Adsense

terça-feira, 26 de abril de 2022

Uma conversa entre José Mourinho e José Tolentino Mendonça


“As relações humanas são a vitória mais importante”




CONVERSA José Mourinho, treinador de futebol da AS Roma, e o cardeal José Tolentino Mendonça encontraram-se a 29 de março na Biblioteca do Vaticano para um diálogo que aqui publicamos. 

Artigo publicado originalmente no jornal “L’Osservatore Romano”

No passado dia 29 de março, no sugestivo enquadramento do vestíbulo da Biblioteca Apostólica Vaticana, teve lugar um diálogo entre o car­deal José Tolentino Mendonça, arquivista e bibliotecário do Vaticano, e o treinador da equipa de futebol da AS Roma, José Mourinho. Promovido pelo jornal “L’Osservatore Romano”, este inédito encontro entre as duas personalidades portuguesas estendeu-se por vários temas, do valor da educação e do desporto à importância decisiva das relações humanas em todos os contextos da vida. E não deixou de se confrontar com a dramática situação que hoje se vive por causa da guerra na Ucrânia. A favorecer a conversa, que decorreu na sua língua materna, esteve a ligação de ambos com o filósofo português Manuel Sérgio, hoje nonagenário. O texto que se segue é a transcrição quase integral do diálogo, feita por Claudio Bisceglia, que esteve presente no encontro.

Gostaria de iniciar esta conversa consigo, José Mourinho, e para mim é uma grande felicidade este encontro aqui na Biblioteca, recordando, curiosamente, um mestre comum. Portugal é um país curioso, porque um dos nossos pensadores mais originais é um pensador do campo do desporto, da motricidade humana, e escreve regularmente não numa revista filosófica mas num jornal desportivo, “A Bola”. Quero recordar consigo o professor Manuel Sérgio, que sei ter sido uma pessoa muito importante também no seu percurso. É dele a nova ideia, o esforço de criar uma nova epistemologia para a motricidade humana. Ele diz que é necessário abandonar o cartesianismo que divide o homem entre razão e coração, interioridade e alma, e é preciso encarar a pessoa humana de uma maneira mais complexa, mais unitária. E um dos conceitos que elabora, entre outros, é o conceito de periodização antropológica e técnica. O desporto, o futebol, não é apenas técnica. Ele diz: não são remates, são pessoas que rematam; não são saltos, são pessoas que saltam; não são golos, são pessoas que fazem golos...

Não são jogadores...

Exatamente, são pessoas que jogam... Gostaria de falar um pouco disso e da importância que Manuel Sérgio teve no seu percurso.

Começou quase como uma luta, porque eu chego à universidade, à Faculdade de Educação Física e Desporto, já perfeitamente consciente daquilo que quero para mim: treino e alto rendimento. Com toda a ânsia de aprender aquilo que me interessava, a primeira disciplina que tive no primeiro dia de universidade foi “Filosofia das Atividades Corporais” — era esse o nome da cadeira —, com o professor Manuel Sérgio. E eu saio da primeira lição perguntando a mim mesmo: para que serve isto? Ele compreendeu em pouco tempo que eu precisava de ser ajudado, de ser orien­tado. E efetivamente disse-me de uma maneira extremamente concreta e direta: quem só percebe de futebol não percebe nada de futebol. É uma relação que nunca acabou, é uma relação que ainda continua.

Uma amizade...

