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sábado, 17 de setembro de 2022

A Rainha e os súbditos

 

Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
17/09/2022
estatuadesal

A Rainha deu posse a Liz Truss como primeira-ministra na terça-feira da semana passada e dois dias depois morreu. Aparentemente, estava de perfeita saúde, apenas fraca, nessa terça-feira, mas, quando viu quem era a 14ª chefe de um Governo seu que lhe cabia nomear, ficou para morrer... e morreu mesmo. Essa era a fatalidade constitucional de Isabel II, a qual lhe coube arrastar em silêncio durante 70 longos anos: guardar para si os sinais evidentes de desconforto ou de desastre que a sua perspicácia lhe permitia ver mas obrigava a silenciar. Ao ponto de ir ao Parlamento ler um Discurso do Trono, integralmente escrito pelo primeiro-ministro Boris Johnson, em que prometia que “o meu Governo tudo fará para consumar rapidamente o ‘Brexit’” — a que ela, e outrora o próprio Boris Johnson (tal como Liz Truss), eram avessos.


Entre as várias coisas interessantes e as imensas banalidades e disparates que esta semana vi escritas ou ditas sobre Isabel II, li uma análise primária de uma nossa republicana facção histérica a proclamar que a Rainha fora uma privilegiada, que vivera uma vida inteira entre o luxo e a ociosidade. Como se o luxo fosse ter um séquito de empregados sempre em cima, ou ter 11 castelos ou palá­cios Tudor onde viver, ou ter de passar férias de Verão à chuva na Escócia. Ou como se a ociosidade, a falta de privacidade e a condenação pública ao silêncio para a vida fossem um privilégio. Há, seguramente, muitas razões válidas para se recusar a monarquia como sistema constitucional ou, simplesmente, para achar que não faz sentido considerá-la em países onde ela deixou há muito de estar institucionalizada, como é o caso de Portugal. Mas o argumento populista sobre os privilégios reais é o mais fraco de todos. É o argumento ditado pela inveja de rua, o mesmo que a rua aplica ao vencimento dos políticos, o argumento dos que defendem que toda a representação política deve ser exercida em estilo de sacerdócio — o caminho mais rápido para a corrupção e para a selecção de medíocres.
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

No caso da família real inglesa — que é, de facto, riquíssima —, parte dessa riqueza é do Estado e parte é da própria família Windsor: Balmoral, por exemplo, onde a Rainha morreu, é propriedade deles. Mas se a lista de despesas da família real, autorizada e votada pelo Parlamento, e que já foi bem maior, é, ainda assim, enorme aos olhos de um inglês comum, é porque as instituições e o povo entendem que é esse o nível de representação adequado para a Casa Real. Todavia, e como é bem sabido, toda essa panache de símbolos, cerimónias e parafernália ligada à Casa Real inglesa traduz-se num volume incomparavelmente maior de receitas que ela proporciona, ligadas ao turismo, hotelaria, comércio, venda de jornais e revistas. A Rai­nha (e agora Carlos III), a respectiva família e o que eles fazem ou deixam de fazer são uma constante e inestimável contribuição para o PIB do Reino Unido. E não só: basta ter visto, entre nós, as doses maciças de cobertura televisiva dos intermináveis funerais da Rainha.

Mas, sim: 14 dias de funeral, mesmo para uma Rainha de Inglaterra, mesmo para Isabel II, que reinou ao longo da vida de quase três gerações, é demasiado. Desde Tutankhamon que não se via nada assim. Dizem-nos que tal se ficou a dever ao respeito que ela inspirou no mundo inteiro, ao exemplo excepcional que foi de servidora pública, das convicções firmes que sempre manteve (todavia silenciosas ou apenas presumidas), do rigor e do sacrifício com que exerceu funções. Bem, a avaliar pela indigência dos discursos com que foi homenageada nos Comuns por Boris Johnson, Theresa May, Liz Truss ou o próprio filho Carlos, não custa acreditar que, ao pé deles, ela tenha sido excepcional. Mas quem, dos grandes do mundo da geração de Isabel II, não é hoje excepcional comparado com o que temos à vista? Comparado com estas marionetas escravas das opiniões públicas instantâneas, do politicamente correcto e das redes sociais? Reparem na nova primeira-ministra inglesa, esse cata-vento que muda de opinião mais depressa do que muda o vento no Canal da Mancha, que não foi capaz de dizer se a França é um amigo ou um inimigo de Inglaterra, mas que, logo após ter tomado posse perante a Rainha, correu a telefonar e prestar vassalagem a Zelensky para ficar bem-vista do lado de onde sopra o vento nos dias de hoje. Seria muito curioso saber o que terá pensado a Rainha, mesmo antes de morrer, se foi informada desse telefonema. Terá concordado com ele, tê-lo-á achado uma prioridade de um PM inglês acabado de ser empossado? Aliás, com toda a sua experiência do mundo e das guerras a que assistiu, ela, que começou a aprender política com o verdadeiro Churchill, o que pensaria da guerra da Ucrânia e da posição do seu Governo perante ela?

