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terça-feira, 12 de abril de 2022

O triunfo da morte


Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
09/04/2022

Começo por dar os meus rasgados elogios ao Miguel Sousa Tavares. Contra o unanimismo acéfalo e a critica dos inquisidores ainda há quem saiba pensar e tenha coragem de enfrentar a turba. Sim, porque a turba se exalta perante os "trânsfugas" e já parte para a ameaça, eu que o diga. Bem hajas, MST. - Estátua de Sal, 09/04/2022)



Alguma coisa de estranho se deve estar a passar comigo: eu olho para as notícias e as imagens de Bucha e a minha primeira e única reacção é pensar: “É preciso evitar a todo o custo que isto se volte a repetir. É preciso parar imediatamente com esta guerra sem sentido, com a destruição de cidades e casas, com a morte de civis e crianças, em nome de nada que o justifique. Como é possível, estarmos a assistir a isto, dia após dia, sem que os dirigentes mundiais façam o possível e o impossível para acabar com este pesadelo?”

Mas parece que só eu e uma minoria de ‘pacifistas’ — que agora é um termo pejorativo — pensamos assim. Logo após a difusão das imagens mostradas pelos ucranianos à imprensa ocidental, os principais dirigentes dos países da NATO reagiram imediatamente com a promessa de enviar mais armas para a Ucrânia e decretar mais sanções à Rússia, enquanto que o secretário-geral da NATO, Stoltenberg, dizia anteontem duas coisas reveladoras: uma, que há vários anos que a NATO vem dotando a Ucrânia de armamento sofisticado e treinando as suas Forças Armadas, o que quer dizer que já a tratava como membro de facto e já esperava a guerra; e outra, que as opiniões públicas deveriam estar preparadas para uma guerra longa de meses ou até mesmo de anos — música para os ouvidos dos fabricantes de armas, já sobrecarregados com encomendas para que cada país membro cumpra os 2% do PIB em despesas militares.

Aos ‘pacifistas’ — isto é, aos que estupidamente, antes e depois da guerra começar, insistem em defender uma solução pacífica, independentemente de saber de quem é a culpa ou quem é o invasor — contrapõem-se os ‘moralistas’, os eticamente puros, entre nós representados por aqueles que, confortavelmente entrincheirados atrás do seu computador, adoptam a atitude bem portuguesa do “agarrem-me senão eu mato o Putin”. Embora convenha distinguir duas categorias entre estes últimos: há os que, apesar de tudo, reconhecem que até com o Diabo é preciso negociar, mas só depois de o vencer — o que remete para a solução Stoltenberg; e há os eticamente intransigentes, os puros entre os puros, para quem, à partida, está excluída qualquer negociação com um ‘assassino’ — é a solução Biden, que, como se imagina, tem historicamente registado inúmeros acordos de paz e poupado incontáveis vidas. Entre estas duas variantes ‘moralistas’ flutua o grosso de uma opinião pública que, contraditoriamente, é muito fácil a mobilizar-se contra a barbárie que vê nos écrans (quem o não é?), mas predisposta a aceitar a continuação dessa mesma barbárie em nome do castigo ético ao invasor — cujas consequências, por ora, apenas os ucranianos sentem na pele.


Mas eu não sou um pacifista por profissão de fé: se o fosse, teria de ser contra a existência de Forças Armadas e não sou. Aceito a tragédia das guerras quando elas são justas e são justas quando são inevitáveis. Quando, por exemplo, como sucede agora na Ucrânia ou como sucedeu na 1ª Guerra do Golfo, um país se defende da invasão injustificada de outro. Mas não engoli guerras feitas por encomenda de fabricantes de armas ou por orgulho imperial, como o foram a 2ª Guerra do Golfo, desencadeada contra a ONU, sob um falso pretexto e com falsificação de provas, ou a guerra da NATO contra a Sérvia, apenas para caçar Slobodan Milosevic, a mais cobarde guerra até hoje, em que uma cidade foi bombardeada sistematicamente a partir do céu sem que os atacantes jamais vissem o inimigo ou arriscassem uma única baixa. Porém, seja qual for o lugar em que nos situemos e seja uma guerra justa ou injusta, chega um ponto (de preferência antes de ela começar) em que o que está em causa é deter a loucura humana, perceber que, qualquer que venha a ser o seu desfecho, ele será sempre devastador. E este é o caso da guerra na Ucrânia.