Não é apenas uma amizade, é um processo permanente de aprendizagem, e um dos maiores desafios que nós, como treinadores, líderes de homens, chamemos-lhe o que quisermos, temos todos os dias é precisamente o de como ser líder, como obter o máximo... Porque, OK, o objetivo é o alto rendimento desportivo, mas como extrair o máximo de cada atleta, que não são atletas mas homens para Manuel Sérgio? Ele influenciou-me muito no sentido de que cada pessoa é diferente da outra, neste caso cada jogador de futebol é diferente do outro, e a expressão de cada um deles em campo, em termos de prestação, é fundamentalmente a consequência de uma empatia que se cria entre dois homens: no caso, entre um homem muito mais maduro (o treinador) e o jogador. Este tipo de empatia é para mim fundamental. Guardo sempre o exemplo de quando saí da universidade. Antes de entrar no futebol de alto rendimento fui professor. Obviamente, já tinha bem claro o meu objetivo final, mas foi um processo gradual. Foi um ano em que andei a trabalhar com crianças que tinham problemas motores, distúr­bios psicoemocionais, mas eu não estava preparado, não estava preparado do ponto de vista técnico. Na universidade tínhamos diferentes áreas de especialização, e a minha área era a do alto rendimento, portanto não estava preparado. No entanto, consegui trabalhar bem, baseando-me em algo extremamente simples: amor, empatia, relações humanas... E obtive resultados inimagináveis para mim, que me considerava muito impreparado do ponto de vista técnico para trabalhar com aquelas crianças. Obtive resultados fantásticos, basean­do-me exclusivamente nas relações humanas. Depois transferi essa bagagem de experiência para o meu trabalho nos últimos 20 anos, no desporto de alto nível. Sempre tive isso como princípio básico. Não digo que sempre o tenha conseguido, por vezes não fui capaz.

Sou uma pessoa que visita Fátima durante a noite. Mesmo em Roma, visito muitas vezes São Pedro à noite. A máscara ajuda, a escuridão da noite também”

Isso que diz a propósito do falhanço é muito interessante. Entrelinhas, você diz: “Nem sempre consegui.” E, de facto, o conhecimento humano, o conhecimento que nós temos uns dos outros, é um conhecimento que amadurece também na medida em que o confrontamos, e o confrontamos sem partir da certeza absoluta, o colocamos em jogo, e muitas vezes o “falhanço”, a realização falhada, é uma etapa fundamental para se poder crescer no conhecimento do outro. Num certo sentido, os nossos falhanços, as nossas desilusões, a consciência da imperfeição ajudam a criar essa empatia com os outros, porque nos colocamos no lugar deles e vemos as coisas com uma outra profundidade, para sermos um gestor de conhecimento.

As boas experiências e as menos boas não têm preço. Às vezes penso que a única coisa que não me agrada muito com o avançar dos anos é que tenho uma dorzinha aqui, uma dorzinha ali, acordo um pouco mais cansado, é a única coisa que verdadeiramente não me agrada nos meus 59 anos. Mas se tiver de me comparar como pessoa, como treinador, que são duas coisas diferentes, bom, se tiver de me comparar com há 20 anos... tenho muita pena de há 20 anos não ter tido as experiências, boas e menos boas, e os conhecimentos que tenho hoje.

Para um treinador, é muito importante esse conhecimento do humano...

Absolutamente. Ao nível técnico propriamente dito, entrámos numa situação quase de déjà vu, porque aquilo que me acontece hoje já me aconteceu há alguns anos. As dificuldades técnicas de hoje já as experimentei há alguns anos. Uma acumulação de experiências boas e menos boas... Mas, a nível humano, cada dia é um dia novo e cada pessoa é uma pessoa nova... Eu recuso sempre fazer comparações entre jogadores. Ao longo dos últimos 20 anos tive muitos, e cada um deles é único. Ao nível técnico poderíamos encontrar pontos de comparação, mas confrontações entre pessoas é uma coisa que odeio fazer. Cada pessoa é diferente da outra, e até o meu modo de me relacionar com ela é diferente, porque uma coisa é ser-se um treinador de 35 anos de jogadores de 30 e outra é ser-se um treinador de 59 anos de jogadores de 25. Sinto-me numa posição bastante privilegiada e sinto-me muito feliz nesta perspetiva. Quando se é jovem, e se está no início da carreira, pensa-se que se sabe tudo. E quando hoje vejo a geração mais jovem com esse tipo de pensamento não a critico... Já passei por ali, a maturidade é uma coisa fundamental. Por vezes, o desporto de alto rendimento conhece momentos de verdadeira crueldade.

