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sábado, 1 de maio de 2021

Felizmente, há luar


Por estatuadesal
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
30/04/2021


1 Domingo foi um dia único, redentor, nas nossas vidas aprisionadas há mais de um ano: zero mortes por covid — apenas a segunda vez que tal aconteceu desde que este pesadelo se abateu sobre a Humanidade inteira. Se os deuses não dormem, não terá sido por acaso que esse dia coincidiu com o 25 de Abril: um sopro de liberdade no Dia da Liberdade. Há já semanas que andávamos a rondar este marco e não é importante que nos dias seguintes tenhamos regressados a números residuais de mortos, porque importante era voltar a poder assinalar o simbolismo de 24 horas inteiras sem um morto às mãos da doença que mudou por completo a vida de todos nós. E eu esperava este dia ansioso, para dele poder dar notícia a amigos meus estrangeiros, com um orgulho de que também já tinha saudades, depois da imensa vergonha de em Janeiro termos sido o pior — o pior entre 196 países do mundo! — no número de casos e mortes diárias, em percentagem de habitantes.



Entre um e outro extremo aconteceram três coisas que justificam a total inversão da situação, ao arrepio do resto da Europa. Primeiro, a mudança de atitude das autoridades, forçadas a reagir perante o pior cenário, em lugar de ficar à espera para ver o que acontecia, conforme a sua estratégia até então. Depois, três meses de confinamento extremo ou quase, que os portugueses cumpriram, disciplinadamente assustados. E, por último, o início da muito adiada vacinação dos velhos — as vítimas mortais e indefesas do vírus. Mas esta última batalha foi a mais difícil de travar e, aliás, ainda está em curso, constantemente barrada por sucessivos grupos socioprofissionais, quase sempre ligados ao Estado e com poder de influência determinante, que conseguem interpor-se à frente dos critérios etários. Assim, vemos ainda, nos dias que passam, os professores universitários e respectivo pessoal de apoio (50 mil pessoas) a reivindicarem a ultrapassagem na fila e a ameaçarem com greve se não forem também contemplados com um estatuto de excepção, apesar de quase todas as Faculdades terem optado por não voltaram às aulas presenciais. E, atrás deles, já veio a Ordem dos Advogados reivindicar também a mesma prioridade na vacinação de que magistrados e funcionários judiciais há muito já beneficiaram (o que, pelo menos, deve querer dizer que se esgotaram as corporações públicas a vacinar e entrámos nas privadas).

O facto é que, depois de vacinar todos os médicos, mesmo os que nada tinham a ver com o combate à doença, todos os militares, polícias, bombeiros, magistrados, professores primários e do secundário, autarcas, deputados e mais um sem-número de gente “indispensável” ao funcionamento do país... assim que começou a haver abertas para vacinar os mais velhos, o número de mortos começou a descer como que por milagre. Mas não foi milagre nenhum, foi ciência certa, e havia exemplos lá fora que o demonstravam. Mas eu nunca esquecerei que ouvi aqui, em Janeiro, um “especialista”, muito acarinhado pela imprensa, explicar que a prioridade era aliviar os hospitais, e como os velhos só ocupavam 9% das camas em UCI (pois morriam como tordos sem lá chegar) não era prioritário começar por eles a vacinação. E também me recordo que quando o processo de vacinação começou, logo em Dezembro, e a DGS sugeriu que o critério prioritário não seria a idade — e logo o de salvar vidas —, António Costa veio dizer que isso estava fora de questão e que a escolha era política e não técnica. Certeiras palavras, mas que o vento levou, ou não fôssemos nós o país das cunhas e das corporações. Contra a vontade da task force, houve sempre e continua a haver “forças exteriores” que conseguem mover-se para fazer prevalecer os seus interesses à frente do interesse geral e de um elementar direito à vida dos mais vulneráveis.

Desde que começaram a vacinar os mais velhos, não apenas o número de mortos caiu a pique como há três semanas que não morre ninguém nos lares, onde centenas de milhares deles estavam encarcerados há mais de um ano, como condenados à morte ou à prisão perpétua. Se agora a hora é de esperança e de alívio, permanece uma questão que nos interpela e pela qual alguém deveria responder: quantos milhares de vidas mais velhas foram sacrificadas à espera de uma vacina que foi antes dada a jovens e saudáveis polícias, bombeiros, magistrados ou militares? E, quando se escrever a história destes tempos obscuros, será forçoso falar do oportunismo e cobardia de que tantos deram mostras e da forma desumana como tratámos os nossos mais velhos. Qual o sentido de discutir os erros ou crimes do nosso passado de há 500 anos quando é o presente que nos devia interpelar? O presente a que todos assistimos, dia a dia, ao longo do último ano, numa televisão perto de nós.

