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quinta-feira, 20 de maio de 2021

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Por
Daniel Oliveira, 
in Expresso Diário, 
19/05/2021


Algumas potências coloniais eram democracias. Isso dava superioridade moral aos colonos? Essa democracia era para consumo africano? Os ingleses respeitavam mais os direitos das mulheres. Isso retirava aos indianos o direito à autodeterminação? Julgando-se modernos, estes argumentos veem o colono como civilizador. Partindo do princípio que há democracia com apartheid, pode haver potências coloniais democráticas, não há colonialismo democrático. O Hamas é consequência. Porque o governo de Israel ajudou ao seu nascimento para enfraquecer a OLP, a desistência de dois Estados viáveis levou ao caos desesperado e a separação de Gaza da Cisjordânia desestruturou a liderança palestiniana. A direita israelita precisa do Hamas.



O debate sobre a situação no Médio Oriente atinge, por vezes, um primarismo aflitivo. Deve ser porque a coisa dura há muito tempo e muita gente que é obrigada a voltar a falar e a escrever sobre o assunto já não tem paciência para dar mais do que os mínimos. Ou porque muitos conhecem mal a situação e contentam-se com umas ideias simples. E há um argumento que acaba sempre por aparecer: Israel é uma democracia enquanto Gaza não o é (a Cisjordânia, porque a coisa é um pouco mais difícil, costuma ser ignorada). Em Israel respeitam-se os direitos das mulheres (ou dos homossexuais) enquanto na Palestina não.

Não vou aqui perder tempo a explicar que as coisas até são mais complicadas do que parecem. Que o peso dos ortodoxos em cidades como Jerusalém fazem com que existam bairros onde as pessoas são aconselhadas a andar de mão dada. Que houve propostas para autocarros segregados. Que o conservadorismo é crescente. E que, na Palestina, há grandes diferenças entre Gaza, Cisjordânia e Jerusalém. E que Israel é diverso e há grandes diferenças entre Telavive e Jerusalém. Não sendo falso que Israel é mais liberal – o conservadorismo até cresceu nos dois territórios –, é grande a heterogeneidade em Israel e na Palestina. Uma feminista lésbica israelita que conheci recordava-me, num encontro em Haifa, que religiosos cristãos, judeus e muçulmanos só se conseguiram unir para uma coisa: contestar a primeira marcha do orgulho gay em Jerusalém.

No que toca à democracia, as coisas são ainda mais complicadas. Israel é uma democracia para os judeus, uma meia-democracia para os árabes israelitas, que têm um estatuto de cidadãos de segunda, e democracia nenhuma para os palestinianos. É discutível se podemos falar de uma democracia em regime de apartheid. E uma democracia não bombardeia agências internacionais de notícias, atacando um dos seus núcleos, que é a liberdade de imprensa.


A Palestina chegou a ter umas eleições que o mundo boicotou quando o resultado não foi o desejado, explicando-lhes que também a democracia não era um direito seu. Mas, seja como for, só por piada se pensa que uma democracia pode existir num território murado e isolado do mundo, como Gaza. Ou que pode haver uma democracia num território separado por quase 200 “ilhas” sem qualquer soberania real, como a Cisjordânia. A Palestina não é um Estado. Não há democracia sem Estado.

Mas aceitemos tudo na sua forma mais simples. O que raio diz isso sobre a justeza da ocupação? Algumas das potências coloniais europeias eram democracias e as suas colónias africanas dificilmente o viriam a ser em pouco tempo. Isso retirava aos africanos o direito à sua independência ou dava aos europeus alguma superioridade moral como colonos? A sua democracia era para consumo africano? A democracia israelita é para consumo palestiniano? Mesmo sendo um conservador, é possível que Churchill fosse mais liberal do que Gandhi e que os ingleses, apesar de tudo, respeitassem mais os direitos das mulheres do que os indianos. Isso retirava aos indianos o direito à sua autodeterminação e a lutarem por ela?

Julgando-se muito moderna, a base destes argumentos primários é colonial: o colono é visto como civilizador, portador de uma superioridade moral e política que lhe dá o direito de impor a sua vontade a outro povo. Os israelitas têm direito a oprimir os palestinianos porque a sua opressão é, não se sabe bem como, libertadora. Há potências coloniais democráticas, não há colonialismo democrático. Não há mulheres autodeterminadas em territórios que não o são. E é por isso que as feministas que conheci na Cisjordânia não eram aliadas de Israel. Batiam-se pelo direito de lutar pelos seus direitos numa terra que fosse sua. Usar os direitos humanos para defender o colonialismo é a mais velha forma de paternalismo colonial.

Já se a questão é apenas o Hamas, além do conflito não se resumir nem se centrar nesta organização, ele é consequência, não causa. Consequência, porque o governo de Israel ajudou ativamente ao seu nascimento para enfraquecer a OLP; porque a desistência prática de uma solução que passe por dois Estados viáveis só poderia acabar num caos desesperado; e porque a separação de Gaza da Cisjordânia teve como objetivo a desestruturação da liderança palestiniana, que só poderia servir o Hamas. A direita israelita quis o Hamas porque o Hamas se alimenta da incomunicabilidade e da guerra de que ela precisa.

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