira, 13 de março de 2020

A direita será devorada pelo bicho que julga domar


Por 
Daniel Oliveira, 
in Expresso Diário, 
10/03/2020

O Movimento Europa e Liberdade (MEL), fundado originalmente para dificultar a vida a Rui Rio (e não para fazer oposição a António Costa), inicia esta terça-feira, na Culturgest, em Lisboa, a sua segunda tentativa de replicar a “Aula Magna das esquerdas”, do tempo da troika, à direita. No cardápio estão várias figuras da direita portuguesa e os diretores do “Público”, “Observador” e “Eco”, numa saudável transparência quanto ao seu posicionamento político. Rui Rio voltou a declinar o convite (por razões de agenda, claro), enviando Paulo Mota Pinto para encerrar os trabalhos das tropas inimigas.


Mas o facto mais interessante, que corresponde a uma estreia e a uma declaração política, é o convite André Ventura, que falará amanhã, quarta-feira. Não vale a pena vir com conversas sobre o pluralismo político. Este é um encontro politicamente circunscrito, para o qual não foram convidadas personalidades do centro-esquerda e da esquerda. Assim sendo, o que os organizadores dizem é que no espaço político em que situam cabe André Ventura mas não cabem pessoas do PS, do BE ou do PCP. Que Ventura é um deles. Que a fronteira entre a esquerda e a direita é, para eles, mais relevante do que, por exemplo, a fronteira entre os xenófobos e os que os combatem. É uma clarificação relevante.

Alguns organizadores verão no Chega um aliado natural. É seguramente a linha dos que venceram a luta interna no CDS e de parte dos que a perderam no PSD, como Miguel Morgado, mais próximo de Ventura do que da matriz original do PSD. Outros acreditarão que integrar André Ventura é a melhor forma de o neutralizar. Tem sido essa a mensagem errada do Presidente da República. É tentador pô-lo ao lado de Daniel Proença de Carvalho e José Miguel Júdice, dois símbolos daquilo a que chamamos “sistema”. Mas este pequeno prazer não neutralizará ninguém.
Em França, a direita republicana manteve durante muitos anos um cordão sanitário com a extrema-direita xenófoba. Não os aceitava no governo, não os apoiava nas autarquias ou nas segundas voltas para a eleição de deputados, não tinha frentes políticas com ela. Esse cordão, a que estupidamente se juntou uma lei eleitoral que permitiu a permanente vitimização da Frente Nacional, não impediu a lenta progressão da família Le Pen, sobretudo depois de Marine ter socializado o seu discurso. Mas conteve-o. Enquanto durou, permitiu que muitos eleitores da direita tradicional olhassem para aquele partido como uma escolha que merecia censura social e política. Em Portugal, esse cordão sanitário não durou umas semanas. Na Europa, o único país que o mantém é a Alemanha. Por pouco tempo, suspeita-se. Do Brasil aos EUA, passando pela generalidade dos países europeus, os partidos da direita tradicional acreditaram no mesmo em que acreditam os promotores do MEL mais bem intencionados, que são provavelmente uma minoria.

A extrema-direita aproveitou o palco e a credibilização que lhe foi oferecida, não cedendo um milímetro na sua agenda e nos seus métodos (especialmente evidente desde que as redes sociais passaram a desempenhar um papel fundamental no debate público), e conseguiu dirigir-se com muito mais eficácia aos eleitores da direita tradicional. Graças à ação dos próprios dirigentes dos partidos em que costumavam votar.

Não preciso de explicar o que aconteceu depois. Por todo o lado, a extrema-direita já não está a receber votos da esquerda, como aconteceu nos anos 80 e 90. Está a dizimar a direita tradicional. Nos seus valores, a extrema-direita é inimiga de todos os democratas e defensores dos direitos humanos e do Estado de Direito. Mas do ponto de vista eleitoral os seus maiores adversários são os partidos da direita tradicional. André Ventura não vai à Culturgest para juntar forças contra António Costa. Vai receber o certificado de credibilidade que o ajudará a roubar votos à direita tradicional.

Claro que, como Miguel Sousa Tavares e Ricardo Sá Fernandes, o excesso de autoconfiança de alguns os faz acreditar que com bons argumentos vencerão Ventura. Talvez num debate civilizado sobre a castração química ou até física, a prisão perpétua e a pena de morte que não repugna o professor de Direito. Como descobriram os dois, Sá Fernandes e Sousa Tavares, em direto e na televisão, rapidamente descobrirão que só se debate com quem quer debater. O jogo de Ventura é outro e nesse terreno não o vencem seguramente.

Quando os ingénuos e os oportunistas que puseram Ventura no seu barco perceberem que estão a repetir os erros de outros derrotados será tarde demais. Ou serão, como a direita francesa e espanhola, reféns da agenda de ódio e intolerância da extrema-direita, ou acabarão por se submeter a ela, como aconteceu nos Estados Unidos, Brasil ou Itália. Também eles julgaram, quando romperam o cordão sanitário, que integrariam a extrema-direita. Foram integrados por ela. Ela é que passou a ser o novo normal. Com a prestimosa ajuda daqueles que dizimou.
Em Portugal, a legitimação de André Ventura começou por ser dada pelo próprio Passos Coelho, quando, ao contrário do CDS, manteve o apoio à sua candidatura à Câmara Municipal de Loures, depois de declarações públicas claramente racistas. Como viram, o resultado não foi a sua integração. Foi a sua legitimação para voos mais altos. Ventura usou o PSD para rampa de lançamento de um projeto a solo e usará esta nova legitimação para crescer mais um pouco, desdramatizando o voto no seu partido.
Afinal de contas, é uma escolha como qualquer outra. São os seus concorrentes mais próximos que o dizem. Julgam que metem o leão na jaula para o domar. Estarão trancados nessa jaula quando o bicho os fizer em postas. Como tem acontecido em todo o lado em que se achou que a convivência era possível. Não aprendem nada.

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