Por
Maria José da Silveira Núncio
PÚBLICO
7 de Outubro de 2019
Talvez seja melhor desistir. Desistir de escrever sobre as mulheres que vão morrendo às mãos daquele que amaram. Desistir de escrever sobre os preconceitos, os estereótipos, os contextos, as mentalidades, a sociedade... Desistir de me indignar com um sistema que não protege e que, ao invés, torna as vítimas cada vez mais vítimas. Desistir de me revoltar contra o voyeurismo macabro, sensacionalista e imundo que noticia cada nova morte. Desistir de me arrepiar com os aproveitamentos extremados que, em nome das mulheres (e que mulheres?), apelam a uma espécie de “guerra civil do género”.
Desistir de me enervar com as promessas (tantas), as comissões (várias), os grupos de trabalho (redundantes) que, compungidos e compenetrados, emergem a cada morte, como sempre emergiram as carpideiras, nos enterros de aldeia. Desistir de me espantar com a indiferença, que vai tomando conta de uma sociedade, ou seja, que vai tomando conta de nós. Uma indiferença que “normaliza” e que, por normalizar, legitima e valida, num encolher de ombros e num suspiro resignado…
Desistir de me zangar porque há mulheres que são, aqui no meio de nós, clandestinas, refugiadas, fugitivas. Mulheres desapossadas da sua identidade e da sua vida e da sua casa e da sua roupa, tentando refazer os pedaços de si mesmas (e os pedaços dos seus filhos) em casas-abrigo, escondidas do mundo. E são tantos os pedaços em que se desfizeram! E estão mortas, também, estas mulheres, ainda que respirem e se alimentem e durmam (a custo) e, às vezes, mas só mesmo às vezes, até sorriam.
Desistir de me enfurecer com os homicidas e com os agressores, pela sua crueldade cobarde e atávica. Desistir de me enraivecer com a lei, os juízes, os procuradores, os polícias, pela sua ineficiência, e pela sua ineficácia.
Desistir de me desapontar com os teóricos e especialistas vários, pelo seu desfasamento do real, preocupados em encaixar em modelos explicativos a crueza de vidas sem explicação. Talvez seja melhor desistir, pelo respeito por cada mulher que morreu às mãos de quem amou e por cada mulher que sobrevive, compondo os pedaços da sua existência estilhaçada.
E talvez seja melhor desistir, por respeito a uma memória: a memória de uma mulher que conheci em tempos. Uma mulher explorada sexualmente e maltratada pelo seu chulo (que era, também ou sobretudo, o homem que ela amava). Uma mulher que um dia, com o peito coberto dos hematomas da última tareia, me disse que ali, naquele tronco roxo e amarelado, estava a prova do amor. Estava a prova de que ele a amava… É que, explicou-me essa mulher, apesar de tudo, o “seu homem” tinha o cuidado de nunca lhe bater na cara. E isso, afinal, o que poderia ser, senão amor?
Socióloga
Professora universitária ISCSP-ULisboa
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