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sábado, 16 de dezembro de 2023

Natal

 

Mais um ano! Ou menos um no conta-quilómetros da vida. E lá vêm os choradinhos da solidariedade, da tolerância, do amor, da fraternidade, as missas do parto, os adros cheios de vida, de "parideiras" e vinho-e-alhos, a azáfama dos bolos de mel, licores e doçaria, o presépio e a árvore de Natal, as limpezas e a decoração das habitações, a iluminação dos espaços públicos, as canções e melodias da época, os almoços e jantares, a noite do mercado, a família, as crianças, as prendas, a placa central e tantas outras, o circo e as animações estonteantes, até ao ribombar dos foguetes que tornam o céu multicolor de esperanças mil, as passas, o champanhe e as promessas de sermos diferentes e melhores. O habitual. 



Ano após ano o mesmo de sempre. Oiço falar da magia do Natal, mas não percebo bem se falam de puros rituais assentes em crenças ou de um período que, podendo ser aquilo que é, devia consubstanciar-se, sobretudo, nessa magia das palavras portadoras de futuro que traduzem a Mensagem de quem, naquele dia, nasceu (não me interessa a veracidade da data). 

Passo bem sem passas e promessas vãs, sem rezas públicas de Avé-Marias e Padres-Nossos, sem Missas não interiorizadas, mas não passo sem uma reflexão diária sobre a missão do ser humano, a contínua leitura do Homem no Mundo tendo por base a Palavra contextualizada com a vida. 

De que valem tantos, de cabisbaixo, talvez envergonhados, obrigados pela função, em "acção de graças" (!), baterem no peito, andarem por aí a desejar uns aos outros os votos de Bom Natal se eles próprios não conseguem renascer da sua prática muitas vezes egoísta e dolosa para com os semelhantes! Dispenso essa hipocrisia pública de salão e tapete vermelho num ritual que não acrescenta; prescindo e assobio para o lado, aquando da gritaria, muitas vezes ofensiva, do palavreado de meias-verdades escutadas nos hemiciclos; recuso a mentira que dá jeito, em todos os sectores, áreas e domínios, quando para isso se torna necessário violentar a consciência, dobrando a cerviz ao ponto do nariz aproximar-se dos joelhos; furto-me às aparências quando facilmente se percebe o oco que são e porque são; mando para longe a cultura do ter distante do ser e, facilmente, confesso, expludo para comigo próprio, perante a insensibilidade, os desequilíbrios sociais, todas as pobrezas e explorações que correm frente aos nossos olhos de espectadores. Condói-me a brutalidade das guerras, os imperialismos e a incapacidade para o diálogo dos seres dotados de inteligência; magoa-me a desenfreada corrupção através de uma louca corrida pelo dinheiro fácil, a falência dos princípios e valores, a miséria de milhares de milhões num planeta rico, em contraponto com o facto de, só na última década, 1% ter arrecadado quase metade de toda a nova riqueza gerada; revolta-me a substantiva indiferença e hipocrisia perante quem não tem tecto, oferecendo-lhes, como se essa fosse a solução, a caridade de uma refeição de Natal e uns quantos agasalhos. Para o ano, cá estaremos!

O Natal é assim. Acaba por ser um ponto de chegada e jamais um ponto de partida para uma vida renovada e alicerçada na dignidade de um projecto, individual e colectivo, com futuro. Se, finalmente, despertássemos para o seu significado mais profundo, outro galo cantaria nas Missas e outro nascimento aconteceria nas sociedades. Porém, a sofisticada engrenagem política, económica, financeira, religiosa e cultural não o permite. Vive-se numa permanente ilusão que faz adoecer e mata. Mas a plebe lá vai aguentando, esticando o magro salário, porque o biscate e a economia paralela equilibram e, lá para diante, na reforma, logo se verá; o trabalho deixou de significar resposta às necessidades básicas e, por isso, as juntas, casas do povo, associações e paróquias colmatam o sentimento depressivo da vida onde tantas famílias agonizam. Um terço da população é pobre ou está em risco de pobreza! E o círculo vicioso mantém-se porque a pobreza tendencial e paulatinamente eterniza-se.

Inclusão e esbatimento das assimetrias? Uma ova! Iludem-se os que julgam que a escola constitui o tal "elevador social" e a fuga aos constrangimentos da vida imposta. Se esta escola servisse a mudança, reflictamos, passados quase 50 anos de Abril, em que patamar a população devia estar? Que melhorou, obviamente que sim. Pelo menos para meia-dúzia! Que não resolveu a panóplia de direitos humanos, obviamente que não. A escola é aquilo que é, desrespeitosa para os talentos, vocações, interesses pessoais e para a cultura, simplesmente porque interessa que assim seja. Uma população culta, aquela que rejeita amestramentos, sabe muito mais do que as respostas às questões do manual. Os políticos reconhecem, obviamente que sim, que ela se torna potencialmente perigosa, porque pode transportar os elementos fundamentais da liberdade de pensamento e acção. Por mais perverso que possa parecer há que alimentar a nata e, subtilmente, deixar os restantes na dependência, discursando e enaltecendo, sempre, qual paradoxo, o sentido da inclusão! É o que temos na frente dos nossos olhos.

Seja como for, porque os rituais também fazem parte da vida, sendo tão bom vivê-los, neste Natal estou a repeti-los todos, sem deixar absorver-me pelas situações convencionais e superficiais. Trago em memória o Filósofo Ortega y Gasset "Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim"

FELIZ NATAL para todos e desculpem-me o desabafo arrancado das entranhas e onde tanto ficou por dizer.

Ilustração: Arquivo próprio, em casa.

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