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sexta-feira, 16 de abril de 2021

Os três julgamentos de Sócrates. E uma sentença exemplar


Por estatuadesal
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
16/04/2021


Desde que o sorteio determinou que, ao contrário da vontade justiceira de quase todos — incluindo do juiz Carlos Alexandre —, a instrução do Processo Marquês caberia a Ivo Rosa, desencadeou-se sobre este juiz a mais feroz campanha de desacreditação pessoal a que já assisti. E não apenas nos media que servem de caixa de ressonância ao DCIAP e ao Ministério Público (MP), mas nos próprios meios judiciais, com destaque para o Tribunal da Relação de Lisboa — o mais desprestigiado e manchado dos tribunais portugueses —, onde desembargadores, muito aquém tecnicamente de Ivo Rosa, se deleitaram em contrariar decisões instrumentais dele, fazendo-o, por vezes, em termos de deliberada e pública humilhação.




O ambiente estava, pois, preparado para que, ocorrendo qualquer outra decisão instrutória de Ivo Rosa que não aquela que o MP, os justiceiros dos media e a opinião pública há muito tinham estabelecido como a única aceitável, Ivo Rosa fosse levado ao cadafalso e erigido até em coveiro não só da justiça mas do próprio regime democrático. Não espanta que o faça a turbamulta dos abaixo-assinantes que acham que se pode sanear um juiz por petição popular, como nas ditaduras, ou os sectores da direita e extrema-direita que usam a corrupção como pretexto propagandístico e a incapacidade da justiça de ser eficaz e pronta como sinal da inviabilidade do sistema democrático. É uma agenda política que só os idiotas e os ingénuos não enxergam. O que me espanta é que gente que tinha obrigação de se guiar por outros padrões, menos imediatistas e menos histéricos, até mesmo gente com formação jurídica não tenha resistido também a cavalgar a onda populista em lugar de se dar ao trabalho de estudar com atenção o quadro jurídico em que se movimentou o juiz. Por todos, cito Marques Mendes e a sua frase de uma extrema gravidade: “Este juiz é um perigo à solta.”

Ora, este juiz produziu uma “sentença” exemplar. Mas, para melhor a compreender, é preciso notar que José Sócrates, de facto, estava e está a ser julgado em três planos diferentes, mas que, por via das funções que exerceu e no período em que as exerceu, se confundem no Processo Marquês: um julgamento político, um julgamento criminal e um julgamento ético.

No julgamento político (de que Ivo Rosa não se ocupou, nem se podia ocupar, no seu despacho instrutório), Sócrates era acusado de ter levado o país à ruína, e só por isso muitos gostavam de o ver na prisão. Concordo que a governação de Sócrates contribuiu para levar o país à ruína, mas entendo que é uma desculpa de má consciência colectiva sustentar que o fez sozinho, que foi a sua governação sozinha que acrescentou 60 ou 70 mil milhões à dívida do Estado. Aliás, quando o FMI é chamado por Sócrates, em 2011, não era apenas o Estado que estava falido, mas o país inteiro: famílias, empresas, bancos, tudo estava endividado por anos sucessivos em que, por muito que isso custe ouvir, de facto todos tinham vivido acima das suas possibilidades. Quanto ao endividamento público, o facto é que Sócrates, o despesista, foi reconduzido em eleições pelo mesmo povo que agora o acusa de ter arrui­nado o país, e, nessa altura, houve uma única voz que, em vão, chamou a atenção para o que se estava a passar: Manuela Ferreira Leite — que, sintomaticamente, perdeu as eleições e perdeu o PSD. E recordo que, quando, em 2009, Teixeira dos Santos, alarmado com o crescimento do défice e da dívida, quis puxar o travão, vieram “instruções superiores” de Bruxelas para fazer exactamente o contrário — o que conduziria ao colapso das finanças públicas de Portugal, Grécia, Espanha, Irlanda e Itália. E enfim, para quem já não se lembre, houve o célebre PEC IV, quando a nova orientação de Bruxelas passou a ser a inversa. Lembram-se o que era, na sua essência, o PEC IV, que Bruxelas já tinha aprovado? Era um plano justamente para tentar conter o caminho para o abismo, cortando na despesa pública, subindo alguns impostos e tentando assim evitar a chamada da troika. Votaram contra o CDS e o PSD, porque, chumbado o plano, caía o Governo e lhes cheirava a poder; e votaram contra o PCP e o BE, mesmo sabendo que estavam a abrir caminho à direita e à troika. A versão de Sócrates culpado único da ruína do país tem mais de catarse geral do que de verdade histórica.