Por exemplo?

Nós somos pagos para vencer. Os atletas, não os homens, são pagos para vencer. Estamos a falar de alto rendimento, e às vezes há decisões na gestão de uma equipa que têm algo de cruel: não há tempo para deixar amadurecer, para deixar crescer...

A ditadura dos tempos curtos...

Os erros pagam-se. Se eu cometo um erro, pago-o com a exoneração. Se um jogador comete um erro, paga-o não jogando para dar lugar a outro. Há qualquer coisa de cruel, mas não podemos deixar que a natureza do nosso trabalho se sobreponha àquilo que somos como pessoas. Isso para mim é muito claro. Procuro ajudar os outros e esforço-me por ser melhor. Uma coisa que me é difícil aceitar é o desperdício de talento, é uma coisa que ainda hoje, ao fim de 30 anos de futebol, me é difícil aceitar. Às vezes, porém, o desperdício de talento está ligado ao percurso de vida que alguns jogadores tiveram, e nesse sentido devemos procurar ser pedagógicos até ao fim. O desporto de alto rendimento, em particular o futebol, que é o desporto mais industrializado a todos os níveis, tem qualquer coisa de cruel.

Mas isso é importante: não parar de ajudar cada um a nascer, a descobrir-se, a amadurecer, a desenvolver o seu talento... Uma das parábolas de Jesus é efetivamente sobre o tema dos talentos: esta necessidade da parte de cada um de nós em não soterrar o seu talento, em amadurecer a sua própria vocação. Cada um de nós nasceu com uma bagagem de atitudes e de competências e pode transformar a sua vida.

Percebo a minha evolução como pessoa pensando no facto de que durante muitos anos quis vencer por mim próprio, ao passo que agora estou num momento em que continuo a querer vencer com a mesma intensidade de antes, ou até maior, mas já não por mim e sim pelos jogadores que nunca venceram, quero ajudá-los... Penso muito mais no adepto comum que sorri porque a sua equipa venceu, na semana que vai ter e que será melhor porque a sua equipa venceu. Continuo a ser um “animal de competição”, por assim dizer, continuo a querer vencer como dantes, ou até mais, mas antigamente concentrava-me em mim próprio.

Agora, em vez disso, prevalece a importância de oferecer alegria aos outros. É um pouco o que também eu estou a viver desde que me foi confia­da uma missão muito bela pelo Santo Padre: ajudar a gerir a Biblio­teca, que é um espelho da história da Humanidade, da memória, da cultura... Mas eu acho que o seu trabalho, José Mourinho, o jogo, é algo de humanamente riquíssimo. Roger Caillois, no seu ensaio sobre o jogo e o humano, diz que o jogo é uma espécie de espelho de tudo o que é humano. E, com efeito, se observarmos a dimensão lúdica que o desporto exprime, tocamos em algo de fundamental no humano. As pessoas, por exemplo, os adeptos comuns, quando vão ao estádio, não vão lá apenas para esquecerem, para festejarem, não vão lá somente em busca de uma pequena alegria... mas de algum modo está presente a ambição de tocar em alguma coisa, de ir mais longe, de compreender o mistério da vida, o seu significado. Não sei se isto faz sentido para si...

Sim, faz. Eu sinto isso. No percurso para uma partida, na saída do hotel, na descida do autocarro, na chegada ao estádio, no passeio até ao balneá­rio, na caminhada desde o balneário até ao campo antes do início da competição... há muita espiritualidade em tudo isto, nunca é uma rotina, porque, ainda que se jogue dezenas de vezes no mesmo estádio e se faça sempre o mesmo percurso, é um momento que tem qualquer coisa que não se vê, mas que se sente muito. Julgo que é de uma beleza enorme e julgo que no dia em que deixar de treinar — que espero que não seja em breve — será talvez a coisa de que sentirei mais falta: essa dimensão que me transporta para direções que nunca partilhei com ninguém e que talvez esteja a partilhar hoje pela primeira vez. Caminhar para a partida e falar com Ele...

