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domingo, 19 de setembro de 2021

O murro amável e o murro-murro


Por
Pacheco Pereira, 
in Público, 
18/09/2021

Na política portuguesa, há duas questões que não são “amáveis”, são de murro mesmo: não tanto o Orçamento, mas a negociação do Orçamento, e saber se o PSD será capturado pela direita radical.



Há críticas ao PCP parecidas com as críticas ao PSD: os seus radicais acusam-no de ser meigo com o PS, e por isso ter uma crise de influência eleitoral, e, de passagem, de “salvar” o Governo. O que está implícito nesta crítica é que, se PCP e PSD levantassem mais a voz, e se recusassem qualquer entendimento com o Governo e o PS, estariam a subir nas sondagens e teriam melhores resultados nas eleições autárquicas. No PCP, o objectivo dessas críticas seria o desejo de que o partido fosse mais duro nos conflitos sociais, no Parlamento, e, por fim, que inviabilizasse o Orçamento. As coisas só não são mais explícitas porque mesmo os radicais contra o PCP têm medo que a inviabilização do Orçamento pudesse levar a eleições e sabem que uma crise de influência da sua “esquerda” significaria não só um reforço do PS, como um reforço da direita mais radical.

Uma variante muito repetida na comunicação social como “análise” é a afirmação de que, se o PCP tiver um mau resultado eleitoral, será mais difícil haver um acordo sobre o Orçamento. O mínimo que se pode dizer é que tanto pode ser de uma maneira como doutra, mas esta “análise” é um desenvolvimento de outra que atribui o enfraquecimento do PCP à experiência conhecida como “geringonça”. Já escrevi e não vou repetir que penso ser uma “análise” errada, visto que as razões da crise do PCP são muito mais fundas do que as circunstâncias dos últimos anos. Mais: penso que, se não houvesse entendimentos com o PS, ou seja, se o PSD e o CDS estivessem a governar, as coisas seriam ainda mais críticas. Nos dois últimos governos socialistas, os acordos deram ao PCP mais poder do que ele alguma vez teria numa oposição pura e dura, porque lhe deram acesso a um direito de veto a muitas políticas que lhe minariam a sua principal base de sustentação actual, os sindicatos.

A comparação entre o PSD e o PCP tem sentido para os radicais de ambos os lados, mas esgota-se nessa razão de ser e, quando se quer ir mais longe, perde-se o sentido. Explico-me. Comecemos pelas diferenças, e que tem a ver com o facto de Rio ser cercado pela direita radical, dentro e fora do PSD, e o PCP ser cercado pelo desgaste da sua influência social, um processo muito mais difícil de contrariar do que qualquer oposição interna, ou de sectores mais radicais da esquerda, que quase não existe no PCP. O PSD também sofre na sua influência social, mas a fonte dessa crise são as políticas do próprio partido, principalmente o abandono do seu papel reformista e moderado, que foi ocupado pelo PS, e que por isso essa influência pode ser recuperada porque é conjuntural. Ainda e para já – com o tempo as coisas podem mudar.

Por seu lado, o PCP tem uma crise estrutural, que pouco tem a ver com as políticas, por isso a posição face ao Orçamento é pouco relevante para contrariar ou aprofundar a crise, porque o que mudou foi a sociedade. Não que deixe de haver papel para as lutas e o conflito, bem pelo contrário, só que o seu enquadramento pelo PCP numa política global não se traduz em votos.

Sendo assim, há uma enorme diferença na actuação dos críticos da direita radical que atacam Rui Rio. A contestação a Rio vem do interior do PSD, e dos círculos da direita radical nos lóbis e na comunicação social, apoiada pelo Chega e pela Iniciativa Liberal e pelos restos do CDS, e no PCP a maioria das vozes estão fora do partido e são muito pouco significativas. Portanto, no PSD estas críticas funcionam como uma pressão imediata, enquanto no PCP ainda estão longe de o ser.

Outra diferença essencial, talvez a mais relevante, é que os críticos da direita radical contra Rio precisam desesperadamente de que o PSD tenha um mau resultado eleitoral, e trabalham para isso, e os do PCP ou são indiferentes a esse resultado, ou não o desejam por considerações com a força da “esquerda”. Sabem, aliás, que as razões dessa crise também lhes batem à porta. Mesmo o Bloco de Esquerda, que podia ser o protagonista dessas críticas, não é, porque a sua estratégia passa também por entendimentos com o Governo.

Hoje as pessoas cumprimentam-se com aquilo a que tenho chamado “murro amável”, para não se cumprimentarem de mão. Duvido que haja muita diferença pandémica, mas os costumes são estes e talvez o “murro amável” seja para ficar. Só que na política portuguesa há duas questões que não são “amáveis”, são de murro mesmo: não tanto o Orçamento, mas a negociação do Orçamento, e saber se o PSD será capturado pela direita radical. Se queremos discutir as questões duras no plano puramente político e não a coreografia mediática, é isto que é relevante. É de murro, mas não é amável.

Historiador

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