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terça-feira, 13 de abril de 2021

Só amamos as batalhas difíceis


Por 
José Sócrates, 
in Público, 
12/04/2021


O processo Marquês nunca foi um processo judicial, mas um processo político. Foi concebido e executado para me afastar do debate público e para impedir a minha candidatura a Presidente da República, que a direita dava como certa. Teve igualmente como objetivo criminalizar as políticas do Governo que liderei e, desta forma, legitimar as políticas de austeridade do governo que me sucedeu. Em dois pontos constituiu um sucesso absoluto – o PS perdeu as eleições legislativas e o candidato Marcelo Rebelo de Sousa pôde ser eleito sem que o PS apoiasse qualquer candidato presidencial, o que aconteceu pela primeira vez na democracia. No entanto, como tantas vezes aconteceu na história, o golpe, vítima do seu próprio êxito, escapou das mãos dos seus artífices. A extrema-direita viu nele a oportunidade para julgar o regime e a democracia – afinal de contas era um antigo primeiro-ministro acusado de corrupção. De certa forma, o processo Marquês, e as diversas cumplicidades que com ele se estabeleceram, constituiu um marco importante no nascimento e afirmação do primeiro partido da extrema-direita no Portugal democrático.



O processo teve também uma longa preparação. Antes dele houve duas outras tentativas de criar um processo judicial contra mim – o Freeport e as chamadas “escutas de Belém”. Ambas foram desmascaradas e ambas falharam. A primeira teve origem no gabinete do primeiro-ministro de então; a segunda na casa civil do Presidente da República. Quando decidiram tentar de novo, asseguraram-se que toda a gente estaria a seu lado – um Governo, uma maioria, um Presidente e uma procuradora-geral. Faltava um juiz. A obrigação legal do sorteio foi então substituída pela “atribuição manual” e o jogo foi viciado. Agora o juiz era o seu juiz, escolhido por quem nada quis deixar ao acaso. Eis a trapaça, agora denunciada na decisão instrutória. Eis o escândalo de que ninguém parece querer falar.

Nada disto tinha tradição na política portuguesa. A instrumentalização do combate à corrupção para combater o inimigo político é mais própria de outras latitudes. Na verdade, o Governo Passos Coelho foi o primeiro em democracia a iniciar esta caça ao homem. Após as eleições, a primeira preocupação foi a de criminalizar as políticas do Governo anterior, única forma que encontraram de legitimar as suas. A ministra da Justiça da altura deu o tom – “acabou a impunidade”. A partir daí valeu tudo: inquérito sobre gastos dos gabinetes, inquérito sobre as PPP, inquérito sobre a EDP, inquérito sobre a PT, sobre o TGV, sobre a diplomacia económica na Venezuela, sobre a Parque Escolar, estas últimas devidamente acondicionadas no chamado processo Marquês. Escapou alguma coisa? Talvez o Magalhães, o inglês na primária, as Novas Oportunidades. Muito por onde escolher.

Quando chegou a primeira imagem da detenção, estava tudo a postos. O clima de ódio instalado, a televisão da lei e da ordem atribuída à Cofina e o futuro chefe da extrema-direita com emprego – o de comentador principal da Operação Marquês. A televisão dá-lhe visibilidade e o líder do partido a oportunidade de se lançar na política. Depois de um pequeno teste numa campanha municipal e de uma primeira fala sobre ciganos, fica absolutamente claro que a direita salazarista nunca deixou de existir e fica igualmente claro o que quer ouvir. Chega de uma direita tímida e civilizada. Depois de Trump e de Bolsonaro chegou o momento de afirmação – violência, ódio e intolerância. A moderação e o civismo democrático são filhos do politicamente correto e é preciso acabar com isso. O momento simbólico dá-se quando os polícias se manifestam em frente à Assembleia da República e cantam o hino nacional voltados de costas para o Parlamento. Aplaudem freneticamente o deputado de extrema-direita que é também o único a discursar aos manifestantes. Têm agora à sua frente tudo aquilo com que há anos sonharam – ordem, pátria, autoridade, os eternos ontem.

A esquerda, pelo seu lado, finge e finge e finge: o Partido Comunista considera as reivindicações dos polícias justas; o Bloco de Esquerda critica o Governo por ter sido tão indiferente a essas legítimas aspirações; e o Partido Socialista lembra tudo o que fez pela organização policial. Os manifestantes sentem imediatamente o cheiro da covardia e garantem que doravante serão os donos das ruas. A manifestação, na verdade, nada tem a ver com reivindicações profissionais. Ela pretende, isso sim, afirmar uma nova cultura política, a caminho de um estado policial.

Neste longo período, que tem agora mais de dez anos, a crise, o terror, os refugiados e os imigrantes criaram o ambiente propício para endurecer as leis, dar mais poderes às autoridades e enfraquecer as liberdades individuais. Como sempre, a caçada foi feita de arrasto, sem distinguir culpados e inocentes. O que importa é mostrar serviço: acusar, difamar, insultar. Tudo é suspeito, tudo é criminoso, até se provar que não é. Eis o caminho que despertou a memória histórica da inquisição e a cultura penal por detrás dela – o julgamento passa a ser feito por quem acusa e o direito de defesa e a presunção de inocência, bases do direito moderno, transformam-se lentamente em presunção pública de culpabilidade. A “morosidade insuportável” dos julgamentos acabou. Nós, procuradores e polícias, faremos a nossa própria justiça – já não precisamos de juízes independentes e imparciais. Foi este o caldo cultural que esteve no bojo do processo Marquês, que o permitiu e que o impulsionou. E ao qual a esquerda – toda a esquerda – assistiu em silêncio.

No final, anotemos o essencial. Primeiro, todas as alegações contidas na acusação – a fortuna escondida e a corrupção – caíram com estrondo. Segundo, fica agora absolutamente claro que, durante o meu mandato como primeiro-ministro, não foi identificada nenhuma conduta contrária aos deveres do cargo. Nunca. Pronto, este foi o primeiro passo.

No entanto, o juiz de instrução não resistiu à tentação de criar novas acusações. Pronuncia-me por um crime de que nunca estive acusado e do qual nunca me pude defender. Transforma o alegado “testa de ferro” em “corruptor” sem comunicar aos visados esta alteração de factos. Passei sete anos a defender-me da mentira da fortuna escondida e no final ouço, pela primeira vez, que há indícios (que alguns imediatamente transformam em provas e em sentença transitada em julgado) de um crime que já prescreveu. Essa acusação é tão injusta e falsa como as outras e dela me defenderei mais à frente.

Por agora, que fique claro que as acusações de corrupção no TGV, na diplomacia económica com a Venezuela, em Vale do Lobo, na PT e na ligação aos interesses do BES eram fantasiosas, incongruentes e sem nenhuma lógica, para usar as expressões do juiz. E, todavia, tive que as ouvir todos os dias reproduzidas nas televisões como se fossem factos provados. E, todavia, foi por elas, com base nelas, que foi decretada a prisão, pormenor que os moralistas de turno decidiram pôr de lado, por inoportunidade.

Bom, a batalha foi longa e dura, mas a solidão do combate deu-lhe uma beleza singular. Houve momentos em que parecia nada mais existir, a não ser essa vontade interior que “mantém acordada a coragem e o silêncio”. Não, não esqueço a ignomínia, mas celebro a oportunidade de vencer esta etapa. E vencerei a próxima porque nunca cometi nenhum crime. Para alguns esta foi a vitória possível. Talvez. Seja como for, só amamos as batalhas difíceis.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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