Falar com Deus?...

Falo com Ele e acabo sempre por dizer: a minha família é mais importante do que isto. Dá-me uma ajuda se tiveres tempo... Mas se a escolha tivesse de ser entre esta partida e o bem-estar das pessoas que amo, não pensaria duas vezes.

No fim de contas, é uma grande partida entre este jogo e o grande jogo da vida, não é verdade?

Exatamente. Há dois meses atingi precisamente aqui em Roma a marca dos mil jogos como treinador. Portanto, agora já estou bem para lá desse número. Ora, não há diferença entre a última partida e a primeira. Este meu lado, que é propriamente meu, faz-me sentir qualquer coisa que nunca é igual. Vou aprendendo com isso, e em consequência com o mundo, mas é algo de muito íntimo. Sem dúvida que o futebol não é, como as pessoas pensam, a minha vida, é apenas uma parte importante da minha vida, mas há uma outra parte que é muito mais importante do que o futebol. Com a máxima humildade, mas ao mesmo tempo querendo manter uma relação íntima com Ele, agrada-me ter uma relação quase de amizade, em que quase nos tratamos por Tu.

Penso que a guerra é um falhanço humano ainda antes de ser político. É a evolução do pensamento humano na direção errada”

Uma das coisas que Manuel Sérgio diz — e creio que esta também seja uma sua herança — é que não acredita na palavra ‘superação’. Às vezes, ouvíamos os desportistas dizerem: é uma escola de superação, atreve-te a superar os teus limites, os teus medos, a ir mais além... Tudo isso é verdade, mas ele diz que a palavra ‘superação’ é inadequada. A palavra justa é ‘transcendência’, que é uma palavra muito mais ampla e que tem a ver sem dúvida com a superação, é a saída de nós próprios, num movimento intencional de trabalho, de projeção, de confiança, mas ao mesmo tempo é uma abertura ao mistério, à plenitude, ao divino, àquilo que pode dar sentido ao homem... E não é por acaso que nestes últimos anos o professor Manuel Sérgio termina todas as entrevistas dizendo que aquilo de que mais se precisa é de Deus. Isso é algo que me toca na relação com ele e sempre que tenho ocasião de ouvi-lo. Acha que esta relação entre superação e transcendência também seja relevante para a sua visão?

É um tema de que, num modo mais abstrato, em certas ocasiões, falo com os futebolistas. Não entro obviamente no campo da religião, até porque tenho diante de mim 25 homens com tradições diversas, diferentes credos, mas eu chamo-lhe o sinal mais, aquele que pode fazer a diferença, uma convicção comum, à qual cada um dirá de si, terá livre-arbítrio. Acredita-se naquilo que se quer, acredita-se mais ou menos no divino, mas o mais vem sempre um pouco daquela área que não se toca, mas que se sente, é abstrato. Julgo, por exemplo, que para a preparação de uma competição de altíssimo nível, que implica pressão, responsabilidade, onde é preciso superar ou transcender, seja preciso mais alguma coisa do que aquilo que tínhamos treinado, para o qual nos havíamos preparado, e esse algo mais julgo que esteja muito ligado à própria espiritualidade, àquilo que fundamentalmente alimenta o tal sinal mais. Esse algo a mais poderá ser até pensarmos todos juntos nas pessoas que desejam fortemente que vençamos. E quem são essas pessoas? Aquelas que amamos, aquelas que nos amam, aquelas que amam o clube e os seus símbolos... Penso que nos momentos-chave devemos procurar no mais profundo de nós e não dependermos exclusivamente da preparação. Não basta o aspeto tático, técnico, físico, mental ou outro... E quando o professor Manuel Sérgio faz essa distinção entre superação e transcendência, mas sem estar dentro daquela que é a operatividade que leva a uma partida, é a isso que ele se refere. É uma pessoa sábia, com um conhecimento vastíssimo e que ensinou muito, deixando uma marca.