Quem, dos grandes do mundo da geração de Isabel II, não é hoje excepcional comparado com o que temos à vista?

Mas, para efeitos de política interna, Liz Truss fez bem em apressar-se a telefonar a Zelensky. Pouco depois, o “Churchill do Leste” começou manifestamente a ficar nervoso com o protagonismo que o interminável funeral da Rainha lhe estava a roubar e justamente no momento em que ele tinha triunfos sólidos no campo de batalha e motivos de escárnio dos soldados russos para anunciar ao mundo. Juntamente com novo pedido de mais armas do inesgotável armazém do Pentágono, prontamente acudido por Washington. Como a guerra é um vaivém, os russos dizem-se agora prontos para negociar, mas Zelensky não: quer a vitória total, com as armas americanas, o apoio da NATO e as sanções europeias, pagas com a respectiva crise económica. E a vitória total inclui já a Crimeia e, no ime­diato, a anunciada retoma da central nuclear da Zaporíjia — o que implica atacar a central, mesmo com o pessoal da ONU lá dentro (aquilo que os ucranianos acusavam os russos de fazer mas que estranhamente cessou assim que os observadores da Agência Internacional de Energia Atómica lá entraram).

Assim, a menos que Putin se disponha a sair da Ucrânia dando-se por vencido e humilhado — o que não é exactamente provável —, temos guerra para durar sem fim à vista. E com a dita “chantagem do gás” posta em prática por Putin, e que mais não é do que a resposta previsível e natural às sanções sobre a Rússia, avizinha-se um Inverno negro em toda a Europa e um futuro que poderá ser bastante pior do que apenas o fim do “tempo da abundância” de que falou Macron. Mas que trará consigo também novas franjas de pobreza e desespero, campo fértil para a radicalização e o populismo, que a extrema-direita saberá aproveitar, como já vimos na Suécia e em breve veremos em Itália. Na Primavera, passado um ano sobre o início de uma guerra que ninguém quis evitar, acordaremos para uma Europa em ruína económica, que terá retrocedido em todas as metas climáticas, que terá recuado na sua paisagem democrática e vacilado em alguns dos seus princípios essenciais e que, provavelmente, terá rompido a sua tão propalada solidariedade. E depois perguntaremos como foi possível, como é que ninguém viu o desastre a acontecer debaixo dos nossos olhos. Tarde demais.

Vivemos num tempo em que os Reis estão reduzidos ao silêncio por imperativo constitucional e os príncipes ou princesas de que o povo gosta chamam-se Diana ou Stéfanie e só abrem a boca para falar de si próprias e dizer baboseiras. E os outros, os príncipes de carácter, são corpos estranhos a abater. Se fosse vivo hoje, o velho Winston Churchill não teria lugar na política.

Um homem que tinha uma visão imperial de Inglaterra, que bebia demais e fumava charutos cubanos em público, que gostava de caçar animais selvagens em África, que acordava às duas da tarde e ditava discursos à secretária todo nu na banheira, enquanto tomava um pequeno-almoço pornográfico, não sobreviveria um mês exposto à opi­nião pública. É verdade que também tinha uma coragem absurda e que dizia rigorosamente o que pensava na cara de amigos e inimigos: mais uma razão para ser trucidado.

E talvez Isabel II também fosse trucidada se alguém se lembrasse de resgatar, a propósito da guerra da Ucrânia, uma sua frase de referência: “A busca da paz é talvez a mais difícil forma de liderança.”

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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