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sábado, 2 de dezembro de 2023

Desculpem-me insistir


Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
01/12/2023
 A Estátua de Sal




Talvez pudéssemos mesmo encenar uma peça de teatro sobre esta história, chamada “Os Salvados do 7 de Novembro”, tendo como protagonistas principais Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Nuno Santos, Luís Montenegro e André Ventura.



Desculpem-me insistir nisto, mas isto é o essencial: é o Estado de direito, o fundamento da democracia. Começa nas fronteiras de um país, onde a forma como as autoridades nos tratam dizem logo ao que vamos. E continua depois na forma como a Justiça do país nos trata a todos, nacionais ou não nacionais. À polícia e às Forças Armadas concedemos o direito de andarem armados para defenderem a nossa segurança, a nossa soberania e a nossa Constituição. À Justiça e aos seus magistrados concedemos o poder de decidirem sobre os nossos deveres e a nossa liberdade para resolverem os nossos conflitos e garantirem os nossos direitos. 

No dia em que cada uma destas entidades, como cada um dos poderes institucionais, não for controlada por outro ou por ninguém — no dia em que um só dos poderes estiver fora de controlo —, não tenham dúvidas de que o Estado de direito e a democracia estão ameaçados. Entre nós só há um poder que, na lei e na prática, ninguém controla a não ser ele mesmo: o Ministério Público (MP).


Há democracias onde o MP é controlado directamente pelo Governo, através do ministro da Justiça, com o fundamento teórico de que, não sendo assim, não pode haver uma política de justiça assumida pelo Governo. Há países onde o MP é controlado pelos eleitores, que elegem regularmente os procuradores em função do seu histórico no desempenho da função. E há países onde o MP é controlado hierarquicamente dentro da estrutura, no topo da qual está alguém que responde ou perante o Governo ou perante o Parlamento. Mas nós somos um caso original e de “sucesso”: os nossos procuradores, além de serem independentes e irresponsáveis pelas suas decisões ou não decisões, são ainda inamovíveis e hierarquicamente autónomos, podendo apenas e em casos extremos ser disciplinarmente responsabilizados perante um Conselho Superior onde, ao contrário do que sucede com os juízes, os seus pares estão em maioria. Nenhum outro órgão de soberania, nenhuma outra actividade de serviço público, nenhuma outra profissão goza entre nós de semelhante estatuto de impunidade funcional. Os políticos têm medo de a contestar, os ignorantes acham que pô-la em causa equivale a defender a corrupção e os “poderosos”, os jornalistas apressados não querem perder as suas notícias e os populistas alimentam-se disto como de pão para a boca. Mas aqueles que sabem do que falo têm razões para não dormirem descansados: “Primeiro, vieram buscar o meu vizinho...”

O caso Casa Pia deveria ter sido um toque a rebate sobre o funcionamento do MP. Quando ficámos a saber que na investigação do processo andavam a mostrar aos miúdos traumatizados um catálogo com 30 fotografias de figuras públicas, do cardeal-patriarca a Mário Soares, escolhidas ao gosto aleatório ou não de um qualquer procurador (e onde, obviamente, não constava o retrato de nenhum magistrado), para ver se eles, confundindo figuras conhecidas dos ecrãs com figuras dos seus abusos, identificavam “suspeitos”, e nada aconteceu a estes “investigadores” e aos seus superiores, a partir daí ficou aberta a porta à intimidação processual. Que se seguiu, por diversas vezes e sempre impunemente, arrasando reputações, carreiras e vidas pessoais, afastando do serviço público gente de valor para o país, compreensivelmente aterrorizada pela madrasta justiceira do DCIAP de Lisboa. Até chegarmos ao 7 de Novembro e à escolha política que nos resta depois do raide da PGR e do MP: os salvados do incêndio, a mediocridade partidária e populista. E querem que não falemos disso, que nos conformemos, que “deixemos a Justiça seguir o seu curso”? Mas qual curso? Qual Justiça?


Entendamo-nos: não convém confundir a percepção popular da corrupção existente (que é o que aparece nos índices oficiais como o nível de corrupção de cada país) com a verdadeira corrupção existente. E também não convém confundir o crime de corrupção com todo o tipo de crime económico, fazendo do direito penal uma extensão do “direito de café”. Dito o que é evidente que temos problemas criminais deste tipo, não sei se mais ou menos abundantes do que outros, mas a todos os níveis da sociedade onde existem seres humanos permeáveis ao desejo de enriquecer rapidamente e de qualquer forma, de saltarem por cima das leis e de obterem tratamentos de favor: militares que roubam nas cantinas ou na compra de armas, médicos que aldrabam receitas, autarcas que adjudicam empreitadas à margem da lei, laboratórios contratados pelo Estado que simulam análises, consulados que vendem documentos a traficantes de droga, etc. Não há pano de linho nem peça de seda que não possa ser manchada com as mais abjectas nódoas. E todos os dias, felizmente, o MP persegue, investiga e leva a julgamento os que consegue. Mas esta criminalidade inorgânica e abstracta, que anda algures por aí, sem rostos apetecíveis para os cafés e tablóides, não seduz nem sacia o desejo de justiça popular da sociedade — que, não raras vezes até, desculpabiliza-a, vendo nela uma tentativa falhada de os “pobres” ascenderem ao mundo dos “ricos”. Eles querem verdadeiro sangue, o sangue dos “poderosos”, que são sobretudo “os políticos” — os do Governo da nação, bem entendido, porque os outros, os dos governos locais, muitas vezes são seus familiares, amigos, conhecidos, próximos, da terra. E o problema está quando este desejo de justiça popular encontra na organização do MP um departamento central de investigação, o DCIAP, que, sob a capa de chamar a si os casos mais complicados, acabou por assumir com o tempo a vocação de investigar “poderosos” e gente “mediática”, desde logo dando a ideia de que há casos e casos e, afinal, nem todos devem ser tratados por igual.