O julgamento criminal de José Sócrates era, assim, o único de que agora se devia ocupar o despacho de pronúncia. Não sendo tecnicamente um julgamento, funcionou, de facto, como um julgamento em primeira instância e foi eloquente para que muitos, que tenham estado atentos e de boa-fé, possam ter percebido, finalmente, o fundamento das acusações. Em suma, o MP assentou toda a fase investigatória e toda a acusação em duas presunções: todo o património de Carlos Santos Silva — o dinheiro que transferiu da Suíça, a casa de Paris, etc. — era, de facto, de José Sócrates; e, sendo de Sócrates, só podia ter-lhe advindo de corrupção. A partir daqui, o MP prendeu Sócrates, Santos Silva e o motorista José Perna; prendeu para investigar. E pôs-se à procura dos corruptores, pelo chamado método de “pesca de arrasto” (a certa altura, o “Correio da Manhã” noticiou que todos os negócios entre o Estado e privados durante os anos de governação de Sócrates estavam sob suspeita do MP). Finalmente, fixou-se em três — Vale do Lobo, Grupo Lena e PT/BES —, e à roda de cada um deles elaborou as tais construções a que Ivo Rosa chamou “fantasiosas”, seguramente sedutoras e tentadoras (sobretudo para quem se atreveu a tentar fazer o julgamento de todo o regime num só processo), mas que tinham todas elas um pequeno problema: total ausência de provas, directas ou indirectas, e até mesmo de indícios de crime suficientemente fortes para justificarem uma ida a julgamento. Quem se tenha dado ao trabalho de ler, ainda que ao de leve, as mais de 4000 páginas da acusação, verificou que ali não havia uma confissão, um testemunho, uma escuta, um documento, um papel que pudesse sustentar qualquer uma das teses do MP, a não ser a “convicção” de Paulo Azevedo de que a OPA da Sonae à PT falhou não porque uma maioria de accionistas achasse o preço barato mas porque Sócrates estava a soldo do BES (apesar de não ter usado a golden share do Estado para votar contra a OPA) e o testemunho comprado de Helder Bataglia (a quem antes o MP conferira o estatuto de bandido internacional), cuja falta de credibilidade Ivo Rosa demonstrou facilmente.

Assim, chamado a julgar segundo a lei e a sua consciência, como está estabelecido, o juiz começou por verificar que todos os crimes de corrupção estavam prescritos, conforme parece ser o caso, e os outros caíam por lhes serem dependentes e instrumentais. Se tivesse ficado por aí, teria sido mau para todas as partes. Porém, ele deu-se ao trabalho de analisar a substância das acusações, mesmo que isso não vie­sse a ter resultados jurídicos práticos. O que disse foi: “Mesmo que os crimes não estivessem prescritos, eu não levaria estes arguidos a julgamento, porque não há indícios de que tenham praticado os crimes de que são acusados.” É a sua opinião, que explicou porquê, fundamentadamente e tendo considerado não apenas os argumentos de uma parte mas de ambas. Pode estar errado, e certamente que haverá opiniões diferentes, mas cumpriu o seu papel de juiz.

Restava, enfim, o julgamento ético de José Sócrates, e foi aqui que Ivo Rosa surpreendeu tudo e todos. Ele podia ter ignorado a questão, visto que os tribunais não julgam a ética, mas o direito. Ou podia, como muitos juízes fazem, não ter condenado por razões éticas, mas ter dado um sermão de moral ao arguido. Mas Ivo Rosa foi por um terceiro caminho. Começou por contabilizar o que Sócrates recebeu de Santos Silva, em dinheiro e em espécie, quando e depois de ser PM: 1,8 milhões, e não apenas os 600 mil que ambos reconheciam. E, depois, disse o que todos pensamos: não tendo sido provado nem indiciado que o dinheiro do amigo fosse seu, também não acreditava que o dinheiro que ele lhe deu fosse apenas empréstimos; não acreditava que, para lho pedir, tivesse Sócrates de recorrer a intermediários e de falar de “livros”, “fotocópias”, “envelopes” ou outras palavras de código; não acreditava que ele fosse arrendatário e pagasse renda pela casa de Paris; não acreditava que a sua mãe tivesse um milhão de contos em notas guardado em casa, etc., etc. É minha convicção, disse o juiz, que o senhor foi corrompido pelo seu amigo, durante anos e a troco da sua influência como PM. Esse crime está prescrito, mas não os de branqueamento de capitais e falsificação de documentos. E, por esses, responderá em juízo.

E eis como a retumbante e inevitável vitória de Sócrates sobre o Ministério Público se transformou numa inesperada e humilhante derrota às mãos do juiz que diziam feito com ele.

Completamente sozinho, trabalhando em silêncio e em segredo, como não é habitual, ostracizado pelos seus pares, perseguido pela imprensa justiceira e pelos chacais à solta nas redes sociais, Ivo Rosa prestou um inestimável serviço à Justiça e ao Estado de Direito. Podem agora afadigar-se em destruir o seu trabalho até não ficar pedra sobre pedra, arrastar durante anos ou décadas a Operação Marquês nos tribunais até já ninguém se lembrar que questão lateral é que se discute, podem não querer ver as lições gritantes que se deveriam tirar desde já da forma como tudo foi conduzido desde o princípio e podem linchar o juiz na praça pública ou queimá-lo subtilmente em fogo lento corporativo. Mas nada apagará o serviço que ele prestou ao país.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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