Por
Francisco Louçã,
in Expresso Diário,
11/05/2021
Diz o Papa Francisco que há várias “variantes do vírus”: a primeira será o “nacionalismo fechado, que impede, por exemplo, uma internacionalização das vacinas”, vem depois a “outra variante, quando colocamos as leis do mercado ou da propriedade intelectual acima das leis do amor, da saúde e da humanidade”, e ainda uma terceira, “quando criamos e promovemos uma economia doentia, que permite que uns poucos muito ricos possuam mais do que todo o resto da humanidade, e que os modelos de produção e consumo destruam o planeta, nossa casa comum”.
Ao ouvir estas palavras, percebe-se a razão para os frémitos de indignação que sacodem as administrações de algumas das principais farmacêuticas e tantos governantes europeus, sentiram-se ameaçados na carteira. Por isso, a recusa à proposta da Administração Biden para o levantamento das patentes tardou poucos dias e foi categórica, como se viu na Cimeira do Porto, e o pedido do Papa foi ignorado: num ápice, Merkel, mesmo à distância, alinhou as declarações de Von der Leyen e de António Costa, calou Macron e deixou Sanchez a falar sozinho.
A ministra portuguesa já tinha antecipado o argumento e, em fevereiro, afirmava que o seu governo recusa a quebra de patentes, mesmo considerando que esse conhecimento é “um bem público universal”, mas que deve continuar a ser gerido pelos gigantes privados. Em março, voltou a garantir que a medida proposta por duas das suas antecessoras no ministério, junto com o ex-bastonário da Ordem dos Farmacêuticos e ex-diretor do Infarmed, “não resolve a capacidade industrial”. Esta convicção foi abalada pela surpresa da nova posição do governo norte-americano, que forçou as autoridades portuguesas a declarar que a proposta já merecia atenção, até serem obedientemente reconduzidas ao redil de Merkel. Não foi caso único. Macron, que a 6 de maio dizia entusiasticamente que era “completamente a favor da abertura da propriedade intelectual”, passou a repetir que isso nem importa. E a União Europeia fechou a porta a um acordo, mantendo o bloqueio na Organização Mundial do Comércio (OMC), que impede que a África do Sul e a Índia possam ampliar a sua produção, mas também recusando o pedido de empresas de outros países, do Canadá ao Bangladesh.
Esta fronda em nome da Big Pharma garante que é irresponsável reduzir os lucros das farmacêuticas, porque isso diminui o seu incentivo para investigação científica sobre novas estirpes. O termo “irresponsabilidade” tem aqui uma conotação curiosa. Talvez alguém se lembre que uma das maiores empresas mundiais, a Gilead, tentou convencer o mundo a usar o Remdesivir, um medicamento para a ébola, como solução para a pandemia, ou que uma turba de governantes lançou a cloroquina, sem que os seus produtores avisassem que era uma fraude. Seriam atos de dedicada responsabilidade, como se entende. Por outro lado, quem pede o levantamento das patentes não são só dirigentes políticos (Biden) ou religiosos (o Papa Francisco). Antes de todos, foi a Organização Mundial de Saúde e António Guterres, secretário-geral da ONU, que pediram a partilha voluntária do conhecimento para que a vacinação mundial não se arraste até 2024. Se querem usar o termo “irresponsável”, apontem-no para a OMS e para a ONU e deixem o Papa em paz.
Acresce que a ameaça de parar a investigação se os lucros não se multiplicarem não é para levar a sério, dado que a investigação de base nem depende da Big Pharma. Todas estas empresas dependem da ciência produzida em universidades e laboratórios nacionais. A vacina da Moderna resulta de uma parceria com o National Institute of Health dos EUA, aproveitando a sua investigação sobre a proteína spike, que permite o ataque ao coronavírus. Foi o NIH que realizou o primeiro ensaio clínico desta vacina. A BioNTech, como a Moderna, usa as descobertas da cientista húngara Katalin Karikó, que trabalhava na Universidade da Pensilvânia (e é hoje vice-presidente da empresa). A vacina da AstraZeneca depende do trabalho de Sarah Gilbert e do Jenner Institute da Universidade de Oxford, que aplicou os resultados do seu combate a outro coronavírus, o MERS.
Além disso, o levantamento do direito de patentes, provisório que seja, já foi testado no passado. Quando Nelson Mandela enfrentou a Administração norte-americana de Clinton para conseguir produzir genéricos dos antirretrovirais para o HIV, chocou com a barreira dos interesses económicos e só quando Al Gore, o vice-presidente, cedeu, é que foi possível disponibilizar o tratamento na África do Sul. O que se verificou, e não podia ser de outro modo, foi que, quanto mais difundido está o conhecimento essencial de um medicamento, maior é a capacidade de inovação incremental.
Ao contrário do que hoje afirmam as grandes farmacêuticas, a partilha do conhecimento entre mais instituições de investigação de ponta multiplica o êxito científico. Assim, no contexto desse conflito, foram definidos novos procedimentos legais para suspender os direitos de propriedade intelectual no caso de medicamentos essenciais, através de licenças compulsórias. A OMC aceitou essa regra no acordo sobre Trips (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights) e está na letra da lei. Foi nesse sentido que, em 20 de abril do ano passado, uma declaração conjunta de Azevedo, então diretor da OMC, e de Ghebreyesum, diretor da OMS, pediu a “partilha dos direitos de propriedade intelectual”. Bem sabiam que a proposta estava bloqueada pelos EUA e pela UE. Agora só a UE a impede.
Antes de sugerir esta nova posição para um acordo mundial sobre levantamento das patentes, Biden já tinha forçado um acordo entre a Johnson & Johnson e a maior farmacêutica mundial, a Merck, para que esta passasse a produzir em larga escala a vacina da primeira. A Moderna, entretanto, anunciou que não processará judicialmente quem reproduzir a sua vacina, embora alguns dos procedimentos associados ao uso da produção de vacinas na base do RNA mensageiro (mRNA) estejam patenteados por outras instituições. Deste modo, a ameaça de suspensão das patentes pode pelo menos ter um efeito imediato, obrigando as empresas a licenciarem a produção e estendendo o sistema produtivo para usar a capacidade tecnológica disponível, e é muita. Se, como tudo leva a crer, a produção das vacinas se vier a basear predominantemente na tecnologia do mRNA, que usa recursos mais facilmente acessíveis, será possível cobrir a população mundial.
Que o governo alemão instrua a Europa a recusar o acesso universal ao conhecimento sobre as vacinas tem uma mesquinha justificação: Merkel quer criar um campeão industrial nacional nesta área, a BioNtech, que está associada à Pfizer. Que a Pfizer, que anunciou para 2021 sete mil milhões de dólares em lucros com a vacina, ou outras farmacêuticas não aplaudam o aumento da produção mundial, também se compreende. Mas que os líderes europeus aceitem estas chantagens diz muito sobre a mentira que é a prometida cooperação na saúde e a solidariedade contra a doença. Tem razão o Papa Francisco, estes vírus já contaminaram muito fundo a nossa vida social, é “uma economia doentia” em que a lei do mercado está acima do respeito pela humanidade.
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