Peguemos no caso MP vs. António Costa, que finalmente mereceu uma curta explicação da procuradora-geral da República, Lucília Gago. Na esteira dos argumentos que lhe foram sugeridos pelo sindicato dos magistrados do Ministério Público, “esclareceu” ela que “havendo notícia de um crime”, o MP é “obrigado por lei a abrir um inquérito” e, depois, por um “dever de transparência”, a dar-lhe publicidade. Nenhuma das razões colhe. Primeiro, não havia notícia de qualquer crime contra António Costa. O facto de em duas ou três escutas telefónicas os intervenientes dizerem que queriam falar com o primeiro-ministro ou que iriam falar com ele não indicia: a) que o tenham feito; b) que o primeiro-ministro os tenha ouvido e concordado com a sua pretensão; e c) que esta fosse ilegítima ou criminosa. Pelo que não havia razão alguma para a abertura de um inquérito à actuação do primeiro-ministro; quanto muito, o MP prosseguiria a investigação em relação aos restantes suspeitos e se, no decurso desta, surgissem indícios sérios contra o primeiro-ministro, então, sim, abriria o tal inquérito. Mas mesmo que tenha entendido o contrário, nada, nenhum “dever de transparência”, obrigava o MP a tornar isso público: todos os dias o MP recebe dezenas de participações criminais e abre inquéritos contra denunciados ou suspeitos sem que, até por razões de eficácia, vá participar ao denunciado, particular ou publicamente, que está a investigá-lo. É óbvio e indesmentível que quando Lucília Gago escreve o tal “parágrafo assassino” sabia ao que ia. E, se não sabia, é porque não entende português — o que é muito grave nas funções que desempenha.

Durante toda a semana assisti a um impressionante blitz de defensores da PGR e da actuação do MP, insistindo, nomeadamente, que António Costa não se demitiu por causa do tal parágrafo, mas de tudo o resto: as suspeitas sobre o seu chefe de gabinete, o “melhor amigo”, dois ministros, os €75 mil no gabinete de Vítor Escária. Concedo que muito provavelmente ele demitir-se-ia depois de saber tudo isso. O problema é que demitiu-se não depois mas antes de saber tudo isso: o comunicado da PGR é ao meio-dia, Costa demite-se às 13h, o gabinete de Escária só é buscado da parte da tarde e os fundamentos das suspeitas do MP sobre os implicados só são conhecidos ao final do dia, já as agências de notícias internacionais titulavam: “PM de Portugal demite-se sob suspeitas de corrupção”. O resto da história conhecemo-lo. Talvez pudéssemos mesmo encenar uma peça de teatro sobre ela, chamada “Os Salvados do 7 de Novembro”, tendo como protagonistas principais Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Nuno Santos, Luís Montenegro e André Ventura.

Há dias, numa entrevista televisiva, a ex-directora do DCIAP, Cândida Almeida, queixava-se das “pressões” que se fazem sobre o MP, entendendo como pressões, e abusivas, as críticas feitas à sua actuação, neste ou noutros casos. E falava, condoída, da “amargura” que tais pressões traziam à “vida pessoal, familiar e profissional” dos procuradores do MP. Fiquei a pensar se ela seria capaz de imaginar a amargura do outro lado. Por exemplo, do lado do presidente da Câmara de Sines, acordado em casa às 7h da manhã, junto da família, com a casa vasculhada como um vulgar criminoso e logo, presumo, como é da praxe, espoliado do computador e telemóvel pessoal, depois transportado ao seu gabinete de trabalho na Câmara, onde as buscas prosseguiram à vista dos funcionários que chefia e dos munícipes que o elegeram, e daí transportado para os calabouços da PSP em Lisboa, onde — ao abrigo de uma interpretação, essa sim abusiva, da norma processual — permaneceu seis dias e seis noites em silêncio e isolamento, enquanto cá fora o seu estatuto público passou a ser o de um corrupto, até finalmente ser ouvido por um juiz que o mandou libertar, sem qualquer medida de coação, pois que nada, absolutamente nada, viu nos autos que justificasse tudo aquilo por que ele passara. Consegue imaginar, senhora procuradora? É disso que deveríamos falar.

2 Ao longo dos anos assisti a muitas cambalhotas políticas, que levei à conta da inerência da própria actividade. Mas algumas espantam mais do que outras e às vezes quase que doem, como é o caso do apoio à candidatura de Pedro Nuno Santos por parte de Álvaro Beleza e Francisco Assis, dois socialistas cuja lucidez e sensatez em nada se podem rever nas apregoadas qualidades do seu apoiado candidato. Sentindo-se justamente interpelado na sua coerência, Francisco Assis tem-se desdobrado em explicações, mas debalde: cada uma é mais incompreensível e contraditória do que a outra. E para quem também recusa aceitar a tese de um simples trade-off negociado à mesa de um restaurante, resta a única explicação lógica: que a vida partidária está cheia de intimidades não frequentáveis.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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