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sexta-feira, 20 de março de 2020

Salvar o euro, outra vez (ou: de onde vem todo este dinheiro?


Por
Pedro Santos Guerreiro,
in Expresso Diário, 
20/03/2020

Não está nas primeiras páginas nem nas primeiras preocupações, mas este dinheiro todo tem de vir de algum lado. Lembra-se das dívidas soberanas? Dessa imensa abstração a que chamamos “os mercados”? Então lembre-se de outra coisa: é preciso salvar o euro. Outra vez. E isso já começou. Até porque desta vez não são só os “países periféricos”, são todos. Até porque desta vez inclui a Alemanha.


São tantos os anúncios de milhares de milhões daqui e dali que ninguém percebe nada — o desenho concreto torna-se pintura abstrata. Mas veja este número de ontem: 750 mil milhões de euros do BCE. Não pense em quantos aeroportos do Montijo daria para construir (daria para 580, mas também escusa de pensar no novo aeroporto, não vai acontecer agora), pense antes no que isso significa. Significa que as bazucas, os obuses e os canhões estão a sair do paiol não apenas para salvar a economia, mas para salvar o euro. Sim, esse mesmo, o tal que esteve por um fio até ao verão de 2012, durante as intervenções externas.
A crise de 2008 durou dois a três anos a chegar às dívidas soberanas, porque começou no sistema financeiro. Mas esta crise nasce na economia e é diferente, porque é simultaneamente de procura (compra-se menos, por quebra de rendimento e por medo) e de oferta (produz-se menos por paragem das fábricas, distribui-se menos porque as cadeias de abastecimento estão quebradas). Desta vez, o contágio não espera dois ou três anos, como em 2008: está a ser num ápice. Os mercados parecem loucos, os de ações, de obrigações, de matérias-primas e todos os seus derivados.

DE ONDE VEM O DINHEIRO?

De dívida, claro. Mas quem empresta?
Ninguém se atreve a fazer contas ou dizer as contas que faz, porque ninguém sabe quanto tempo durará e ninguém quer assustar outros com a sua própria escandalização. É como atirar uma pedra para um poço de que não se vê o fundo e ficar à espera de ouvi-la esmurrar a água. Mas as recessões mensais são uma escavação inédita. Mas as despesas do Estado com saúde, com segurança social e com a economia (incluindo a quebra de impostos e de contribuições) são uma gazua terra adentro.
É um exercício destravado sem fecho para balanço, com um jorro de défices mensais crescentes sobre um PIB minguante. Os défices de março e abril sobre o PIB hão de ficar para a História como o maior bungee jumping orçamental das nossas vidas. A corda é a dívida, que hoje nos salva e amanhã não nos pode enforcar. É por isso que as autoridades monetárias, europeias e governamentais, têm de perder hoje as regras de controlo sem perderem o controlo das regras. Amanhã pagaremos: a dívida de hoje são os impostos de amanhã. Estes são meses de mandar o défice à vida, mas não de rasgar as folhas seguintes do calendário.
Sim, mas quem empresta? Quem empresta ao Estado que “empresta” às empresas e às pessoas?
Os bancos centrais, que injetam liquidez direta e indiretamente — por exemplo comprando ativos e dando garantias de liquidez.
A União Europeia, que ou age em função do todo ou não é União Europeia. Não tanto através do seu próprio orçamento, que é relativamente pequeno, mas dando garantias e servindo de intermediário, o que implica criar finalmente instrumentos de dívida poderosos como os eurobonds, obrigações europeias para dar potência às impotências nacionais.
Os próprios mercados, pela deslocação das massas de dinheiro que estão a sair de títulos de risco como ações e procuram refúgios. Sim, há perdas gigantes, mas o dinheiro não desaparece todo, circula pelo mundo, quem vende ações investe noutros sítios, como obrigações do tesouro, ouro ou divisas, mesmo se sabemos que há sempre garimpagem por oportunidades de enriquecimento súbito que despontam em alturas de pânico.

SALVAR O EURO

Glossário: comprar ativos, comprar carteiras de crédito, é na prática emprestar dinheiro; flexibilização quantitativa é na prática emitir moeda (coisa que os bancos centrais nunca admitirão); emitir eurobonds é na prática mutualizar o risco, apondo o menor risco coletivo ao maior risco individual.
Os mercados estiveram quase “fechados”. Nos últimos dias houve crise de liquidez nas obrigações, depois das declarações desastrosas de Christine Lagarde, pelas quais pediu depois desculpa, que prejudicaram os países com mais risco, como Itália, Espanha, Grécia e Portugal. Os juros das dívidas públicas começaram a subir e, sobretudo, a diferença entre os juros destes países e os da Alemanha (os “spreads” das dívidas) aumentaram muito.
As taxas continuam historicamente baixas, mas por exemplo o IGCP (que tem feito um excelente trabalho) quis colocar (pedir emprestado) 1,5 mil milhões de euros há dias e só conseguiu mil milhões. Não é preocupante, é um sinal. Se a zona euro não der cobertura por exemplo a Itália, o país entra em colapso financeiro.
Foi assim que surgiram os 750 mil milhões do BCE, que significam que o banco central quer “aguentar” o mercado, está disposto a comprar dívida para compensar a fuga ou paralisia de investidores. Assim, há uma compensação da quebra de procura, o preço não despenca e continua a haver financiamento. As medidas são extraordinárias, como devem ser: o BCE compra dívida pública (empresta a Estados) mas também de empresas (empresta-lhes dinheiro) e baixa as exigências de garantias colaterais aos bancos (empresta-lhes mais facilmente).
Estas medidas são boas, tanto que “os mercados” desataram a subir desde esta quinta-feira, mesmo se esta arritmia diária segue e continuará a seguir como carrinhos numa montanha russa. E significa que, financiados pelo banco central (na Europa como em todo o mundo ocidental), os Estados têm financiamento para o que precisam: as políticas orçamentais, através da baixa de impostos e do aumento dos seus gastos. E que os bancos não terão falta de liquidez nem serão obrigados a automaticamente aumentar o capital quando perderem ou suspenderem cobranças de créditos a clientes que não podem agora pagá-los.
O BCE já corrigiu o tiro. Falta ainda assumir dívida europeia. Virá o tempo de um “plano Marshall”. E, sobretudo, fazer com que os Estados da UE coordenem as políticas orçamentais e económicas, ou será cada um por si. Os défices de França, de Espanha, de Itália já dispararam, o da Alemanha também subirá. E sim, a Alemanha é uma peça-chave em tudo isto. Pela força económica e pela força política. E porque, como desta vez também a atinge com força, pode tomar decisões coletivas que antes rejeitou.
Estamos ainda no princípio, a pedra atirada ao poço está ainda longe de socar a água. Serão necessárias mais medidas e sobretudo mais coordenação. Se assim não for, podem voltar a mudar o nome à UE, não para voltar a CEE, mas para assumir ser apenas CE: uma Comissão Europeia, mas não uma União. Pior que um Brexit seria ruir por dentro. Seria a ruína.
União Europeia, precisamos de ser mesmo União Europeia. Europa, não precisamos de ti como se fosses outra que não nós. Precisamos que nós sejamos tu e que tu sejas nós.

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