Poderemos falar, se permitir, desse sinal mais na sua vida, dessa sua história: soube que quando trabalhava em Leiria tinha uma relação especial com Fátima, era um ponto de referência, e que em Roma passa por São Pedro a caminho do trabalho. Há aqui este espaço, porque é um espaço simbólico, não é apenas um espaço geográfico, é um espaço investido da sensação de uma presença. Sei que, para si, passar por São Pedro é sempre algo de especial. Quer falar um pouco da sua relação com Deus, do seu caminho espiritual, de como se traduz em concreto?

A minha relação com Deus traduz-se no amor que nutro pelos meus entes queridos. Creio que Ele não se zanga por eu orientar o amor que Lhe tenho nesta direção. A minha família, os meus amigos, aqueles que eu amo, aqueles que me amam, aqueles que ainda estão connosco e aqueles que já partiram... É assim que me arrisco a traduzir na prática o meu amor por Deus. Ser solidário até com pessoas que não conheço, no sentido de me preocupar, de procurar ajudar de uma maneira ou de outra...

A Bíblia diz isto na Epístola de João: “Não podemos dizer amar o Deus invisível se não amarmos aquilo que vemos.”

É exatamente isso que eu penso. Se me pergunta se Fátima é especial para mim, a resposta é sim. A Fátima silenciosa, deserta, em que se estabelece uma relação íntima... Sendo uma pessoa mais ou menos conhecida, as outras pessoas aproximam-se, obviamente animadas das melhores intenções, mas infelizmente acabam por perturbar um momento que eu pretendia que fosse só para mim. Por esse motivo sou uma pessoa que visita Fátima durante a noite. Mesmo em Roma, visito muitas vezes São Pedro à noite. A máscara ajuda, a escuridão da noite também.

E o que sente nesses momentos em que está em silêncio?

Estou em silêncio, mas converso muito. Pode ser um pouco paradigmático, e talvez as pessoas que me acompanharam na minha carreira me olhem e não vejam em mim essa pessoa: o futebol é a última coisa de que falo, é a última coisa em que penso, a última coisa pela qual peço alguma coisa... E é exatamente isso que eu estava a procurar dizer. Ser um bom pai, ou procurar sê-lo, porque é difícil de avaliar, só os outros poderão dizê-lo, mas procurar ser um bom pai, um bom marido, um bom filho, um bom amigo... essa tentativa é a maior motivação que uma pessoa pode ter no quotidiano.


CANCIONEIRO No final da conversa, o cardeal Tolentino mostrou a Mourinho um cancioneiro dos séculos XV-XVI que recolhe as “cantigas” medievais (Vat.lat.4803), além de 1200 poemas em língua galaico-portuguesa

Preocupa-o este movimento que se vive no mundo, esta guerra na Europa, com sofrimento e destrui­ção devastadora após dois anos de pandemia? Sentimos que estamos a entrar numa espécie de túnel de desespero...

O Santo Padre Francisco diz que a guerra é um falhanço da Humanidade, dos políticos. Penso exatamente assim, ou melhor, penso que seja um falhanço humano ainda antes de ser político. É um falhanço brutal, é a perda dos princípios ou a falha do seu desenvolvimento, é a evolução do pensamento humano na direção errada entre o que é fundamental e o que o é menos. É algo difícil de explicar. É um falhanço da Humanidade a todos os níveis — é um falhanço nosso.

Como disse o Papa Francisco, estamos todos no mesmo barco, e, portanto, a saída desta situação deve ser uma Humanidade mais solidária, a fim de criar formas de fraternidade, de inclusão, de ajuda recíproca, que permitam construir verdadeiramente um futuro novo, caso contrário é a lógica do mundo velho que triunfa, a lógica da guerra que infelizmente acompanha a história da Humanidade desde há tantos séculos. O Papa Francisco é uma figura inspiradora para si?