2 Excelentes juristas, legisladores, juízes, deputados, constitucionalistas afadigam-se para fazer o que haviam jurado jamais fazer: legislar a quente em matéria criminal. A propósito do caso Sócrates, abriu um verdadeiro campeonato do mata e esfola, onde ninguém quer ficar atrás e passar por menos implacável face à corrupção, mais indiferente face ao clamor popular ou menos imaginativo face à dificuldade constitucional de classificar como ilícitos todos os sinais de riqueza aparentemente injustificáveis e cometer ao seu detentor o ónus de provar que não lhe vieram de uma actividade criminosa. Na hora em que escrevo, o CDS vai claramente à frente do campeonato, fruto de uma proposta que tem tanto de trapalhona como de perigosamente demagógica — uma espécie de estertor final antes do rigor mortis político.

Certamente que a mais avisada das propostas é a da Associação Sindical dos Juízes, que, para contornar o obstáculo constitucional, propõe criminalizar não a detenção de riqueza mas a sua não declaração. Todavia, e contrariando a euforia geral, continuo a ver aqui alguns problemas que me parecem difíceis de fintar.

Desde logo, se o que se pretende é evitar novos casos como o de Sócrates, o que fazer quando o suspeito se defende dizendo que não declarou o dinheiro porque o dinheiro não é dele mas de um amigo que lho emprestou e a quem ele está a pagar ou irá pagar? Por mais inverosímil que possa parecer a justificação, a verdade é que, se não é crime receber dinheiro emprestado, vai passar a ser crime não declarar que se recebeu dinheiro emprestado? E de quem? — da mãe, do pai, de um irmão também? E quanto? — mil euros já têm de ser declarados? E vai ser necessário manter pública uma conta-corrente actualizada dos empréstimos? — recebi mais X, devolvi Y?

Segunda pergunta: quem, minimamente cioso da sua privacidade, estará disposto a submeter-se a tal devassa da sua vida financeira e patrimonial, sujeito a vê-la exposta e explorada na imprensa tablóide e nas redes sociais, como contrapartida a exercer um cargo público? Eu sei que o povo presume sempre que quem vai para a política, por exemplo, é, por definição, alguém que quer enriquecer ali e que está disposto a ser corrompido e a praticar todas as malfeitorias. Mas vamos imaginar por um momento — por um momento só — que se trata do contrário: que é alguém que vai para a política perder dinheiro e por genuíno desejo de serviço público, alguém incorruptível por carácter e por educação e disposto a sacrificar muito da sua vida pessoal. Essa pessoa, que toma logo posse debaixo de um estatuto que a torna suspeita à partida e que a obriga a desnudar toda a sua vida financeira ao olhar dos outros, estará disposta a tal? Eu conheci pessoas que foram para a política perder dinheiro e que só se puderam manter lá sustentadas pelos pais, pelos maridos ou pelas mulheres: pergunto-me se estariam dispostas a preencher uma declaração dizendo tal?

E a minha terceira dúvida é de natureza... constitucional — o que é uma ousadia face a uma panóplia de tantos e tão ilustres juristas ansiosos por legislar este novo crime. Pois o que pergunto é se será constitucional um crime que só se aplica a determinada categoria de pessoas: políticos eleitos, altos dirigentes do Estado e magistrados. Um crime ad hominem que só existe para esses — uns 5000 portugueses — e não existe para todos os outros. Onde é que fica, então, o princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei?

É que uma coisa é haver estatutos socioprofissionais que vedam o exercício de certas actividades a determinadas profissões — é uma proibição, não é um crime. Uma coisa é haver crimes que, pela sua natureza, só podem ser cometidos no exercício de determinadas profissões — militares, médicos, magistrados. Coisa diferente, parece-me, é um crime genérico, que não tem que ver especificamente com o exercício de determinada actividade — o enriquecimento ilícito ou não justificado ou como lhe queiram chamar, até na variante da não declaração desse enriquecimento — mas que, podendo ocorrer com qualquer um, a lei só classificará como crime se cometido por determinada categoria de cidadãos. Ou seja: eu, que não sou nem político, nem magistrado, nem alto dirigente do Estado, se dispuser de rendimentos ou património além do justificável e não declarado espontaneamente, só tenho de responder perante o Fisco e em termos de impostos. Mas um deputado na mesma situação que eu responderá perante o Fisco e o Tribunal Criminal. E isso faz de nós iguais perante a lei?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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