Esta guerra não apenas está a destruir fisicamente a Ucrânia e a demolir paulatinamente todos os alicerces em que se fundou o sistema que garantiu a paz na Europa durante 70 anos. Perante o entusiasmo irreprimível de alguns, vamos também a caminho do que já chamam a “nova Guerra Fria” ou o “regresso à História” (como se só houvesse História em ambiente de guerra), e a que o Papa Francisco chamou “a loucura do rearmamento”. O caso alemão é eloquente: da noite para o dia, sem sequer debate interno e perante o aplauso de todos os seus parceiros europeus, a Alemanha decidiu quebrar o tabu do desarmamento e passar também a gastar 2% do PIB em Defesa. A maior potência económica europeia, até aqui desarmada, vai tornar-se também uma potência militar (logo depois, inevitavelmente nuclear), no coração da Europa. É verdade que hoje a Alemanha é um país democrático, governado por democratas desde o pós-guerra, mas é impossível não sentir um arrepio pensando no que está para trás e, sobretudo, nestes tempos de nacionalismos crescentes, pensando na hipótese de um dia a AfD chegar ao poder numa Alemanha armada e nuclearizada.

Pois continuem lá os meninos à roda da fogueira, a entreterem-se com a sua querida guerra e os seus altos valores éticos e bélicos, que facilmente haverá quem lhes agradeça. Não os mortos da Ucrânia, certamente; mas os fabricantes de morte e os negociantes dos despojos

Mas há ainda a vertente económica da guerra, que os ‘moralistas’ gostam de descartar como considerações ‘egoístas’. Veremos a prazo como esse ‘egoísmo’ representa afinal a defesa de um número infinitamente maior de vidas humanas (sim, de vidas) do que aquelas que estão em causa na Ucrânia — não tanto na Europa rica, mas nos lugares onde aquilo que de mal fazem os ricos tem sempre consequências trágicas: em África, na Ásia, nos países pobres da América Latina. Voltemos ao caso alemão: vão gastar 2% do PIB em despesas militares; mais 1,5% se, como tudo o indica, tiverem de prescindir do gás e do petróleo russos, de acordo com um estudo feito por um grupo de economistas ‘optimistas’ (tenho algumas prateleiras de estantes lá em casa com estudos de economistas destes, numa secção a que chamo “cemitério das ideias brilhantes”); e devem ter de vir a gastar mais 0,5% em ajuda à reconstrução da Ucrânia e a financiar a sua adesão à UE. Tudo somado, estamos a falar de 4% do PIB alemão, a ‘locomotiva’ económica da Europa. Todos os países, como Portugal, cujas economias são, por sua vez, altamente dependentes das compras alemãs, vão sofrer a sério. Já vamos com a inflação acima dos 5%, mas ainda não vimos nada. Outros candidatos ao meu cemitério particular acham que nós, portugueses, vamos resistir, graças à importação de petróleo americano a ‘preços de amigo’, graças ao Terminal de Sines e ao sempiterno turismo. Desiludam-se, vamos ganir. Vamos todos suplicar por paz.

Mas há mais e pior, excepto para aqueles que fazem parte da categoria dos “sonâmbulos caminhando para o abismo”, como os classificou António Guterres. Uma das imediatas consequências da guerra na Ucrânia é o abandono, puro e simples, das metas do Acordo de Paris e dos documentos com força de lei internacional assinados ainda há poucos meses na Cimeira do Clima de Glasglow, no que se refere à limitação da emissão de gases com efeito de estufa. Para simplificar, recordo que, de acordo com o que foi estabelecido, até 2025 todas os grandes emissores de gases terão de ter atingido o topo das suas emissões, começando a cortá-las a partir daí drasticamente, de modo a conseguir que o planeta não aqueça mais do que 2 graus Celsius até final do século — o limite de pré-catástrofe. E, para tal, o que se convencionou foi que se começaria por encerrar as centrais a carvão, a mais poluente fonte de energia fóssil. Ora, numa atitude de grande coragem, e em reacção ao massacre de Bucha, Bruxelas acaba de cortar a importação de carvão russo para a Europa. Sabem o que isso significa? Luz verde para a reactivação das centrais a carvão que já tinham sido encerradas na Alemanha e na Inglaterra, para a construção de novas centrais em vários países e para a proliferação das centrais polacas. Isto, depois de a energia nuclear já ter sido considerada ‘energia verde’ para efeitos de beneficiar de verbas dos PRR ou de não se ter falado sequer em cortar um dólar que fosse aos quase 6 biliões de dólares de subsídios a favor das indústrias do carvão, petróleo e gás. Assim vai o mundo, como se dizia dantes.

Pois continuem lá os meninos à roda da fogueira, a entreterem-se com a sua querida guerra e os seus altos valores éticos e bélicos, a tentar intimidar e reduzir ao silêncio quem não pensa como eles, que facilmente haverá quem lhes agradeça. Não os mortos da Ucrânia, certamente; mas os fabricantes de morte e os negociantes dos despojos.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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