É. É uma fonte de inspiração para mim, porque gosto de o ouvir e, sem ter tido a honra de o conhecer, ouço-o e não me canso de o ouvir. Ouço-o e revejo-me na sua simplicidade. Acompanho o “Angelus” dominical pela televisão e penso que se o tivesse na “minha” igreja em Setúbal ouvi-lo-ia do mesmo modo. Este homem “não é o Papa”, é um padre, um pároco de uma nossa pequena paróquia do nosso pequeno Portugal. Vejo aquela simplicidade e acho que ele é capaz de criar empatia com pessoas de fés diferentes da nossa.

Uma última consideração sobre a definição de jogo. O jogo é uma experiência humana, organizada em torno de determinadas regras. Essas regras são técnicas, lúdicas, têm a ver com as modalidades desportivas, mas também são éticas. O desporto é também por isso um paradigma das relações humanas, na verdade a ética é fundamental para o grande jogo que é a vida do mundo, antes de mais como base para o reconhecimento do outro.

Acho que é de uma beleza enorme e que oferece um contributo enorme para as nossas gerações o trabalho que se faz ao nível do jogo antes de se chegar ao desporto profissional. Às vezes, basta observar jovens não muito talentosos e vê-se logo de maneira objetiva que provavelmente não chegarão ao nível máximo. No entanto, a relação que se instaura entre o jogo e os mais jovens é algo que nos traz um contributo absolutamente fantástico. É uma questão educativa, e nas escolas, nas faixas etárias mais baixas, e no desporto de formação, esse deve ser o eixo central do desenvolvimento, porque as crianças que um dia não venham a ser desportistas profissionais serão apaixonadas pelo desporto. Os meninos que não estiverem em campo estarão lá fora. E tudo isso está ligado. O menino que cresce num balneário com os amigos, com os quais se criam ligações fortes no desporto e no jogo, cresce com outras raças, com outras religiões, e quando for adulto essa base estará presente. Um jovem italiano que cresça com um africano que chegou a Itália como refugiado de uma dessas situações que temos pelo mundo, acha que se tornará um dia agressivo, racista e xenófobo nas bancadas? Não o será. A escola e o desporto de formação têm um papel deveras importante.

Tradução Jorge Pereirinha Pires


O FILÓSOFO MANUEL SÉRGIO



A motricidade no centro da experiência do desporto e da vida humana em geral, pessoal e coletiva. Eis o motivo central do pensamento de Manuel Sérgio, um dos pensadores portugueses mais interessantes das últimas décadas. O desporto é entendido como experiência essencial, na qual o ser humano descobre o sentido da sua existência e a relacionalidade. Sérgio obteve a licenciatura em Filosofia na Universidade de Lisboa, tornando-se seguidamente professor associado em Motricidade Humana junto da Universidade Técnica de Lisboa. A sua tese de doutoramento, intitulada “Para Uma Epistemologia da Motricidade Humana”, defende a existência de uma ciência filosófica da motricidade humana, da qual a educação física seria a presciência. É membro da Associação Portuguesa de Escritores e autor e coautor de 37 livros e numerosos artigos em revistas nacionais e internacionais. Entre os seus títulos devem recordar-se “Uma Reformulação da Ética e Outros Escritos” (2022), “Para um Desporto do Futuro” (2017), “Crítica da Razão Desportiva” (2012). É professor na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa. Foi professor na Universidade Fernando Pessoa e no Instituto Universitário da Maia. Entre 2001 e 2009 foi diretor do ISEIT (Instituto Piaget — Almada). É membro fundador da Sociedade Internacional de Motricidade Humana e da Sociedade Portuguesa de Motricidade Humana. / LUCA M. POSSATI

Sem comentários: